Theodor Adorno e o jazz

Imagem: Steve Johnson
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Por CELSO FREDERICO*

A implicância adorniana com o jazz tem como pano de fundo a crítica ao seu caráter mercantil

Para se entender as incursões de Adorno no jazz faz-se necessário lembrar inicialmente que a música, como a arte em geral, para ele, é portadora de um significado, que ela é uma objetivação significativa.

Nesse primeiro momento, estamos na perspectiva aberta por Hegel. Em sua Estética, Hegel considerava a arte como parte orgânica do sistema filosófico e ele subordinado. Desse modo, o filósofo marca sua oposição contrária àqueles que veem a arte como manifestação imediata da imaginação indisciplinada, da intuição e dos sentidos, uma esfera, portanto, anterior à razão. Pela mesma razão diferencia-se também do criticismo kantiano que entende a arte como uma “finalidade sem fim”, um “interesse desinteressado”.

A filosofia e a arte, para Hegel, visam ao mesmo fim: a verdade. O caráter cognitivo da arte expressa, ao mesmo tempo, um momento determinado do autodesenvolvimento do Espírito e a forma através da qual o homem se diferencia da natureza, se exterioriza, fazendo a si mesmo objeto de contemplação. A arte, dessa maneira, é portadora de um sentido que interpela e desafia os homens. Arte e filosofia caminham juntas, afinal são manifestações do Espírito.

O caráter racional da arte, em Adorno, além da herança hegeliana apoia-se na sociologia de Weber que a situa no interior do processo geral de racionalização que caracteriza a cultura do Ocidente, diferenciando-a das demais culturas. Esse referencial se faz acompanhar da temática da reificação desenvolvida por Lukács em História e consciência de classe.

Partindo dessas referencias, Adorno interpreta a música como parte de um processo histórico mutável, parte integrada e subordinada ao processo geral de racionalização do mundo ocidental. Com isso, sobe para o primeiro plano caráter cognitivo da música. Curiosamente, a emoção que a música produz no ouvinte só é referida de modo negativo, como resultado da manipulação dos sentidos humanos.

Na Filosofia da nova música afirmou: “Até hoje a música existiu somente como produto da classe burguesa que incorpora como contraste e imagem toda a sociedade e a registra ao mesmo tempo esteticamente. O feudalismo nunca produziu uma música “sua”, mas sempre se fez prover da da burguesia urbana, enquanto o proletariado, simples objeto de domínio da sociedade total, sempre lhe foi impedido, por sua própria constituição ou por sua oposição ao sistema, constituir-se em sujeito musical (…). No momento atual cabe duvidar de que exista uma música que não seja burguesa” (ADORNO: 1975, pp. 74-5) .

As diversas músicas do mundo, suas diversidades e características próprias são, assim, solenemente descartadas nessa interpretação restrita e, digamos, preconceituosa. Confinada ao processo de racionalização, a música ocidental, em sua história, conheceu momentos fundamentais destacados na análise de Adorno.

O primeiro momento, o da música tonal, se expressou através de Carlo Jesualdo e, principalmente, Bach. Contra as interpretações que procuram vincular Bach à teologia medieval, transformando-o num “compositor eclesiástico”, Adorno, recorrendo à história, lembrou que Bach foi contemporâneo dos enciclopedistas e que suas composições, como o Cravo bem temperado, tem “no próprio título, (…) uma declaração de pertencimento ao processo de racionalização”. Na polifonia e no contraponto se comprovariam o caráter matemático da obra de Bach.

O segundo momento é representado por Haydn, Mozart e Beethoven, compositores que expressam o caráter afirmativo da visão do mundo de uma burguesia revolucionária, num momento em que o universal e o particular pareciam estar conciliados na realidade social e na música. O pleno triunfo da tonalidade é algo adaptado harmoniosamente ao “espírito objetivo da época”. Adorno recorre a Weber para relacionar a música à economia monetária burguesa, à qual ela se subordinou: a música tonal “evoluiu cada vez mais para um momento de comparação de tudo com tudo, para a nivelação e a convenção. O sinal mais simples disso é que os acordes principais do sistema tonal podem ser colocados em inúmeras passagens, como se fossem formas de equivalência do sempre idêntico com o sempre diferente” (ADORNO: 1986, p.151).

Na sequência, Adorno refere-se ao novo período histórico que tem sua expressão musical em Wagner, assinalando a decadência da música tradicional e antecipando o advento do nazismo. Aqui, não há crítica baseada no material artístico, mas apenas uma derivação do conteúdo musical ao anti-semitismo do compositor. De resto, o caráter generalizador da crítica adorniana que não faz justiça a Wagner rotulado, sem mais, como “herdeiro e assassino do romantismo”. Toda a argumentação se baseia na tese da “decadência ideológica da burguesia”, tese repudiada por Adorno em suas críticas virulentas à teoria literária de Lukács. Ferenc Fehér não deixou escapar essa referência à decadência ideológica : “não sem regozijo observo como Adorno que se lançou a essa selvagem crítica de Lukács, tem a sua própria que situa o limite em que as capacités de la bourgeoisie s’en vont exatamente no mesmo ponto em que Marx e Lukács, isto é, depois da derrota da revolução proletária de Paris em junho de 1848”. (FEHÉR: 1989, p. 108).

O mundo moderno, momento da máxima racionalização, se expressa musicalmente, de um lado, pela tendência “restauradora”, representada por Stravinski e, de outro, pelo “progresso” musical representado pela música atonal de Schönberg que não recorre mais à interação entre o geral e o particular como fazia Beethoven, pois recusa a totalização em nome de uma agressiva fragmentação. Em oposição irreconciliável com a realidade, a nova arte “acolhe em si as contradições de maneira tão firme que já não é possível superá-las” (ADORNO: 1974, p. 101). A dialética negativa realizou-se plenamente na música atonal: sem possibilidade de síntese, “a contradição fica interrompida” (p. 106). Ela representa a “divergência absoluta” – daí a reação raivosa que provoca no ouvinte apegado à segurança da música tonal.

Como se pode ver, tal música não se dirige mais “ao grande passado burguês”, mas ao indivíduo “abandonado ao seu isolamento no último período burguês”. A música dodecafônica tem como momento constitutivo “o momento do absurdo ou falta de sentido” (pp. 101, 106, 52 e 103), modo retorcido de tentar conferir sentido a um mundo sem sentido. A mudança é radical. Em épocas anteriores, a música era “comunicável”: surgida do estilo recitativo ela, desde o início, imitava a linguagem falada. Agora, contrariamente, ela “renuncia ao engano da harmonia, engano que se tornou insustentável frente a uma realidade que está marchando para a catástrofe. O isolamento da nova música radical não deriva de seu conteúdo associal, pois, mediante sua única qualidade (…) indica a desordem social, ao invés de volatizá-la no engano de uma humanidade entendida como já realizada” (…). “A desumanidade da arte deve sobrepujar a do mundo por amor ao homem” (pp. 105-6).

Chegando a esse ponto, podemos entender a implicância de Adorno para com o jazz, estilo musical em tudo divergente do cânon que lhe serve de critério para avaliar as produções musicais da modernidade. São três os principais momentos em que investe diretamente contra o jazz, mas as farpas estão presentes em diversas obras, inclusive na inacabada Teoria estética.

Em 1933, os nazistas no poder proibiram as rádios de transmitirem jazz, música “decadente”, produto da “miscigenação”. Adorno apoiou a medida argumentando que o “drástico veredicto” “apenas confirma” um fenômeno que “objetivamente já fora há muito tempo decidido: o fim do jazz por si mesmo” (ADORNO: 1996, p. 795) . Em sua extensa biografia, Stefan Müller-Doohm, lembrou as hesitações de Adorno que ingenuamente pensava em permanecer na Alemanha “a qualquer preço”, como escreveu numa carta. Quanto ao decreto nazista proibindo o jazz, afirmou o biógrafo: “Seu comentário sobre a proibição da “música da raça negra” (artfremde Musik) não expressava uma conformidade direta, não obstante afirmava erroneamente que, com o decreto, se sancionava post factum o que já havia sucedido desde o ponto de vista musical: “o fim da própria música de jazz”. Segundo o artigo, já não havia no jazz nada para defender ou salvar, posto que se encontrava, já há tempo, em processo de dissolução, em fuga para marchas militares e todo tipo de folclore”. O jazz desapareceria, segundo ele, da cena da produção artística autônoma por “estupidez”. Com a dissolução espontânea do jazz, “não se elimina a influência da raça negra sobre a música do hemisfério norte, nem tampouco um bolchevismo cultural, mas somente um elemento de atividade artística de má qualidade” (MÜLLER-DOOHM: 2003, p. 256).

Apesar do anúncio fúnebre, o jazz felizmente não acabou… Exilado em Oxford, Adorno poucos anos depois esboçou um projeto para pesquisar o jazz, que, por falta de verbas, foi abandonado. Mais em frente, enviou para a revista do Instituto o ensaio “Sobre o jazz”, assinado com o sugestivo pseudônimo de Hektor Rottwailer.

O objetivo de Adorno, entendendo a música com um fato social, era explorar as relações entre a estrutura interna do jazz e o seu correspondente social, vale dizer, as contradições sociais. Com isso, se desvelaria a verdade presente na música, sua determinação social, já que ela expressa tendências sociais objetivas. Esse enfoque metodológico guarda certas semelhanças com a homologia das estruturas em Lucien Goldmann, o que não é de surpreender quando lembramos que ambos partem das ideias estéticas do jovem Lukács.

Como produção musical, o jazz, para Adorno, é formado por “estereótipos rígidos” e todos os seus elementos formais “estão pré-formados de maneira completamente abstrata pela exigência capitalista da intercambialidade”. Embora procure disfarçar, o jazz é uma mercadoria, regida como as outras pelas leis do mercado. Ao contrário da música erudita, guiada por uma lei formal autônoma, o jazz é dominado por sua função. Por isso, é sempre a repetição de um modelo com alterações superficiais, permanece constantemente o mesmo simulando ser uma novidade. Por isso, à figura do compositor juntam-se o arranjador e o editor para adequar a música às necessidades do mercado.

Ser consumido por todas as classes, apresentar-se como um produto de massa que pretensamente se oporia ao isolamento da música autônoma, não significa democratização, mas, contrariamente, submissão. O jazz não representa a revolta dos negros, mas sua integração nos mecanismos de dominação – “uma confusa paródia do imperialismo cultural”. A música arcaico-primitiva dos escravos passou a ser pré-fabricada não mais para os “selvagens”, mas os “servos domesticados”, o que acentua “os traços sado-masoquistas do jazz”.

O improviso jazzístico não tem nada de libertador, pois representa mais uma das “tentativas de evasão do mundo das mercadorias fetichizadas”: “com o jazz uma subjetividade impotente se precipita do mundo das mercadorias para o mundo das mercadorias; o sistema não deixa nenhuma escapatória”. Música nascida da junção entre as bandas militares e a dança de salão, o jazz tomou da primeira o modelo de orquestra e, por isso, “se adapta bem a seu uso pelo fascismo” (ADORNO: 2008, pp. 92, 93 e 102).

Vinte anos depois, a persistência do jazz que Adorno condenara à morte, levou-o a escrever o ensaio Moda intemporal – sobre o jazz. O jazz, disse ele, não morreu por razões econômicas: ele tornou-se uma mercadoria – “a imortalidade paradoxal do jazz tem o seu fundamento na economia” (ADORNO: 1998, p.121). Enquanto a moda reconhece sua efemeridade, o jazz pretende-se intemporal.

A análise técnica permanece a mesma do ensaio anterior: “o jazz é uma música que combina a mais simples estrutura formal, melódica, harmônica e métrica com um decurso musical constituído basicamente por síncopas de certo modo perturbadoras, sem que isso afete jamais a obstinada uniformidade do ritmo quaternário básico, que se mantém sempre idêntico” (p. 117). A “mesmice do jazz”, diz Adorno, parece não cansar um público submetido ao estímulo monótono.

O caráter conformista também é reiterado. A aparente rebeldia está atrelada à “disposição à obediência cega, da mesma forma como, segundo a psicologia analítica, o tipo sadomasoquista se rebela contra a figura do pai, mas mesmo assim o admira secretamente, deseja igualar-se a ele, mas aprecia a odiosa submissão”. No mundo administrado, nada escapa à dominação. Por isso, o que se apresenta como liberdade no jazz, o improviso, é considerado “ramo do negócio”. A rotina a que estamos submetidos “não deixa mais espaço para a improvisação, e o que aparece como sendo espontâneo foi estudado cuidadosamente com precisão maquinal” (pp. 118 e 119).

Capturado pela lógica mercantil, o jazz é apenas mais uma expressão da indústria cultural: um artigo estandardizado feito para o consumo massivo, um produto sempre igual, estático, que desconhece história e rupturas. Música e sociedade convergem assim numa homologia. A moda intemporal do jazz “torna-se parábola de uma sociedade petrificada”, uma sociedade que evita se modificar para “não entrar em colapso” (p. 118).

Ao lado da produção e reprodução, suas vítimas, os consumidores, aceitam e reforçam a dominação ao acolherem o que lhes é imposto e se recusarem a qualquer elemento novo que escape da mesmice. Fecha-se, assim, um círculo de ferro. Os fãs do jazz, que se chamavam a si mesmos de jitterbugs (besouros), em seu desejo de se sentirem partes de uma comunidade se entregam à servidão. O comportamento deles “assemelha-se à seriedade animalesca dos séquitos nos Estados totalitários” (p.126). Recorrendo à teoria psicanalítica, Adorno afirma que o objetivo do jazz é a reprodução mecânica de um momento regressivo, “uma simbologia da castração, cujo significado talvez seja o seguinte: deixe a sua pretensa masculinidade de lado, deixe-se castrar, como proclama e zomba o som eunuco da jazz-band, pois fazendo isso você receberá uma recompensa, o ingresso em uma fraternidade que compartilha com você o segredo da impotência, a ser revelado no rito da iniciação” (p. 127).

A truculência da crítica adorniana não ficou sem resposta. Um dos principais estudiosos e divulgadores do jazz na Alemanha, Joachim-Ernest Berendt, escreveu uma réplica em que procurou desmontar os argumentos de Adorno.

Berendt inicia o texto afirmando ser equivocado incluir o jazz na música comercial. Jazz sempre foi música de minorias, afirmação que ele repetirá na abertura de sua enciclopédica obra O livro do jazz. Nada, portanto, ligado à indústria cultural, pois desde o final dos anos 1930 nenhuma música de jazz figurou na lista dos maiores sucessos. Viver de jazz não era nada fácil: o clarinetista Sidney Bechet, um dos músicos que mais participou de gravações, “abriu uma alfaiataria numa rua imunda do Harlem, com a qual ele ganhou, em suas próprias palavras, “muito mais dinheiro do que teria conseguido tocando”, e o saxofonista Stan Getz, conhecido mundialmente, precisou arrumar um emprego na Orquestra Sinfônica da NBC para sobreviver (BERENDET: 2014, p. 6). (O tradutor do texto, Frank Michael Carlos Kuehn, lembrou que Getz só se livrou das dificuldades financeiras nos anos 60 graças ao sucesso de sua gravação de Desafinado, de Tom Jobim).

No que diz respeito à análise técnica, Berendt observou que o jazz se caracteriza por três elementos: “a improvisação, o modo hot de sua impostação sonora e a sobreposição de camadas rítmicas diversas”. Munido de sólidos conhecimentos musicais, o autor desenvolve cada um desses elementos para contrapor-se à argumentação de Adorno.

Fiquemos com o primeiro e o mais importante. Ao contrário da música comercial em que o instrumentista toca nota por nota o que está escrito na partitura, o jazz se abre à improvisação, ausente durante dois séculos na música europeia. Contra a afirmação de Adorno segundo a qual os músicos decoravam minuciosamente seus improvisos, perguntou: “Será que ele desconhece que nenhum dos grandes músicos de jazz tocou o mesmo solo duas vezes? Existem gravações de Louis Armstrong dos anos 1920 e de Charlie Parker dos anos 1940 que, devido a problemas técnicos, compõem-se de diversas versões feitas num mesmo dia e posteriormente reunidas num único disco. Tais gravações são a prova cabal de que nenhum deles repetiu um compasso sequer do que tocara na gravação anterior do mesmo tema” (p. 9).

Berendt ainda analisa a estrutura harmônica do jazz e suas relações com o impressionismo, a parte rítmica e o caráter expressivo do jazz, gênero em que, ao contrário da música tradicional, a expressão é mais importante que a beleza (o modo hot da expressão sonora).

Em sua breve tréplica (ADORNO: 1998), Adorno reitera sua crítica, ao afirmar que o procedimento rítmico é o mesmo no jazz refinado e na música comercial. Quanto à harmonia, critica a “docilidade” e o caráter “convencional” de quem retorna a Stravinsky e à tonalidade achando que isso é moderno, sem ter ouvidos para entender a sonoridade emancipada de Schönberg. Finalmente, afirma uma vez mais que o jazz serve ao conformismo por conta de seu caráter sadomasoquista. A integração do indivíduo ao coletivo, sua submissão à regularidade do ritmo, a humilhação dos músicos negros apresentados ao público jazzista como “palhaços excêntricos” etc.

O veredicto generalizador de Adorno, ao contrário de suas afirmações metodológicas em defesa da análise histórica e do estudo imanente, congelou o jazz num momento passageiro de sua evolução – mas, mesmo aí, a análise é equivocada. Como fruto da miscigenação, o jazz desde suas origens foi marcado pela capacidade de receber as mais diferentes influências. Além dos ritmos africanos e das harmonias inspiradas no impressionismo francês, ele comportou-se como um camaleão em constante mudança, fundindo-se com várias formas de expressão musical. Berendt e Huesmann, em O livro do jazz, exploram cuidadosamente o intercâmbio musical no jazz. Dizem os autores: “Até a época do cool jazz, os jazzistas provaram e exploraram praticamente tudo o que puderam na história da música europeia entre o barroco e Stockhausen” (BERENDET & HUESMANN: 2004, p. 48). Depois, a conversão de muitos músicos negros ao islamismo, incorporou a música feita nos países árabes, sem contar as influências da música feita na Índia e Espanha (o flamenco). Finalmente, a partir dos anos 60, o jazz sufocado pelo sucesso massivo do rock, encontrou um momento de sucesso ao encontrar-se com a bossa-nova.

Quem soube fazer bom uso das pesquisas de Berendt (atualizadas periodicamente por Huesmann) foi o historiador Eric Hobsbawn. A sua História social do jazz classifica o gênero como “um dos fenômenos mais significativos da cultura mundial do século XX”, e assinala como características básicas: o uso de escalas originárias da África que não são usadas na música erudita como, por exemplo, a escala blue, com a terceira e a sétima diminuídas (abemoladas); o ritmo; a utilização de instrumentos incomuns na música europeia; a criação de um repertório específico; a improvisação, que faz do jazz uma música de executantes, subordinando tudo à individualidade do músico – uma música “que não é reproduzida, ele existe somente no momento da criação” (HOBSBAWN: 2009, p. 149).

Para os negros o jazz simboliza afirmação identitária, protesto e revolta que variam desde “um racismo negro primitivo e emocional” até “formas políticas mais consequentes” (p. 225-6).

Recorrendo às pesquisas realizadas no período estudado por Adorno em que o jazz era prioritariamente música dançante, Hobsbawn fez o seguinte comentário a respeito dos fãs do gênero: “Eles ficam ao lado do palco, imersos na música, assentindo com a cabeça, sorrindo uns para os outros…”. Ou ainda: “o jazz, para o verdadeiro fã, não é algo para ser escutado, ele deve ser analisado, estudado e discutido. O espaço por excelência, para o fã, não é o teatro, o bar, ou clube de jazz, mas a sala de alguém, na qual um grupo de jovens tocam discos uns para os outros, repetindo as passagens mais importantes até que se gastem, discutindo e comparando…” (p. 242, 243 e 244).

A implicância adorniana com o jazz tem como pano de fundo a crítica ao seu caráter mercantil. É a partir daí que o jazz é contraposto à arte “séria”. Se esta é uma finalidade sem fim, existindo por si e para si; o jazz, contrariamente, existe em função de outra coisa, à semelhança do valor de troca.

 

Música ou músicas?

São muitos os desafetos atingidos pelas críticas virulentas de Adorno. Entre os músicos de jazz, Gershwin, Benny Goodman, Duke Ellington, Louis Armstrong; na música clássica, Wagner, Toscanini, Stravinsky, Tchaikovski, Berlioz, Dvórak; na filosofia, Lukács, Sartre, Heidegger; no cinema, Chaplin; na filosofia e literatura, Lukács, Sartre, Brecht , Hemingway, Dublin, T. S. Eliot, , Oscar Wilde, Rilke, entre tantos outros.

É verdade que alguns juízos biliosos foram posteriormente suavizados. Chaplin, por exemplo, deixou de ser visto como representante do “cinema grotesco americano” e as qualidades técnicas do clarinetista Benny Goodman foram ressaltadas. O caso mais lembrado é a reavaliação do cinema, feita quando da volta de Adorno à Alemanha (ADORNO: 2021). Esses recuos tópicos, entretanto, não vão muito além, pois comprometeriam a própria teoria estética.

Entretanto, a força do ensaísmo de Adorno contrasta com as tentativas de elaboração de uma teoria abrangente, como pretende a Dialética do esclarecimento, a Dialética negativa e a Teoria estética. Nessas obras, a escrita sofrida, retorcida e emaranhada, contrasta com a força arrebatadora dos ensaios em sua elegante beleza. Nas obras teóricas Adorno “anda em círculos”, retomando temas que reaparecem continuamente sem nunca se esclarecerem. István Mészarós, irritado com o que chamou de “incongruências” afirmou: “Os livros sistemáticos de Adorno (como Dialética negativa e Teoria estética) são fragmentários, no sentido de que não importa por onde se comece a lê-los, em que ordem se prossiga e em que ponto particular se termine a leitura. Estes livros deixam o leitor com a impressão não apenas de ter lido algo não inacabado, mas, em sentido teórico, até mesmo não iniciado”. (MÉSZARÓS: 1996, p. 143).

Parte desse déficit apontado se deve, ironicamente, à incorporação da técnica de “refuncionalização” criada pelo seu desafeto Brecht e retomada por Benjamin. À semelhança da montagem, a refuncionalização agrupa conceitos díspares retirados de diferentes autores e de seus contextos, aproximando-os e fazendo-os “funcionar” numa nova ordenação. A contradição que às vezes surge entre a teorização da dialética negativa e a prática expressa nos ensaios tem um efeito paralisante no pensamento de Adorno e o faz andar em círculos. Como alguém que se propôs a pensar contra o próprio pensamento, Adorno tem plena consciência da contradição, mas é impotente para superá-la.

Há também outro elemento complicador e paralisante no pensamento de Adorno: a escrita do filósofo-musicista que se propôs “pensar com os ouvidos”. A “filosofia dodecafônica” ao perseguir o andamento da música modernista afastou Adorno do texto clássico cultivado pela filosofia. Por isso, em Adorno, diz Jameson, “não existirão eventos conceituais, “argumentos” do tipo tradicional que levem a um clímax da verdade; o texto tornar-se-á uma infinita variação na qual tudo é recapitulado o tempo todo; a clausura, finalmente, realizar-se-á somente quando todas as possíveis variações tiverem se exaurido” (JAMESON: 1996, p. 88). Esse andar em círculos não se faz sem incongruências. Adorno, prevendo críticas, costumava dizer que suas afirmações pontuais só poderiam ser bem entendidas quando remetidas ao conjunto de seu pensamento, sabidamente asistemático.

O utopismo presente nos horizontes de seu pensamento tinha na vanguarda artística um de seus suportes que, entretanto, não resistiu ao tempo. Conclamada a protestar contra a ordem racional a vanguarda, contudo, perdeu sua função cognitiva e terminou condenada à impotência. O “envelhecimento da música” assinala um ponto terminal na história da música (ADORNO: 2009).

Cabe aqui a pergunta: de qual música estamos falando? Para Adorno trata-se, única e exclusivamente, da música europeia. Posição semelhante foi defendida por Otto Maria Carpeaux, que, entretanto, soube delimitar o seu objeto . A música europeia, segundo ele, teve seus inícios no cantochão gregoriano, anterior à música tonal, a qual, por sua vez, deu lugar ao atonalismo, dodecafonismo e serialismo. Essas formas modernas acompanharam as mutações e catástrofes da primeira metade do século XX. Trata-se, portanto, de algo que expressa a resistência dos artistas, fenômeno que não se restringe somente à música: “Politonalismo, atonalismo e técnicas semelhantes correspondem ao abandono da perspectiva pelos pintores, depois de Picasso, e ao relativismo das ciências naturais. A composição em séries corresponde à racionalização dos movimentos subconscientes no monólogo interior, pelos recursos das “psicologias em profundidade”. A polirritmia, que ameaça destruir a homogeneidade do movimento musical, corresponde à dissociação da personalidade no romance de Proust e no teatro de Pirandello. A volta à polifonia linear corresponde às tentativas de simultaneísmo na literatura. O uso das estruturas musicais antigas para objetivos modernos corresponde à arquitetura funcional. O ressurgimento de formas barrocas, pré-clássicas, corresponde ao historicismo na filosofia e na sociologia. A “música nova” não é capricho arbitrário de alguns esquisitões ou esnobes. É o reflexo verídico da realidade” ( CARPEAUX: s/d, p. 287-8) .

Certamente não é um capricho, mas um limite, o epílogo de uma história que teve início no século XII para conhecer uma crise terminal nos anos 50. Assim entendida, diz Carpeaux, essa música é um “fenômeno específico da civilização ocidental”. Estamos aqui, tanto em Adorno como em Carpeaux, diante da visão weberiana que atribui à racionalidade a característica específica da cultura ocidental. A música eletrônica e a música concreta nada têm em comum com o que veio antes. Sendo assim, Carpeaux conclui sua história da música afirmando: “o assunto do presente livro está, portanto, encerrado”. O bom senso do crítico delimitou com precisão o seu objeto, o que não acontece com Adorno que aceita a tese da “decadência ideológica” e toma como referência valorativa a música dodecafônica para, com ela, criticar todas as músicas que escapam desse figurino. Nota-se que empreguei o plural de música para fugir dessa problemática linha evolutiva-racional, pois o fenômeno musical não deve se restringir a um modelo normativo que despreza a coexistência das múltiplas manifestações musicais.

Nesse sentido, José Miguel Wisnik observou que a música do Ocidente privilegiava as “alturas melódicas” em detrimento do pulso que era dominante na música modal, anterior à tonalidade. A música popular moderna (jazz, rock, música eletrônica, etc.) retomou a esquecida dominância do pulso. Por isso, afirma “Trata-se de interpretar esse deslocamento, que pode ser lido não apenas como uma espécie de “anomalia” final que perturba o bom andamento da tradição musical erudita, mas como o termo (ou o elo) de um processo que está contido nela desde as suas origens”. Por conta dessa sincronia Wisnik propõe uma história dos sons que permitisse “aproximar linguagens aparentemente distantes e incompatíveis” (WISNIK: 1989, p. 11).

Na visão linear de Adorno a música de vanguarda, a última representante da música racional, recebeu a impossível missão de salvar a cultura – missão que deveria caber à política. Ela, contudo, envelheceu precocemente e se tornou mais um dos instrumentos da repressão.

Essa reviravolta na trajetória da vanguarda é o fruto da insuperável tensão no pensamento adorniano entre uma concepção do que deveria ser o estético, entregue ao processo weberiano de racionalização crescente e o exame objetivo, a análise imanente da obra. Quando esta é realizada nos ensaios, Adorno atinge pontos luminosos. Mas, contra isso conspiram a dialética negativa e a teoria estética a ela atrelada.

Como sair desse impasse? Quais seriam as propostas da teoria crítica? Retornando à Alemanha, Adorno participou de debates nas estações de rádio apresentando propostas para uma “pedagogia democrática” ou “pedagogia do esclarecimento”, exortando os programadores do rádio a elevarem o nível cultural dos ouvintes e defendendo a televisão educativa e a necessidade de “ensinar os expectadores a verem televisão”, como se podem ler nos textos de Educação e emancipação.

Essas brechas, entretanto, não poderiam ir muito além, pois comprometeriam o arcabouço teórico e ocasionariam fendas que fariam o monólito se desintegrar. E acrescente-se: as iniciativas esboçadas são frágeis demais para alterar o funcionamento da máquina do mundo, mas tensionam o “mapa” que até então as oprimiam.

*Celso Frederico é professor aposentado sênior da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula).

 

Referências


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