Por AFRÂNIO CATANI *
Comentário sobre o livro recém-editado do Prêmio Nobel de Literatura de 1987
“Quando a pátria que temos não a temos\ Perdida por silêncio e por renúncia\ Até a voz do mar se torna exílio\ E a luz que nos rodeia é como grades” (Sophia de Mello Breyner Andresen, “Exílio”).
Iosif Aleksandrovich Brodsky, conhecido como Joseph Brodsky (1940-1996), nasceu em São Petersburgo, Rússia, e faleceu nos Estados Unidos. Em 1972 foi expulso de seu país por afrontar as autoridades russas tendo, com a ajuda do poeta e escritor W. H. Auden e de outros intelectuais, vivido na América e recebido a cidadania estadunidense. Ensinou em Yale, Cambridge e Michigan. De família judia, experimentou uma série de privações antes de migrar. Prêmio Nobel de Literatura (1987), possui vasta produção: poesias, coletâneas de ensaios e de entrevistas, além de peças de teatro.
Entretanto, aqui não pretendo explorar sua profícua obra, mas comentar este Sobre o exílio.
O sucinto escrito da contracapa ajuda a dar início à empreitada: “O destino quis que Joseph Brodsky pronunciasse, a distância de poucos dias, no outono de 1987, os dois discursos aqui reunidos, que assumem um lugar simbólico na sua obra. Ambos são discursos sobre o exílio e do exílio. Mas aqui o exílio é uma categoria metafísica, antes de ser política. Isso permite a Joseph Brodsky evitar, desde o início, o risco mais atraente do exilado, aquele de colocar-se do ‘lado banal da virtude’. Para Joseph Brodsky a literatura não serve para salvar o mundo, mas é um ‘extraordinário acelerador da consciência’”. O pequeno volume se completa com um terceiro texto, uma defesa apaixonada dos poetas e da poesia.
“A condição chamada exílio” (p. 9-36) foi redigido para uma conferência realizada pela Wheatland Foundation em Viena (dezembro, 1988). Comenta que irá debater o problema do escritor no exílio mas, antes, menciona o caso dos Gastarbeiters (“trabalhadores convidados”) turcos vagueando pelas ruas da Alemanha ocidental, “sem entender ou invejando a realidade a seu redor” (p. 9).
Acrescenta: “Ou imaginemos os refugiados vietnamitas nos botes enfrentando o alto-mar ou já assentados em algum lugar do interior australiano. Imaginemos os imigrantes mexicanos se arrastando pelas ravinas do sul da Califórnia, passando pela polícia de fronteira e entrando no território dos EUA. Ou imaginemos os carregamentos de paquistaneses desembarcando em algum ponto do Kuwait ou da Arábia Saudita, ansiosos para trabalhar em serviços braçais que os locais, com a riqueza do petróleo, não aceitam fazer. Imaginemos as multidões de etíopes andando a pé pelo deserto até a Somália (…) para fugir da fome” (p. 9-10). Essas pessoas, segundo Joseph Brodsky, “escapam à contagem”, inclusive das organizações de assistência da ONU: ninguém as contará. Serão chamadas, vagamente, de “migração” (p. 10).
Esse conjunto de pessoas, em seu entender, tornam “muito mais difícil falar com honestidade sobre as dificuldades do escritor no exílio” (p. 11). Ao mesmo tempo, reconhece que a literatura “é a única forma de segurança moral de uma sociedade, que ela (…) oferece o melhor argumento contra qualquer tipo de solução coletiva que opere feito um trator – quanto menos porque a diversidade humana é o que compõe a literatura e é sua raison d’être” (p. 11-12).
Os Gastarbeiters e os refugiados de qualquer linhagem acabam por tirar os louros do escritor exilado, pois no caso tratam-se de pessoas “fugindo do pior para o melhor” (p. 13).
No caso dos letrados é diferente: “a verdade é que só é possível se exilar de uma tirania numa democracia” (p. 13). Como regra, ocorre a transferência de um lugar atrasado para uma sociedade industrialmente avançada, “com a última palavra sobre a liberdade individual”. Para um escritor exilado isso equivale, em muitos aspectos, a voltar para casa: “porque significa aproximar-se dos ideais que sempre lhe serviram de inspiração” (p. 13).
Todavia, em geral o escritor se vê totalmente incapaz de desempenhar qualquer papel significativo em sua nova sociedade: “a democracia a qual ele chegou lhe oferece segurança física, mas torna-o socialmente insignificante” (p. 14), e não só pela barreira linguística. E a falta de significância é o que nenhum escritor, exilado ou não, pode aceitar.
Nesse sentido, a situação do escritor exilado é pior do que a de um Gastarbeiters ou do refugiado habitual. “Seu desejo de reconhecimento o deixa insatisfeito e indiferente à sua renda como docente, palestrante, editor de alguma pequena revista ou simples colaborador” (p. 14). Ele gosta de “dar as cartas no meio pernicioso de seus colegas exilés” (p. 18), de publicar cartas abertas, dar declarações à imprensa, ir a conferências…
O escritor exilado acaba ficando restrito a um pequeno público no país em que se encontra e, para sobreviver simbolicamente, “continuará a escrever sobre o material familiar de seu passado, produzindo, por assim dizer, as continuações de suas obras anteriores” (p. 20). O exílio, por vezes, acaba se convertendo em uma espécie de sucesso, possui certo tom exótico (p. 23-24). O exílio torna o exílio do escritor mais conservador – não tanto o homem, mas seu estilo (p. 27).
“Uma face incomum” (p. 39-69) vem a ser o discurso pronunciado em Estocolmo diante dos membros da Academia Sueca, por ocasião da atribuição do Prêmio Nobel de Literatura, em 1987. Joseph Brodsky inicia seu discurso mencionando que se encontra “longe de sua pátria mãe”, acreditando ser “melhor fracassar na democracia que ser um mártir ou a cereja do bolo em uma tirania” (p. 39). Mas isso não deixa de lhe causar certo desconforto, pois gostaria que antes dele alguns/mas poetas que aprecia também tivessem ocupado o mesmo espaço. tais poetas, em número de cinco, são aqueles/as “cujos feitos e conteúdo me importam muito, pois, não fossem por eles/as, eu, tanto como homem como escritor, teria chegado a muito menos; trocando em miúdos, a verdade é que não estaria aqui hoje” (p. 41). Essas pessoas que escreveram versos foram Osip Mandelstam (1891-1938), Marina Tsvetaeva (1892-1941), Robert Frost (1974-1963), Anna Akhmátova (1889-1966) e W. H. Auden (1907-1979).
Para Joseph Brodsky, “se o Estado se permite interferir nos problemas da literatura, a literatura tem o direito de intervir nos problemas do Estado” (p. 46). Tal postura acabou por lhe causar a expulsão da Rússia… Prevenido, gato escaldado, adverte que “o homem cuja profissão é a linguagem é o último que pode se dar ao luxo de se esquecer disso” (p. 46). E mais: o perigo ronda constantemente quem vive de manipular as palavras, pois não é a possibilidade de perseguição por parte do Estado que é o mais temível: “é a possibilidade de se encontrar enfeitiçado pelas qualidades desse mesmo Estado, as quais, monstruosas ou progressistas, são sempre temporárias” (p. 47).
Para o escritor russo, em sua capacidade de interlocutor, “um livro é mais confiável que um amigo ou um amante”, pois “um romance, ou um poema, não é um monólogo, é uma conversa entre o escritor e o leitor”, uma conversa privada, “da qual se exclui todo o resto do mundo…” (p. 53-54) – romance ou poema: “é o produto de uma solidão mútua – do autor ou do leitor” (p. 54).
De forma polêmica, não aceita que alguns líderes políticos do século passado tenham seus nomes associados à cultura sem que paguem pesado tributo às suas ações enquanto governantes: “Lênin era culto, Stálin era culto, assim como o era Hitler; Mao Tsé-Tung até escrevia versos. O que todos esses homens tinham em comum, entretanto, era que a sua lista de vítimas era infinitamente maior que a lista de leitura” (p. 59).
Escrever versos é “um extraordinário acelerador da consciência, do pensamento, da compreensão do universo. Aquele que experimenta essa aceleração uma vez não consegue mais abandonar a chance de repetir essa experiência, caindo na dependência do processo, como outros o fazem com drogas e álcool” (p. 68).
Já o “Discurso de aceitação” (p. 71-75) foi proferido durante almoço na sede do município de Estocolmo – tradicionalmente é realizado pelo vencedor do Prêmio Nobel, contando com a presença do rei da Suécia.
Através do laureado fica-se sabendo que o público que lê poesia raramente chegou a mais de 1% de toda a população, razão pela qual na Antiguidade ou na Renascença os poetas orbitam as cortes, residências do poder. “É por isso que hoje em dia eles se debandam para as universidades, residências do saber. A academia de vocês parece ser um cruzamento entre os dois; e, se no futuro (…) esse 1% for mantido, será, sem exagero, devido ao esforço de vocês” (p. 73-74).
Joseph Brodsky conclui sua fala com relativo otimismo, dizendo que em breve ele deixará de existir, assim como quem o está/va lendo ou o ouvindo. “Mas a linguagem com a qual são escritas [as poesias] e na qual vocês as leem seguirá, não somente porque a linguagem é mais duradoura que o homem, mas também porque mais do que ele é capaz de mutação” (p. 67).
Para escrever o presente texto fiz pesquisas na internet para checar datas, títulos, grafias, e me deparei com uma frase atribuída a Brodsky que, de alguma maneira, reforça o dito no parágrafo anterior: “No negócio da escrita, o que acumulamos não é experiência, mas incertezas”.
* Afrânio Catani é professor titular sênior aposentado da Faculdade de Educação da USP. Atualmente é professor visitante na faculdade de Educação da UERJ, campus de Duque de Caxias.
Referência
Joseph Brodsky. Sobre o exílio. Tradução: André Bezamat e Denise Bottmann. Belo Horizonte, Âyiné, 2023, 80 págs. [https://amzn.to/49EhABL]
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