Por HENRY BURNETT*
Seu Julio partiu, mas sua música difícil e generosa permanece – como o saveiro que navega para Ilha de Maré, atravessando o tempo e levando consigo o cheiro da Bahia e a nobreza de quem faz seu próprio tempo
“Vou pegar o saveiro/ na rampa do Mercado Modelo/ vou pra Ilha de Maré”, foi o primeiro verso da primeira canção que ouvi de Julio Valverde. Possivelmente o ouvi cantá-la em Berlim quando nos conhecemos há uns dez anos; lembro como hoje do impacto da primeira audição.
Conhecendo-o minimamente, imagino que ele não gostaria de ouvir isso, mas ao escutá-lo tocar “Saveiro” com o violão imediatamente pensei – ainda que silenciosamente – que estava diante de um Dorival Caymmi. Não de um imitador, nem de um duplo do mestre baiano, mas de um “outro” Caymmi. Mas a comparação, embora em nada o empobreça, acaba escondendo o essencial: estava diante de um compositor que nunca tinha ouvido, desconhecido por mim e pela maioria dos ouvintes de música do Brasil. Até aqui, nenhuma novidade.
Quem pôde desfrutar minimamente de sua companhia, de sua comida ou de sua música certamente ficou marcado por uma ou por algumas destas suas qualidades humanas, demasiado humanas. Sua verve e seu sutil mal humor com a mediocridade divertia e reforçava o nosso.
Sua família musical arraigada em uma religiosidade animista, extremamente acolhedora, tem sido desde sempre uma convivência enriquecedora. Muitas vezes penso como acontecem certos encontros que parecem casuais. Mas antes de contar sobre meu encontro com a família Valverde, gostaria de comentar sobre nossa breve convivência e sobre algumas trocas.
Nossa parceria tem dois momentos marcantes para mim. Quando minha tese de livre-docência estava prestes a ser publicada, consultei seu filho Guilherme – meu parceiro em muitas canções e outro multitalentos como o pai – sobre uma ideia para a capa. Expliquei que Espelho musical do mundo era um ensaio sobre a canção brasileira, que minhas observações retornavam até a Grécia de mãos dadas com O nascimento da tragédia, de Friedrich Nietzsche.
Como sempre, Guilherme resolveu em alguns minutos o que parecia um problema enorme. “Meu pai tem alguns desenhos, acho que tem a ver com essa ideia da canção popular como algo comum a muitos povos”. E pronto, a capa estava decidida. “A referência do laranja é pantone 7416c e a capa é preto senegal”.

Tempos depois de enviar o livro, encontro Seu Julio numa festa.
– “Que tal, Julio, gostou?”
– “O livro ficou bonito, mas é difícil pra porra”.
Pior…
Foi em Berlim, entre 2015 e 2016, no gramado de um dos muitos castelos nos arredores da cidade que trombei com o Guilherme. Do nada, enquanto as crianças batiam bola. Acaso? Como acreditar nele depois de tantas parcerias, da Patrícia, do Antônio e o do Davi, do Ricardo Valverde, da Bia Góes, da generosidade desmedida da Dona Deborah, e de quebra os agregados: do Ro Fonseca, do Guilherme, da Raiana. Acaso é uma porra, diria o velho baiano.
Alguns anos atrás, em um dos encontros familiares, Seu Julio me pediu uma letra para musicar. Entre honrado e temeroso, prometi enviar a encomenda, mas sem certeza. Tinha um problema que não relatei na hora. Nunca tinha escrito uma letra sem base melódica e harmônica, nem antes nem depois dessa encomenda. Dia 18 de julho de 2019 enviei no corpo do e-mail.
minha voz guarda outro tempo
de nobreza e pé na terra
os olhos reluminavam
o pano roto da vela
dedilhava calmo e fundo
meu violão assombrado
pelas vagas dos infantes
navios negreiros vingados
incorporava o caminho
a música calma do vento
doce do canto falado
contra o corre desse tempo
que faço soar troando
com riso farto e tempero
a esperança não me falta
canto o mar e o desespero
“A canção é mais difícil que o livro”, devolvi na mesma moeda quando ouvi. Na verdade, ele compôs uma canção com melodia e harmonia altamente elaboradas. “Música difícil da porra”, emendou o Guilherme. Tempos depois, no “Projeto Julio Valverde”, Yuri Prado fez a captação em áudio e vídeo; é o único registro, até onde sei. A letra nasceu seca, grafite do papel e sem música por um motivo nada banal. O próprio Julio era o mote.
Foi o único exercício que fiz, entre mais de duzentas canções, de me colocar no lugar do compositor/intérprete, ao modo como Chico César ao escrever “Dona do dom” para Maria Bethânia gravar – um sarrafo bem alto. A letra é uma tentativa de descrevê-lo a partir de uma certa aura que o cercava, e, como toda aura, carregada de algum romantismo.
Só conversamos sobre a canção uma vez. Contei sobre a fonte da letra. Recebi um olhar desconfiado, um nem sim nem não. Escrita em primeira pessoa, quando a ouço, penso que é ele, inteiro, mas jamais vou saber se também se percebia como eu.
Parte importante da sua obra musical está registrada em dois álbuns: Saveiro (ôctôctô, 2023) e Eu faço o meu tempo (Tímpano, 2024).
Da sua cozinha, quem foi ao Soteropolitano não esquece.
Da sua fidalguia, sou testemunha.
Seu Julio nos deixou dia 08 de outubro, no alto dos seus 81 anos.
*Henry Burnett é professor titular de filosofia na Unifesp. Autor, entre outros livros, de Música só: uma travessia filosófica entre a Europa e o Brasil (Edusp). [https://amzn.to/4myN7eH]
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