Por ALEXANDRE G. DE B. FIGUEIREDO*
A Doutrina Monroe continua ativa e atuando na preservação dos interesses dos Estados Unidos
“Los hermanos sean unidos, porque esa es La ley primera”, concluía Martín Fierro, o gaucho concebido por José Hernández na Buenos Aires do final do século XIX, reforçando que “si entre ellos se pelean, los devoran los de afuera”.Existem algumas rivalidades de família que, requentadas pela história, acabam servindo mais aos “de fora”. Uma delas é a ainda firme polêmica acadêmica em torno das posições e desencontros entre Simón Bolívar e San Martín.
Os dois libertadores do continente, um vindo do norte e o outro do sul, tiveram um único e legendário encontro, em 1822, em Guayaquil, atual Equador. Foram três dias de conferências sobre as quais ainda paira uma aura de mistério.
Bolívar, após mais de um desastre que quase encerrou a luta pela independência, vinha de uma série de vitórias contra as forças imperiais. Trazendo de volta o nome ideado pelo precursor Francisco de Miranda, fundara a República da Colômbia, a Grã-Colômbia, que incluía os atuais Venezuela, Panamá, Colômbia e Equador. Feito presidente do país, preparava-se para marchar contra o Vice-Reinado do Peru, último reduto realista no continente.
San Martín enfrentava a situação oposta: após a vitória, contemplava o possível fracasso. Algumas expedições organizadas pelos revolucionários porteños de 1810 haviam fracassado na tentativa de atacar o Peru por terra, atravessando a atual Bolívia. Para sair do impasse, San Martín havia concebido uma ousada e genial estratégia: primeiro cruzar os Andes e libertar a Capitania do Chile. Depois, pelo mar, conquistar Lima. A manobra garantiu a segurança para o governo livre de Buenos Aires e o levou ao título de Protetor do Peru. Contudo, a resistência imperial estava em seu encalço e a continuidade da guerra dependia de um entendimento com Bolívar.
O encontro dos dois foi realizado a sós, deixando para a literatura os sonhos em torno de um documento secreto que finalmente resolvesse um dos maiores mistérios desses fundadores da América Latina. Ficaram apenas as versões que ambas as tradições difundiram e difundem até hoje.
Pelo lado dos “sanmartinianos”, o argentino teria ido a Guayaquil para pedir o apoio de Bolívar na continuidade da guerra, chegando até a propor que ele próprio se colocasse sob as ordens do venezuelano. Contudo, Bolívar teria sido refratário a essa solução. Por sua vez, San Martín optou por deixar o comando do seu exército e partir para o exílio. Nessa versão, sobressai um San Martín nobre e interessado mais na liberdade da América que em suas ambições pessoais, em contraponto a um ambicioso Bolívar, que não aceitaria dividir o posto e a glória.
Por sua vez, a tradição “bolivariana” apresenta um relato diferente. Testemunhos de auxiliares próximos a Bolívar confirmam o pedido de ajuda feito por San Martín, mas afirmam que não havia condições objetivas para que o exército libertador do norte entrasse, naquele momento, no Peru. Além disso, enfatizam uma divergência quanto à organização política da América libertada: San Martín teria defendido uma monarquia constitucional e, inclusive, a entrega dessa coroa a um príncipe europeu, acreditando que essa solução (ao menos, para o Peru) seria mais palatável para as elites e mais capaz de garantir a estabilidade. Aqui, aparece um Bolívar republicano que se opõe a esse caminho.
Muitas páginas foram escritas sobre essa questão, tantas que existem outras produzidas só sobre a polêmica em torno da interpretação da conferência de 1822. A exploração repisada desse desencontro misterioso tira a luz da rivalidade clara, nada misteriosa, que surgiu de fato também na década de 1820: a oposição entre um projeto de unificação da América de colonização ibérica e o projeto de proto-anexação definido pela chamada Doutrina Monroe.
Embora o nome de Simón Bolívar seja o mais associado ao projeto unionista, ele não foi o único a propor um arranjo nesse sentido. Tratava-se de uma ideia presente nas lideranças da emancipação que, nas mais diversas formas, colocaram a mesma questão: se estivemos unidos na escravidão, porque não poderíamos estar unidos na liberdade.
Para além da retórica, o projeto da “Doutrina Bolívar” contemplava a fundação de uma organização internacional dotada de supranacionalidade; a garantia da independência e da integridade territorial; a positivação do direito internacional americano; a adoção da arbitragem como forma solução pacífica dos conflitos entre os novos Estados; e, não menos importante, a exclusão dos Estados Unidos desse arranjo. É conhecido o juízo que Bolívar fez para o embaixador inglês sobre a república do norte: “os Estados Unidos parecem destinados pela providência a afligir a América com misérias em nome da liberdade”.
Por sua vez, a chamada Doutrina Monroe vem de uma declaração emitida pelo presidente norte-americano James Monroe, em 1823, um ano depois da Conferência de Guayaquil e antes da vitória final contra as forças imperiais na América, em 1824. Mais que a posição de um governo circunstancial, essa declaração teve também o parecer positivo dos ex-presidentes Thomas Jefferson e James Madison, sendo que o Secretário de Estado era John Quincy Adams, que viria a ser também presidente. Portanto, era uma posição do próprio Estado norte-americano.
O que dizia a declaração? O batido “América para os americanos”, que implicava na condenação de interferência europeia no continente. Mas não apenas: dizia também, e isso era o mais relevante naquele contexto, que os EUA não tomariam partido e nem interviriam de qualquer forma nos conflitos em curso entre os impérios europeus e suas colônias na América. Ora, em outras palavras, a declaração de Monroe afirmava que não seria prestado qualquer apoio aos exércitos que lutavam pela independência, quer fosse sob a liderança de Bolívar, quer fosse sob a de San Martín.
Na verdade, a Doutrina Monroe, hoje brandida como uma declaração anticolonial, foi mais um acerto entre os EUA e as potências europeias quanto ao possível butim que restaria das guerras pelas independências nos demais países da América. A Grã-Bretanha, com os olhos postos nos novos mercados que se abriam, temia que a França se apoderasse das antigas colônias espanholas (temor justificado, como a invasão francesa no México demonstrará algumas décadas mais tarde). Por sua vez, também não interessava aos EUA a substituição do Império Espanhol pelo Império Francês em uma região que seus teóricos já apontavam como sua área de expansão natural.
Quando, no final do século XIX, os fundadores do pan-americanismo colocaram Bolívar e Monroe como precursores de uma governança regional centralizada em Washington, estavam desconsiderando todo o verdadeiro legado bolivariano. Claro, as rivalidades internas da América Latina – com o perdão do uso ainda anacrônico do termo – foram, e são, as maiores facilitadoras dessa falsificação histórica e política.
A verdadeira oposição, a que perpassa o continente americano desde os estertores da fundação dos Estados independentes, é o antagonismo de raiz “bolivariana” com o projeto expansionista dos Estados Unidos, e não as rivalidades domésticas, fomentadas e ensinadas no intuito de dividir. A Doutrina Monroe continua ativa e atuando na preservação dos interesses dos Estados Unidos. Para resgatar nossa independência é preciso voltar a levantar a bandeira de unidade da “Doutrina Bolívar”. Afinal, “los de afuera” estão sempre à espreita.
*Alexandre G. de B. Figueiredo é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP).