Tornar inimigos aqueles que próximos

image_pdf

Por LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA*

Do ponto de vista político, foi certa a decisão da Rússia de entrar em guerra?

Esta guerra trágica começou porque a Rússia decidiu não suportar mais a expansão permanente da OTAN para as suas fronteiras. Os Estados Unidos estavam provocando a Rússia, e afinal veio a guerra – mais uma guerra desumana como são todas as guerras. Os Estados Unidos e a União Europeia romperam todos os seus acordos com a Rússia do tempo de Gorbatchov para realizar essa expansão. Eles sabiam que estavam ameaçando a segurança nacional da Rússia, mas esse era o objetivo dos Estados Unidos; era também o da União Europeia?

Em artigo sobre a guerra, Boaventura de Sousa Santos criticou duramente a posição europeia, que está fechada com a dos Estados Unidos.[1] Uma demonstração da unidade do Ocidente? Sim, do Ocidente imperialista que domina o Oriente Médio e abomina a intervenção da Rússia na região. Que bombardeia Kosovo e mata civis em nome da defesa dos direitos humanos. Que participou da guerra do Iraque, mas nesse caso, hélas!, sem o apoio da França.

Não há justificação moral para a guerra. Putin confirmou ser um governante frio e autoritário. Do ponto de vista político, foi certa a decisão da Rússia de entrar em guerra? Terão os russos previsto que os Estados Unidos entrariam imediatamente no conflito através de sansões econômicas pesadas que não são outra coisa senão uma forma de guerra? A resistência da Ucrânia foi maior do que aquela que os russos esperavam. O mais provável é que Rússia e Ucrânia entrem em um acordo no qual os dois lados afirmarão terem atendido suas demandas, mas só se poderá falar em vitória da Rússia se a Ucrânia concordar em permanecer fora da OTAN e, portanto, também, da União Europeia.

Para Mario Sergio Conti (Folha de S. Paulo com essa guerra os países estão mostrando que sua prioridade são os interesses nacionais. O Ocidente desenvolveu desde o século XVIII todo um conjunto de objetivos políticos generosos como a liberdade individual, a justiça social e a proteção da natureza e estabeleceu as bases de um regime político ideal – a democracia –, mas o que vemos mais uma vez agora é a prioridade da nação sobre a justiça e a liberdade.

O mundo viveu nos últimos 40 anos um período que foi chamado de globalização. Teve uma base tecnológica – o grande desenvolvimento dos transportes e das comunicações – mas em nenhum momento a ideologia da globalização – que viveríamos agora em um mundo sem fronteiras – foi verdade. Com o fim da Guerra Fria, o que houve foi a tentativa dos Estados Unidos de se tornarem a única potência mundial.

Enquanto isso, a Rússia de Yeltsin, subordinada aos Estados Unidos, conheceu a maior crise econômica e humana de que tenho conhecimento. Em 1992 o número de suicídios e doenças infecciosas aumentou verticalmente e permaneceu no novo nível por muitos anos. Em 2000, quando Vladimir Putin foi eleito, ele adotou uma política independente, mas procurou a admissão da Rússia na OTAN. Em pouco tempo, porém os Estados Unidos obedeceram a uma velha regra do capitalismo – os inimigos são sempre necessários; são aqueles que não estão abertos ao seu mercado. Agora o inimigo não é mais o comunismo, mas a Rússia e a China.

A Ucrânia é uma nação muito próxima da Rússia em termos de história e de cultura. A grande música da Rússia é também a grande música da Ucrânia. Seus grandes músicos estudaram no Conservatório de Moscou. A Ucrânia tem o direito de ser uma nação independente, mas não faz sentido ser inimiga da Rússia. A política do Ocidente de atrair a Ucrânia e criar essa inimizade foi criminosa. Segundo notícia recente, o presidente Wolodymir Zelensky, em encontro com três representantes do Reino Unido, afinal abandonou seu radicalismo irresponsável e admitiu que a Ucrânia não entrará na OTAN. Se isso se confirmar, a guerra terminará.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é Professor Emérito da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP). Autor, entre outros livros, de Em busca do desenvolvimento perdido: um projeto novo-desenvolvimentista para o Brasil (FGV).

Nota

[1] Cf. “Para uma autocrítica da Europa”, em A Terra é Redonda.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES