Sobre o uso de celular nas escolas

Imagem: Estúdio Tofros
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Por FERNANDO LIONEL QUIROGA*

O problema do uso de smartphones nas escolas é apenas a ponta do iceberg pelo qual depende a manutenção da própria democracia

1.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou, em 13 de janeiro, o Projeto de Lei nº 4.932/2024, que restringe a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis, como celulares, nos estabelecimentos públicos e privados de educação básica durante as aulas, recreios e intervalos. A parte do projeto (de autoria do Deputado Alceu Moreira – MDB/RS), que se apresenta como um dispositivo de regulamentação de aparelhos eletrônicos portáteis – o smartphone, para ser mais exato – enfrenta opiniões contrárias de uma parcela expressiva da população.

Fato é que o smartphone tal como o conhecemos – um dispositivo móvel que combina a funcionalidade do telefone celular tradicional com recursos avançados de computação – é tido (sem exagero) por uma parte expressiva de jovens e adolescentes como uma extensão do próprio corpo. Embora não corrobore com o conceito de “nativo digital”, justamente pela carga ideológica deste conceito, entendo o smartphone como “dispositivo total”. E é aqui onde o perigo mora. Não é preciso reforçar o fato da ubiquidade destes aparelhos no mundo em que vivemos. Todos nós conhecemos ou convivemos com crianças que, desde o nascimento, encontram-se diante de uma tela. No início, o contato se dá durante a amamentação.

Como bem observou o filósofo alemão Christoph Türcke, neste hábito que parece inofensivo, perde-se algo de fundamental na formação da cognição da criança: o contato visual da mãe com o bebê desvia-se para a luminosidade de conteúdos ininterruptos que aparecem na tela. A intencionalidade da amamentação, a força simbólica do contato visual entre mãe e filho perde-se em decorrência da torrente alucinante e hipnótica da tela.

Sucede-se a isto o hábito, mais tarde incorporado pela criança, de alimentar-se somente se estiver diante do tablet. O tablet emborrachado e colorido apoiado à frente do prato é hoje um cenário comum. Agora, é a própria alimentação que perde sentido de ser. O sabor, a textura, a temperatura, a combinação de alimentos – tudo isso é jogado ao lixo! Converte-se em uma gororoba que, ao fim e ao cabo, serve apenas como fonte de energia para agradar a mãe e para permanecer conectado até a próxima refeição.

Não é preciso nada além destes primeiros anos de contato com as telas para que o aparelho produza um sentimento estranho de que é parte constitutiva da anatomia humana. Ele não é uma babá, como costuma-se dizer quando se vê crianças comportadas no restaurante apenas porque estão de posse do celular: ele é a própria mãe e o próprio pai. Ele é “o dispositivo”. Sem exagero, ele deveria ser visto com essa preocupação.

Para os nascidos nas décadas de 1970 ou 1980 (como eu, por exemplo), o debate sobre o celular possui qualquer coisa de “intelectual”, de “distante” em face daqueles que nasceram sob sua “imposição cultural”. Para nós, assim como o tempo cristão, o debate também é cindido entre: A/C (antes do celular) e D/C (depois do celular). Para eles, este “mundo anterior” é como um conto de fadas; é como um sobrevivente de Auschwitz, como alguém cujo testemunho é de uma experiência única.

A vida antes do celular adquire, por assim dizer, uma aura misteriosa, idílica, romântica, mas também obsoleta, arcaica. É somente porque as coisas adquiriram tamanha importância histórica a partir do celular – produzindo consequências sociais, políticas, cognitivas, psicológicas e culturais –, e é tão somente por ter se convertido em um exoesqueleto e um exocérebro da anatomia humana, que o simples ato de proibição ou recusa de seu uso pode produzir efeitos sombrios,  como o do jovem de 19 anos que matou a avó estrangulada alegando que ela teria se recusado a lhe dar a senha do celular, ou o de um adolescente que matou o pai com um tiro após deixá-lo de castigo sem celular.

A regulamentação do uso de celular nas escolas é, por isso, um ato de coragem, como salientou o presidente Lula ao sancionar a lei, justamente porque é, sobretudo, uma medida de proteção à saúde e à aprendizagem. Todavia, é preciso que haja sensibilidade para enfrentar as questões práticas que devem incidir na realidade escolar. Ou, melhor dito, nas múltiplas realidades escolares.

2.

Como a questão é essencialmente complexa, porque congrega tanto aspectos psicológicos e cognitivos quanto sociais e culturais, a leitura acerca da restrição deve ser compreendida com ponderação.

A sociedade, e não apenas crianças e adolescentes, está capturada pelas redes. O que aqui chamei de “dispositivo total” diz respeito ao fato de que praticamente todas as dimensões da vida, e não apenas aquelas relativas à vida escolar, são, hoje, atravessadas por dispositivos.

Mas nos dispositivos, como observou Borgmann: “a relação com o mundo é substituída por uma maquinaria, mas a maquinaria está oculta, e as coisas, tornadas disponíveis pelo dispositivo, são apreciadas sem o estorvo ou o envolvimento com um contexto” (Borgmann apud Feenberg, 2018, p. 199).

Neste sentido, ao contrário do que se pensa no senso comum, a sociedade “conectada”, na medida em que substitui ou terceiriza a conexão social a uma maquinaria, termina por “desconectar-se”. Imaginar uma sociedade sem celular, hoje, implicaria repensar em novos processos e meios de socialização.

E há, ainda, o problema relativo às redes sociais, que, como salientou Jaron Lanier, terminam por nos converter em babacas e deprimidos.

É por estas e outras razões que lemos no Art. 4º: “As redes de ensino e as escolas deverão elaborar estratégias para tratar do tema do sofrimento psíquico e da saúde mental dos estudantes da educação básica, informando-lhes sobre os riscos, os sinais e a prevenção do sofrimento psíquico de crianças e adolescentes, incluídos o uso imoderado dos aparelhos referidos no art. 1º desta Lei e o acesso a conteúdos impróprios”, e os parágrafos:

“§ 1º As redes de ensino e as escolas deverão oferecer treinamentos periódicos para a detecção, a prevenção e a abordagem de sinais sugestivos de sofrimento psíquico e mental e de efeitos danosos do uso imoderado das telas e dos dispositivos eletrônicos portáteis pessoais, inclusive aparelhos celulares.

§ 2º Os estabelecimentos de ensino disponibilizarão espaços de escuta e de acolhimento para receberem estudantes ou funcionários que estejam em sofrimento psíquico e mental decorrentes principalmente do uso imoderado de telas e de nomofobia”.

Isto posto, resta em aberto o debate acerca de como a escola deverá lidar com a nova lei. Como as escolas acolherão a nova legislação? De que modo as redes de ensino e as escolas atuarão na prática? O que seria uso pedagógico? Em que medida o uso do celular poderá ser utilizado para atender às condições de saúde dos estudantes (finalidade III da referida lei) – quando, em muitos casos, a saúde é prejudicada pelo uso excessivo? Estas questões devem balizar o debate acerca do tema.

É um claro sinal de que não estamos lidando com uma prevenção, mas com o enfrentamento de um problema devastador, não somente em escala individual ou social; no fundo, o problema é apenas a ponta do iceberg pelo qual depende a manutenção da própria democracia.

*Fernando Lionel Quiroga é professor de Fundamentos da Educação na Universidade Estadual de Goiás (UEG).


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