Por MICHAEL LÖWY*
Benjamin foi um dos primeiros intelectuais da esquerda alemã a denunciar a ideologia do fascismo
O crescimento do fascismo na Itália, Alemanha, Áustria, Espanha, ao longo da primeira metade do século XX, foi muitas vezes apoiado, legitimado e autorizado por argumentos teológico-cristãos. Carl Schmidt é somente o representante mais erudito desse uso reacionário da herança teológica. No entanto, encontra-se também, tanto nos autores cristãos quanto nos judeus, uma hermenêutica teológica a serviço do antifascismo e do socialismo (utópico, libertário ou marxista). Walter Benjamin é um dos representantes mais interessantes dessa abordagem; sua reflexão se inspira especialmente em referências messiânicas judias, mas em seu discurso político-teológico aparecem também figuras e imagens cristãs.
Benjamin foi um dos primeiros intelectuais da esquerda alemã a denunciar a ideologia do fascismo. Em 1930, ele publicou um artigo polêmico contra o culto místico da guerra em Ernst Jünger, sob o título “Teorias do fascismo alemão”. A conclusão desse texto é sem ambiguidade: ao discurso “mágico” sobre a guerra dos fascistas é preciso opor “o golpe de prestidigitação marxista que, sozinho, é capaz de combater este obscuro encanto” – a saber, a metamorfose da guerra em “guerra civil”’.[i] Depois da tomada de poder pelo nazismo e seu exílio (1933), o combate ao fascismo não para de alimentar seus escritos. Prova disso é a renomada conclusão do ensaio sobre “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” (1935): contra a estetização fascista da política, os marxistas devem responder pela politização da arte. Se, nos seus textos, o fascismo aparece como um amálgama estranho de cultura arcaica e modernidade tecnológica, é este segundo aspecto que predomina na segunda metade dos anos 1930.
Em seu último texto, as Teses Sobre o conceito de história (1940), encontramos uma crítica amarga das ilusões da esquerda – prisioneira da ideologia do progresso linear – a respeito do fascismo, que essa ideologia parece considerar uma exceção à norma do progresso, uma “regressão” inexplicável, um parêntese na caminhada para frente da humanidade.
Dois exemplos permitem ilustrar o que quer dizer o autor das Teses:
– Para a social-democracia, o fascismo era um vestígio do passado, anacrônico e pré-moderno. Karl Kautsky, em seus escritos dos anos 1920, explicava que o fascismo só era possível num país semiagrário como a Itália, mas nunca poderia instalar-se em uma nação moderna e industrializada como a Alemanha…
– Quanto ao movimento comunista oficial (stalinista), esse estava convencido de que a vitória de Hitler em 1933 seria efêmera: uma questão de algumas semanas ou alguns meses, até que o regime nazista fosse derrubado pelas forças operárias e progressistas, sob a direção iluminada do KPD (Partido Comunista Alemão).
Benjamin tinha entendido perfeitamente a modernidade do fascismo, sua relação íntima com a sociedade industrial /capitalista contemporânea. Daí a sua crítica, na Tese VIII, aos mesmos que se surpreenderam com o fato de o fascismo “ainda” ser possível no século XX, cegos pela ilusão segundo a qual o progresso científico, industrial e técnico é incompatível com a barbárie social e política. Há de haver, observa Benjamin em uma das notas preparatórias às Teses, uma teoria da história a partir da qual o fascismo possa ser desvelado (gesichtet).[ii] Só uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno como o fascismo, profundamente enraizado dentro do “progresso” industrial e técnico moderno, que era possível, em última análise, só no século XX. A compreensão de que o fascismo pode triunfar nos países mais “civilizados” e que o “progresso” não o fará desaparecer automaticamente nos permitirá aprimorar nosso posicionamento na luta antifascista, pensa Benjamin. Uma luta cujo objetivo supremo é produzir “o verdadeiro estado de exceção”, ou seja, a abolição da dominação, a sociedade sem classes.
A partir de 1933, e mais ainda depois do Tratado de Munich de 1938, a União Soviética aparece aos olhos de Benjamin, como aos de numerosos intelectuais de esquerda em toda a Europa, como o único recurso frente à ameaça fascista, a última barreira às pretensões imperialistas do Terceiro Reich. Em uma carta do dia 3 de agosto de 1938 para Max Horkheimer, ele manifesta, “com muita reserva”, a esperança, “pelo menos por ora”, que se possa considerar o regime soviético – que ele descreve sem adorno como uma “ditadura pessoal com todo o seu terror” – como “o agente dos nossos interesses em uma guerra futura”. Benjamin acrescenta que se trata de um agente que “custa o maior valor imaginável, na medida em que se paga o preço de sacrifícios, que corroem particularmente os interesses que são próximos como produtores” – uma expressão que sem dúvida faz referência à emancipação dos trabalhadores e ao socialismo.[iii] O Pacto Molotov-Ribbentrop (1939) vai minar fortemente esta última ilusão.
É provavelmente a este evento que ele se refere na Tese X, ao falar dos “políticos nos quais os adversários do fascismo tinham colocado a sua esperança”, que “se estendem quase mortos no chão” e “agravam a sua derrota, traindo a sua própria causa”. A expressão procura sem dúvida os comunistas (stalinistas), que “traíram a sua causa” compactuando com Hitler. Mais precisamente, a frase refere-se ao KPD (Partido Comunista Alemão), que, ao contrário do PC soviético, “estendia-se no chão”. Segundo Benjamin, a esperança de um combate consequente contra o fascismo é levantada pelo movimento comunista, muito mais do que pela social-democracia. No entanto, o pacto prejudicou essa esperança. A “traição” designa não somente o acordo entre Molotov e Ribbentrop, como também a sua legitimação pelos diferentes partidos comunistas europeus que adotarão a “linha” soviética.[iv] Na verdade, Benjamin partilha a condenação categórica do tratado com vários outros comunistas alemães dissidentes exilados em Paris, como seu amigo Heinrich Blücher (o marido de Hannah Arendt), Willy Münzenberg ou Manes Sperber.[v]
É também a partir de 1938 que uma dimensão teológica – muito presente nos seus escritos de juventude – vai reaparecer nos seus trabalhos e impregnar de maneira forte sua reflexão antifascista – que não deixa de se referir ao materialismo histórico marxiano.
Nesse ano, Benjamin publica um artigo sobre o romance da escritora comunista judia-alemã exilada, Anna Seghers, Dis Rettung (O resgate), sob o título “Uma crônica dos desempregados alemães” (1938). Esse texto surpreendente em vários aspectos pode ser considerado um tipo de sequência do grande ensaio sobre “O Narrador” de 1936: Seghers é apresentada não como romancista, mas sim como narradora (Erzähkerin), e seu livro como uma crônica (Chronik), o que lhe confere um alto valor espiritual e político. Benjamin compara a arte dela àquela das miniaturas de antes da perspectiva, ou dos cronistas da Idade Média, cujas personagens vivem em uma época que “percebe o Reino de Deus como uma catástrofe”. A catástrofe que se abateu sobre os desempregados e os trabalhadores alemães, o Terceiro Reich, é o exato oposto desse Reich Gottes: “ela é algo como a sua imagem invertida (Gegenbild), o advento do Anticristo. Como se sabe, este imita a benção prometida pela era messiânica. De maneira análoga, o Terceiro Reich imita o socialismo”.[vi] O que Benjamin esboça aqui – sobre a um romance de inspiração comunista! – é um tipo de crítica teológica, judaico-cristã, do nazismo como falso messias, como anticristo, como manifestação diabólica de um espírito do mal, enganador e esperto. Como se sabe, o Anticristo é uma figura arcaica que aparece pela primeira vez nas epístolas de João, mas que tira suas origens na noção de antimessias já presente no judaísmo. De natureza escatológica, ela designa um impostor maléfico que tenta, pouco antes do fim do mundo, substituir-se a Jesus Cristo.
O socialismo é assim interpretado, teologicamente, por Benjamin como o equivalente da promessa messiânica, enquanto o regime de Hitler, esta imensa mistificação que se proclama “socialista nacional”, se aparenta com o Anticristo, isto é, das potências infernais: a expressão “inferno nazista radiante” (die strahlende Nazihölle) aparece mais à frente no texto. Benjamin tinha provavelmente se inspirado, para esboçar esse paralelo surpreendente, nos escritos do seu amigo e correspondente, o teólogo protestante – e socialista revolucionário militante – suíço Frits Lieb, que, desde 1934, tinha definido o nazismo com Anticristo moderno. À ocasião de uma palestra em 1938, Lieb tinha expressado sua esperança de ver a derrota do Anticristo em um último combate contra os Judeus, a aparição do Messias – o Cristo – e o estabelecimento do seu Reino milenar.[vii]
Depois de ter homenageado Anna Seghers por ter reconhecido, corajosamente e sem ambiguidade, o fracasso da revolução na Alemanha, Benjamin conclui seu texto com uma pergunta angustiada: “Esses seres humanos poderão se liberar?” (Werden sich diese Menschen befreien?) A única esperança seria uma Redenção (Erlösung) – mais um conceito messiânico –, mas de onde é que ela viria? A resposta, dessa vez, é profana: a salvação virá das crianças, as crianças proletárias das quais o romance fala.
O conceito de “Anticristo” é encontrado novamente nas Teses de 1940. Na Tese VI, “o messias não vem só como redentor, mas como vencedor do Anticristo”. Ao comentar este trecho, Tiedemann constata um paradoxo inusitado: “Em nenhum outro lugar, Benjamin fala de maneira tão diretamente teológica, mas em nenhum outro lugar ele tem uma intenção tão materialista”. É preciso reconhecer no Messias a classe proletária e no Anticristo as classes dominantes.[viii]
A observação é pertinente, mas teria de adicionar algumas precisões. Benjamin é consciente de que as massas proletárias podem ser mistificadas pelo fascismo. Em um artigo redigido para a Conferência de Pontigny sobre Baudelaire (1939), Benjamin observava que as multidões estão hoje “moldadas pelas mãos dos ditadores”. Mas ele não perde a esperança de “vislumbrar, nas multidões submissas, núcleos de resistência – núcleos que formaram as massas revolucionárias de Quarenta e oito e os communards”.[ix] Em outros termos: em um momento de extremo perigo, apresenta-se uma constelação salvadora ligando o presente ao passado. Um passado onde brilha, apesar de tudo, na sombra noite do fascismo triunfando, a estrela da esperança, a estrela messiânica da redenção – o Stern der Erlösung de Franz Rsenzweig – a faísca da insurreição revolucionária.
Segundo Benjamin, o equivalente – o “correspondente”, no sentido das correspondências de Baudelaire – profano do Messias são, hoje, os núcleos de resistência antifascistas, as futuras massas revolucionárias herdeiras da tradição de junho de 1848 e de abril e maio 1871. Quanto ao Anticristo – que ele não hesita a integrar dentro do seu argumento messiânico de inspiração explicitamente judia –, seu homólogo secular não são, como vemos acima, as “classes dominantes no geral”, mas o Terceiro Reich hitleriano.
Como esta teologia messiânica pode se articular com o materialismo histórico?
Essa pergunta é claramente destrinchada por Benjamin na Tese I. Para dar conta dessa associação paradoxal entre o materialismo e a teologia, Benjamin vai criar uma alegoria irônica: um autômato jogador de xadrez – o materialismo histórico – que pode ganhar cada jogo graças a um anão escondido dentro do aparelho – a teologia.
Vamos tentar decifrar o significado dos elementos que compõem essa alegoria estranha. Primeiro, o autômato: é um boneco ou fantoche “que chamamos ‘materialismo histórico’”. O uso das aspas e a forma da frase sugerem que este autômato não é o “verdadeiro” materialismo histórico, mas o que é comumente chamado assim. “Comumente” por quem? Os principais porta-vozes do marxismo na época, isto é, os ideólogos da Segunda e da Terceira Internacional. Segundo Benjamin, o materialismo histórico se torna efetivamente, nas mãos deles, um método que enxerga a história como um tipo de máquina dirigindo automaticamente ao triunfo do socialismo. Para este materialismo mecânico, o desenvolvimento das forças produtivas, o progresso econômico, as “leis da história”, levam necessariamente, automaticamente, à crise final do capitalismo e à vitória do proletariado (versão comunista) ou às reformas que transformarão gradativamente a sociedade (versão social-democrata). No entanto, esse autômato, esse fantoche, esse boneco mecânico, não é capaz de ganhar o jogo.
“Ganhar o jogo” tem um duplo sentido aqui:
– interpretar corretamente a história, lutar contra a visão da história dos opressores;
– vencer o inimigo histórico propriamente dito, as classes dominantes – em 1940: o fascismo.
Os dois sentidos são para Benjamin intimamente ligados, na unidade indissolúvel entre teoria e prática: sem uma interpretação correta da história, fica difícil, senão impossível, lutar de maneira eficaz contra o fascismo. A derrota do movimento operário marxista – na Alemanha, na Áustria, na Espanha, na França – frente ao fascismo demostra a incapacidade deste boneco sem alma, deste autômato sem sentido, de “ganhar o jogo” – uma partida onde se joga o futuro da humanidade.
Para vencer, o materialismo histórico precisa da ajuda da teologia: é o anão escondido dentro da máquina. Essa alegoria é, como se sabe, inspirada em um conto de Edgar Allan Poe – traduzido por Baudelaire – que Benjamin conhecida muito bem: “O jogador de xadrez de Maelzel”. Trata-se de um autômato jogador de xadrez apresentado em 1769 na corte de Viena pelo barão Wolfgang von Kempelen e que terminará, depois de diversas peripécias, nos Estados Unidos, em uma turnê organizada por um inventor-empreendedor vienense, Johann Nepomuk Maelzel. Poe descreve esse autômato como uma figura “vestida à la turque”, cuja “mão esquerda segura um cachimbo” e que, se fosse uma máquina “sempre deveria ganhar” as partidas de xadrez. Uma das hipóteses de explicação de Poe é que um anão, previamente escondido dentro do aparelho, “fazia a máquina se mexer”. A similitude – quase palavra por palavra – com a Tese I é óbvia.[x]
A meu ver, a ligação entre o texto de Poe e a Tese de Benjamin não é somente anedótica. A conclusão filosófica de “O jogador de xadrez de Maelzel” é a seguinte: “É certeza que as operações do autômato são regidas pelo espírito e não por alguma outra coisa”. O espírito de Poe torna-se em Benjamin a teologia, isto é, o espírito messiânico, sem o qual o materialismo histórico não pode “ganhar o jogo”, nem a revolução triunfar do fascismo.
Parece-me que Ralph Tiedemann está enganado quando, no seu livro sobre as Teses de Benjamin – aliás, muito interessante – escreve: “O anão teológico está morto também, pois ele se tornou uma peça de um aparelho morto. O conjunto do autômato está morto, e já representa talvez o campo de morte e as ruínas da Tese IX.”[xi] Se o conjunto, anão inclusive, estivesse morto e fosse arruinado, como ele pode ganhar o jogo contra o adversário? O que a tese sugere é exatamente o contrário: graças à ação vivificante do anão o conjunto se torna vivo e ativo.
A teologia, como o anão na alegoria, atualmente não pode agir senão de maneira oculta, no interior do materialismo histórico. Em uma época racionalista e agnóstica, ela é uma “velha feia e encolhida” (tradução de Benjamin) que tem de ser esconder…. Curiosamente, Benjamin não parece se conformar com essa regra, pois nas Teses, a teologia é realmente visível. Talvez se trate de um conselho aos leitores do documento: usem a teologia, mas não a mostrem. Ou então, na medida que o texto não era destinado à publicação, não era necessário esconder o anão corcunda dos olhares do público. De qualquer modo, o raciocínio é análogo ao de uma nota do Livro das Passagens Parisienses, que Benjamin tinha integrado aos materiais preparatórios das Teses: “Meu pensamento se comporta em relação à teologia como o mata-borrão com tinta. Ele é totalmente impregnado dela. Mas se o mata-borrão dominasse, nada do que está escrito existiria”.[xii] Mais uma vez, a imagem de uma presença determinante – porém invisível – da teologia no coração do pensamento “profano”. Aliás, a imagem é bastante curiosa: na verdade, como sabem os que praticaram este instrumento agora em desuso, rastros do escrito com tinta sempre ficam na superfície do mata-borrão, porém espelhadas!
O que significa “teologia” para Benjamin? O termo remete a dois conceitos fundamentais: a rememoração (Eingedanken) e a redenção messiânica (Erlösung). Os dois são componentes essenciais do novo “conceito de história” que as Teses constroem.
Como, então, interpretar a relação entre a teologia e o materialismo? Essa questão está apresentada de maneira eminentemente paradoxal na alegoria: primeiro o anão teológico aparece como sendo o mestre do autômato, do qual ele se serve como um instrumento; no entanto, no fim, está escrito que o anão está “ao serviço” do autômato. O que significa esta inversão? Uma hipótese seria que Benjamin quer mostrar a complementaridade dialética entre os dois: a teologia e o materialismo histórico são às vezes mestre, às vezes servo, eles são ao mesmo tempo o mestre e o servo um do outro, eles precisam um do outro.
Há de se levar a sério a ideia segundo a qual a teologia está “a serviço” do materialismo – fórmula que inverte a tradicional definição escolástica da filosofia como ancila theologiae, “servidora da teologia”. A teologia para Benjamin não é um objetivo em si, ela não pretende a contemplação inefável das verdades eternas, e ainda menos, como indica a sua etimologia, a reflexão sobre a natureza do Ser divino: ela está a serviço da luta dos oprimidos. Mais precisamente, ela deve servir para reestabelecer a força explosiva, messiânica, revolucionária, do materialismo histórico – reduzido a um miserável autômato por seus epígonos. O materialismo histórico do qual Benjamin trata nas teses seguintes é o que resulta dessa vivificação, dessa ativação espiritual pela teologia.
Segundo Gerhard Kaiser, nas Teses, Benjamin “teologiza o marxismo. O verdadeiro materialismo histórico é a verdadeira teologia […]. Sua filosofia da história é uma teologia da história”. Esse tipo de interpretação destrói o equilíbrio delicado entre as duas componentes, reduzindo uma à outra. Qualquer reducionismo unilateral – num sentido como no outro – é incapaz de dar conta da dialética entre teologia e materialismo e sua necessidade recíproca.
No sentido invertido, Krista Greffrath acha que “a teologia das Teses é uma construção auxiliar […] necessária para arrancar a tradição do passado das mãos dos seus gestores atuais”. Essa interpretação corre o risco de dar uma visão exageradamente contingente e instrumental da teologia, quando se trata na verdade de uma dimensão essencial do pensamento de Benjamin desde seus primeiros escritos de 1913.
Por fim, Heinz-Dieter Kittsteiner acredita perceber uma espécie de distinção de funções entre o boneco e o anão: “O materialismo histórico enfrenta o presente como marxista, o passado como teólogo da rememoração.” Porém, essa divisão do trabalho não condiz com as ideias de Benjamin: segundo ele, o marxismo é tão necessário para a compreensão do passado quanto a teologia para a ação presente e futura.[xiii]
A fim de entender melhor a significação do messianismo em Benjamin, é útil analisar uma passagem importante da Tese II: “Existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Então, alguém na Terra esteve à nossa espera. Se assim é, foi-nos concedida, como a cada geração anterior à nossa, uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo”. Em outros termos, a redenção messiânica/revolucionária é uma tarefa que nos é atribuída pelas gerações passadas. Não tem Messias mandado do céu: nós somos o messias, cada geração detém uma parcela do poder messiânico que ela tem que exercitar.
A hipótese herética, do ponto de vista do judaísmo ortodoxo, de uma “força messiânica” (messianische Kraft) atribuída aos humanos está apresentada igualmente em outros pensadores judeus de Europa central, como Martin Buber.[xiv] Porém, enquanto, para ele, trata-se de uma força auxiliar, que nos permite cooperar com Deus na obra da redenção, em Benjamin essa dualidade parece apagada – no sentido de aufgehoben. Deus é ausente e a tarefa messiânica é inteiramente entrega às gerações humanas. O único messias possível é coletivo: a humanidade mesma – e mais precisamente, como veremos mais à frente, a humanidade oprimida. Não se trata de esperar o Messias, ou de calcular o dia da sua chegada – como nos cabalistas e outros místicos judeus praticantes da guématria –, mas de agir coletivamente. A redenção é uma autorredenção, da qual podemos encontrar o equivalente profano em Marx: os homens fazem a sua própria história, a emancipação dos trabalhadores será a obra dos trabalhadores mesmos.
Por que este poder messiânico é fraco (schwache)? Essa é talvez a conclusão melancólica que tira Benjamin dos fracassos passados e presentes do combate emancipador. A redenção é tudo menos certa; é somente uma pequena possibilidade que se deve saber agarrar.
Segundo Jürgen Habermas, o direito que o passado exerce sobre o nosso poder messiânico “só pode ser respeitado se renovar constantemente o esforço crítico do olhar que enxerga um passado histórico reclamando sua liberação”.[xv] Essa observação é legítima, no entanto demasiada restritiva. O poder messiânico não é unicamente contemplativo – “o olhar sobre o passado”. Ele também é ativo: a redenção é uma tarefa revolucionária que se realiza no presente. Não se trata só de memória, mas, como lembra a Tese I, trata-se de ganhar o jogo contra um adversário potente e perigoso: o fascismo. Se o profetismo judeu é ao mesmo tempo a lembrança de uma promessa e o chamado para uma transformação radical, em Benjamin a potência da tradição profética e a radicalidade da crítica marxista se unem na exigência de uma salvação que não é a simples restituição do passado, mas a transformação ativa do presente. Em setembro de 1940, Benjamin foi detido pela polícia espanhola em Port-Bou, na fronteira entre a França de Vichy e a Espanha de Franco. Ameaçado de ser entregue à Gestapo, ele escolhe o suicídio: este foi seu último ato de resistência ao fascismo.
*Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (França); autor, entre outros livros, de Walter Benjamin: aviso de incêndio (Boitempo).
Tradução: Paolo Colosso.
[i] W. Benjamin, “Théories du fascisme allemande”, 1930, in Oeuvres II, Gallimard, “Folio-essais”, 2000, p. 215.
[ii] W. Benjamin, Gesammelte Schriften (GS), Francfort/Main: Suhrkamp, 1980, Bd. I, 3, p. 1244.
[iii] Carta citada por T. Tiedemann, Dialektik im Stillstand. Versuche zum Spätwerk Walter Benjamins, Francfort/Main: Suhrkamp, 1983, p. 122.
[iv] Um exemplo do que Benjamin sentia como traição ao combate antifascista: o Conselho Central do KPD adota em julho de 1939 uma resolução que, reafirmando sua oposição a Hitler, “louva o tratado de não agressão entre a União Soviética e a Alemanha” e pede “o desenvolvimento de relações econômicas com a URSS dentro do espirito de uma amizade sincera e sem reserva entre os dois países”! (Cf. Theo Pirker (éd.), Utopie und Mythos der Welt-revolution. Zur Geschichte der Komintern 1920-1940, Munich: DTV, 1964, p. 286).
[v] Sem falar de Léon Trotsky, que, desde o seu exilo no México, tinha denunciado o tratado como uma verdadeira “traição” que tinha feito de Stalin “o novo amigo de Hitler”, e seu “mordomo” (fornecedor de matérias-primas). Cf. Seus artigos do dia 2 até o dia 4 de setembro de 1939 em Léon Trotski, Sur la Deuxième Guerre mondiale, textos compilados e com prefácio de Daniel Guérin, Bruxelles: Éditions La Taupe, 1970, p. 85-102.
[vi] W. Benjamin, “Eine Chronik der deutschen Arbteitlosen”, GS, III, p. 534-535.
[vii] Cf. Chrissoula Kambas, “Wider den ‘Geist der Zeit’. Die anti-faschitische Politik Frits Liebs und Walter Benjamin”, in J. Taubes (éd.), Der Fürst disser Welt. Carl Schmitt und die Folgen, Munich, Fink, 1983, p. 582-583. Lieb e Benjamin partilhavam a convicção de que havia de resistir ao fascismo com armas na mão.
[viii] R. Tiedmann, “Historischer Materialismus oder politischer Messianismus? Politische Gehalte in der Geschichtsphilosophie Walter Benjamins”, in P. Bulthaup (éd.), Materialen zu Benjamins Thesen, Francfort/Main: Suhrkamp taschenbuch, 1975, p. 93-94.
[ix] Walter Benjamin, “Notes sur les Tableaux parisiens de Baudelaire”, 1939, GS, I, 2, p. 748.
[x] Edgar Allan Poe, “Le Joueur d’échec de Maelzel”, in Histoires grotesques et sérieuses, trad. de Charles Baudelaire, Paris: Folio, 1978, p. 100-128.
[xi] R. Tiedemann, Dialektik im Stillstand.Versuche zum Spätwerk Walter Benjamins, p.118.
[xii] GS I, 3, p. 1235.
[xiii] Os artigos de G. Kaiser, K. Greffrath e H-D Kittsteiner encontram-se em Peter Bulthaup (éd.), Material zu Benamins Thesen ‘Über den Begriff der Geschiste’, Francfort/Main: Suhrkamp, 1975.
[xiv] Segundo Buber, para o judaísmo hassídico, Deus não quer a redenção sem a participação dos seres humanos: foi acordada às gerações humanas uma “força cooperadora” (mitwirkende Kraft), uma força messiânica (messianische Kraft) atuante. M. Buber, Die Chassidische Bücher, Berlin: Schoken, 1927, p. XXIII, XXVI, XXVII.
[xv] J. Habermas, “L’actualité de W. Benjamin”, Revue d’Ésthétique, n.1, 1981, p. 112.