Por LUÍS SÉRGIO CANÁRIO*
O mundo precisa cada vez mais de energia, inclusive para os carros elétricos, e não há soluções hoje para uma mudança radical da matriz energética com baixo impacto ambiental
1.
Este texto procura trazer elementos para uma discussão importante na questão ambiental: o uso do carro elétrico em substituição ao carro convencional, movido a gasolina. Entender melhor essa questão exige a apresentação de alguns números. Isso torna o texto mais árido, mas é fundamental para dar foco ao debate. É importante a percepção do tamanho gigantesco da questão. Os números, e por consequência os impactos, também são muito grandes.
O carro elétrico é hoje apresentado como uma espécie de panaceia para resolver parte dos problemas de poluição do ar, da redução do uso de combustíveis fósseis e do aquecimento global. Há a expectativa de que toda a frota de carros que usam gasolina seja substituída por carros movidos a eletricidade. Esse é um enorme desafio. Dois números iniciais: há hoje em circulação cerca de 1,45 bilhões de carros movidos a gasolina e cerca de 40 milhões movidos a eletricidade.
Mas, independentemente dos seus impactos ambientais, no mundo do capital financeiro está muito bem-posicionado. Isso pode explicar em certa medida a forma como ele vem sendo apresentado ao mundo. A Volkswagen é a empresa com maior volume de vendas das empresas listadas nas bolsas dos EUA. Nos últimos quatro trimestres, ou quarters, a Volks vendeu US$348,13 bilhões. A Toyota, a segunda, vendeu US$307,48 bilhões. A Tesla, a rainha dos carros elétricos, vendeu US$94,74 bilhões. A segunda, a BYD, vendeu US$84,70 bilhões. Estão respectivamente nas posições 11 e 13 do ranking de vendas. As duas juntas vendem cerca de metade do que a Volks ou a Toyota vendem. As dez maiores empresas são todas fabricantes de carros convencionais.
Em números de veículos produzidos em 2023 a Toyota produziu cerca de 10,5 milhões e a Volks 8,8 milhões. A Tesla produziu 1,8 milhão e a BYD 1,5 milhão. As duas somadas produziram 17% do que Toyota e Volks produziram. Os dez maiores fabricantes, todos de carros convencionais, produziram juntos cerca de 57milhões de unidades.
No entanto a Tesla é a maior empresa automobilística com valor de mercado de US$562,57 bilhões. A Toyota é a segunda com valor de US$292,80 bilhões, cerca de metade da Tesla. A BYD é a terceira com valor de US$87,52 bilhões. A Volks é somente a sétima com valor de US$72,71 bilhões. A Tesla vale mais que Toyota, BYD, Porsche e Mercedes-Benz somadas. Elon Musk agradece. Com uma pequena parte dessa dinheirama ele comprou o Twitter e abriu as portas do aplicativo para o serviço sujo da extrema direita.
O capitalismo nessa fase atual já lucra com iniciativas propostas para a redução do impacto ambiental. Os ganhos financeiros são perseguidos onde houver possibilidade de extração de valor. Mas a questão sobre o impacto real do carro elétrico vai além desse aspecto do valor das empresas automobilísticas. É necessária uma investigação mais profunda sobre o impacto geral no meio ambiente e a viabilidade do carro como parte da solução da questão ambiental, no tamanho que vem sendo colocado.
2.
A primeira questão é a da produção de energia elétrica. É sustentável a substituição de parte significativa da frota, ou toda ela, por carros elétricos? A resposta a essa questão é essencial.
O consumo de um carro convencional é medido em Km/l, ou seja, quantos quilômetros um carro roda por cada litro de combustível. No caso dos elétricos é medido em KWh/Km. KWh é a unidade de medida de energia. Essa medida reflete o consumo de energia do carro por cada quilômetro rodado. Um carro elétrico médio consome 0,22KWh/Km. Considerando que um carro em média roda 30Km por dia, uma estimativa aceita, um carro consome cerca 6,6KWh por dia. Ou 2.409KWh por ano. Há hoje cerca de 40 milhões de carros elétricos rodando no mundo, resultando em um consumo anual de aproximadamente de 96,3TWh. A geração total de energia no mundo é de cerca de 29.479,05TWh. Hoje a frota de carros elétricos consome cerca de 0,32% da energia produzida.
Se extrapolarmos esse resultado para a substituição de todos os 1,45 bilhões de carros convencionais por carros elétricos, o consumo seria de 3.500TWh, significativos 12% de acréscimo na demanda mundial de energia elétrica. O crescimento do consumo mundial de energia elétrica nos últimos dez anos foi na média cerca de 2,5% ao ano. As vendas de carros cresceram nos últimos dez anos, na média, cerca de 1,1% ao ano. Mantidos esses valores podemos ter uma ideia do impacto da mudança da frota de carros de convencionais para elétricos no consumo mundial de energia elétrica.
A questão de fundo desse aumento da necessidade de energia é a matriz de geração. Os dois gráficos abaixo ilustram a evolução de 1985 a 2023 por tipo de fonte para a geração:
A geração usando combustíveis fósseis representa 60% do total e a de combustíveis não fósseis, incluindo energia nuclear, é de 40%. Entre os não fósseis a maior contribuição é o da fonte hídrica, com 36,3%. E nos fósseis é o carvão, com 58,55%, como pode ser visto na tabela abaixo.
Todos esses números nos mostram o tamanho do desafio. É preciso equalizar o crescimento da frota de carros elétricos com o crescimento da geração de energia elétrica. E mais que isso, uma mudança muito mais rápida na matriz de geração. Se não houver planejamento, a demanda de energia dos carros elétricos pode não conseguir ser atendida pela geração. Pode haver uma demanda de energia maior que a capacidade de geração, desequilibrando completamente o sistema e causando falta de energia para todas as atividades.
Por outro lado, aumentar a capacidade de geração, mantida a matriz atual, vai aumentar o impacto ao meio ambiente causado por mais combustíveis fósseis sendo queimados. Ainda há que ser considerado o perfil de carga das baterias dos carros. Cada vez há carregadores mais rápidos que demandam mais energia do sistema em tempos mais curtos. É outra variável que precisa ser equacionada.
No debate sobre impactos ambientais da geração e uso da energia elétrica não há nada simples, caminho em linha reta ou soluções mágicas e definitivas. Nã há forma de produção de energia isenta de impacto ambiental. A queima de combustíveis fósseis gera gases que geram mudanças climáticas, fora os impactos gerados pela extração e refino de carvão, petróleo e gás.
A geração eólica gera impactos que estão sendo melhor estudados agora com o enorme crescimento dos parques eólicos, inclusive no Brasil. A geração solar cobre extensas áreas que comprometem a vida no solo e a movimentação dos animais de maior porte. A hidráulica tem o impacto das grandes áreas inundadas. Vivemos um dilema: o mundo precisa cada vez mais de energia, inclusive para os carros elétricos, e não há soluções hoje para uma mudança radical da matriz energética com baixo impacto ambiental.
A tecnologia não vai, como apostam alguns, resolver os problemas. Promessas e compromissos não obrigatórios menos ainda. Precisamos de ações e compromissos obrigatórios que ao menos apontem para reduções reais e significativas nas emissões de gases do efeito estufa. O mercado financeiro é o único agente econômico que está ganhando nessa situação.
A valorização das empresas, como fabricantes de carros elétricos, desse setor é grande o que o torna muito atrativo para ganhos de curto prazo dos investidores. E para o capital em geral, e o financeiro em particular, como disse Lord Keynes, “no longo prazo estaremos todos mortos”.
*Luís Sérgio Canário é mestrando em economia política na UFABC.
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