Somos todos migrantes

Imagem: Lars Englund
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Por FERNANDO RIOS*

Poema em seis movimentos

1.

poema/peça de teatro
em dois, três, quatro atos
ou quantos forem necessários
para despertar a indignação
acender a consciência

por que escravizar o outro?
por que ignorar o outro?
por que segregar o outro?
principalmente
quando ele está faminto
bem ao lado
e nós de barriga cheia
contemplando…
apenas o próprio umbigo

2.

personagens:
cada um de nós e os nós do mundo
do gelo ao deserto, no mar, na montanha
tímidos ou rompantes
mas que precisamos ver melhor
que despautérios egoisticamente
cometemos ao redor

3.

minha pele é branca
e já foi negra
minha pele é vermelha
e já foi negra
minha pele é amarela
e já foi negra
minha pele é cinza
e já foi negra
minha pele é marrom
e já foi negra
minha pele é pele
e já foi negra
por isso, de que cor sou eu?
e quem me deu
esse poder epidérmico
que escorre entre os dedos
sem qualquer fundamento?

minha pele é negra, sempre foi negra
e por ser negra, alguém me disse
que tinha direitos sobre ela
como se fosse possível, só por ter ossos,
alguém ser dono de um esqueleto
que não fosse o seu

como se fosse possível alguém ser dono de mim
só porque condenam de onde vim
só porque me escravizaram
não significa que sou escravo
por isso me rebelo e grito: quem é você
que se arvora dono do mundo
e pensa que me inclui
na sua podridão feudal?

sob minha pele, guardo um esqueleto
igual ao seu: cabeça tronco e membros
e dentro, coração fígado estômago pulmão
e tantos intestinos quantos destinos
caminhos desalinhos com tantos redemoinhos

viemos todos do mesmo lugar
a mãe áfrica nos pariu e nos alimentou
então por que você olha para mim
como se eu fosse órfão, rufião?

então, se for assim, você também é!
olhe-se!

4.

“me considero um ser humano. se um artista é um ser humano, então, também pode me chamar de artista. mas eu sou apenas um ser humano. eu realmente não sei se teremos um futuro. claro que nós sabemos que temos um passado, mas não sei se temos um futuro. porque nos odiamos, nos separamos uns dos outros, temos ideias malucas, muitas ideias nazistas, não nos importamos com as tragédias dos outros, não nos importamos com as injustiças sociais. por que, então, deveríamos ter um futuro?” (Ai Weiwei).

Na ilha grega de Lesbos, Ai Weiwei recria a imagem do menino Aylan, de três  anos, que morreu afogado na Tturquia. Fotografia de Rohit Chawla.

“Barco dos migrantes de ai weiwei, que também nos conduz”. Exposição no CCBB, em Belo Horizonte, de 6 de fevereiro a 15 de abril de 2019. Fotografias: Fernando Rios.

quando vejo os trabalhos de ai weiwei
também me vejo
vejo todos os seres humanos
vejo passado, presente, futuro
porque weiwei, mesmo não acreditando
tece teias de forte urdidura
tece redes de fortes fios
tece carinhos, ternuras, esperanças
tece sua própria boa humanidade
e, no inverso do que proclama,
ajuda a tecer a nossa humana idade
nos propõe um lado bom
que constrói irmandade e paz

5.

cada um de nós está diante de seu mundo particular
dentro do mundo desse mundo do tamanho do mundo
aquele mundo de drummond, se eu me chamasse raimundo…
mas você é duro, raimundo… ou seria josé… buda… cristo… maomé…

somos todos migrantes, temos começo, meio e fim,
nem sempre escolhemos o navegar preciso de pessoa
quase sempre uma imprecisão quase sempre bem pessoal

somos todos migrantes, migrantes de nós mesmos
nascemos do mesmo jeito, morremos do mesmo jeito
mas queremos viver separados, cada um do seu lado

temos todos a mesma mãe áfrica de ancas e útero
temos cabeças, troncos, membros e uma pele
temos um mesmo esqueleto nu com a mesma impressão digital

sabemos que estamos indo, sabemos que estamos vindo
dia e noite, labuta infinita, trabalho, horas de condução
comida fria na marmita, à espera de um corpo quente na noite finita
estamos todos sempre indo e vindo, sem saber de onde para onde

somos todos migrantes, de hora em hora, dia a dia,
esse caminho também tem contentamento, tem euforia,
mas tem também a dolorosa calmaria
que leva a que mares violentos povoados de almas bravias

somos todos migrantes, tanto quando vamos quanto quando vimos
imigrantes nas idas de esperança e planos para o futuro
nas vindas de desesperança e construção de um presente tenebroso

somos todos migrantes, presos na mesma alforria, em busca da liberdade
de viver qualquer paixão, de amar sem guerra, de viver uma vida de harmonia
mas alguém me diz que é preciso mais que trabalho
que é preciso consumir até o  último centavo para ser feliz e contente
não importa quanto isso tenha de egoísmo irracional e doente

somos khôra fora e dentro da pólis, nossos poros respiram falsidade
estamos sob o jugo da eterna mania do lucro e da vantagem?
}onde depositamos nossa ternura? em que conta bancária?
quanto rende esse investimento?
parece que nada, parece que desaparece
e nos tornamos enclausurados na mesmice das telas televisivas
ou nas telas ignotas dos egoísmos celulares
que nos afastam da realidade, ou nos tornam solitários parasitas

6.

a quem oferecemos nosso afeto, a quem damos nosso carinho?
para que humanidade contribuímos?
essa procissão nos leva para um batizado
ou é apenas um tenebroso féretro/velório?

é hora de acabar o palavrório e misturar peles com peles
vozes com vozes, e tirar a carcaça/armadura
que esconde canduras e afetos  possíveis

nus somos mais iguais mesmo com cores informais
temos a mesma fome de amar, de comer, de viver
juntos podemos fazer e refazer nosso vir a ser

nós, migrantes de todo o mundo, podemos nos unir
escolher um bom barco e um porto seguro
e junto com um amigo companheiro solidário afetuoso
sem desatino, construir e caminhar para um bom destino

*Fernando Rios é jornalista, poeta e artista plástico.


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