Por Jordana Cristina de Jesus & Luana Junqueira Dias Myrrha*
Os afazeres domésticos antes e depois da pandemia: desigualdades sociais e de gênero
Os casos notificados e os óbitos pela Covid-19 mantêm-se em níveis elevados no Brasil. Desde março de 2020, para tentar reduzir a velocidade de contágio e evitar o colapso do Sistema de Saúde, governadores de diferentes estados brasileiros seguiram as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e instituíram o distanciamento social, por meio de decretos que determinam o fechamento de estabelecimentos das áreas não prioritárias, como comércios e escolas. O objetivo maior dessa ação é manter o máximo de pessoas em suas casas e evitar a disseminação da doença. Contudo, alguns estados, mesmo com a curva ascendente de casos e óbitos, permitiram a retomada de alguns setores, principalmente do comércio e varejo, e flexibilizaram as medidas de distanciamento social.
Os primeiros três meses da pandemia no Brasil foram os mais marcados pelo distanciamento social, que vem arrefecendo aos poucos. Em nota publicada pelo ONAS, verificou-se que em alguns estados da Região Nordeste, entre 15 de fevereiro e 22 de junho, a movimentação de pessoas em alguns estados superou as expectativas para uma fase de reabertura gradual da economia. Aos poucos o isolamento parece ter se transformado em uma decisão individual para um seleto grupo que pode continuar em casa, em home office, por exemplo.
Uma das características do isolamento social, naturalmente, é a maior permanência das pessoas em casa. Essa maior permanência se traduz em um aumento considerável do trabalho doméstico. As pessoas passam a circular pelo domicílio por mais tempo, o que aumenta as demandas por limpeza e manutenção. Além disso, as pessoas passam a realizar mais refeições em casa, que antes aconteciam no trabalho, em restaurantes (também fechados por conta das medidas de distanciamento social necessárias), nas escolas. Com as escolas fechadas, as crianças agora passam o dia todo em casa, o que aumenta as demandas por cuidado e também de trabalho doméstico derivado das atividades de entretenimento e atenção para as crianças. Somado a isso, sobretudo entre as escolas da rede privada, o ensino remoto representa um desafio adicional de acompanhamento e supervisão das atividades educacionais online que aumentam quanto mais jovens forem as crianças.
As próprias recomendações de prevenção do vírus também aumentam, em grande medida, o trabalho doméstico. Aumentou-se a necessidade da frequência de higienização de roupas, sapatos e outros objetos de uso constante (celulares e outros itens) e adicionou-se a necessidade de desinfecção das compras. Para além dos trabalhos domésticos visíveis, há também os invisíveis, como o trabalho mental de organização dos domicílios, bem como a assistência à distância de outros membros da família, seja porque adoeceram, ou estão em risco e demandam supervisão quanto aos cuidados necessários por conta da pandemia. Há também o cuidado com os familiares enlutados, já que se pode imaginar que ao menos 70 mil famílias foram diretamente afetadas com o falecimento de familiares por conta do novo coronavírus. E tantos outros que seguem em cuidados médicos intensivos em que as famílias seguem apreensivas e afetadas emocionalmente.
No trabalho doméstico incluem-se a fundamental tarefa de reproduzir o cotidiano e dar continuidade à vida social extra-domiciliar. E a pandemia da Covid-19 veio para nos lembrar da importância do cuidado na vida social. Embora tenhamos esses indicativos de aumento do trabalho doméstico e de cuidados, é importante ressaltar que antes da pandemia as famílias já lidavam com demandas e níveis distintos e com desigualdades importantes entre quem cuida e quem é cuidado. No Brasil, historicamente o trabalho doméstico é designado às mulheres e, por isso, antes da pandemia, mais de 80% da carga de tarefas domésticas eram de responsabilidade feminina. Em 2018, elas dedicavam quase o dobro do tempo que os homens dedicavam aos afazeres domésticos e cuidados com crianças e idosos, de acordo com os dados Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC). Contudo, há diferenças significativas no tempo dedicado aos afazeres domésticos e cuidados, quando se consideram variáveis socioeconômicas e demográficas.
A quantidade de tempo que as mulheres dedicam a esse tipo de atividade varia com a fase do ciclo de vida, o casamento ou não, o número de filhos ou a convivência com idosos demandantes. Mas além disso, essa quantidade responde também às condições socioeconômicas em que essas mulheres se encontram. Na média, quanto maior o nível de renda (em que cresce a predominância de mulheres brancas), menor a carga de trabalho doméstico a qual uma mulher está submetida. Isso acontece porque nos mais altos níveis de renda é possível adquirir serviços que substituem ou amenizam tempo dedicado ao trabalho doméstico não remunerado, como refeições prontas, contratação de serviços, diaristas, empregadas domésticas e serviços de cuidados (como babás, berçários e creches de qualidade diferenciada em relação aos serviços públicos, ainda escassos).
A renda também permite estruturar os domicílios de modo a facilitar o trabalho doméstico com eletrodomésticos que diminuem a intensidade de tempo demandado, como máquina de lavar roupa, por exemplo, ou em casos mais extremos, o próprio acesso à água encanada para lavar a roupa. Todo esse conjunto de fatores faz com que as mulheres mais pobres, que em sua maioria são mulheres negras, dediquem muito mais tempo ao trabalho doméstico não remunerado. Além disso, são essas mesmas mulheres pobres em sua maioria negras que atuam como trabalhadoras domésticas. Assim, no Brasil, na base dos cuidados, remunerados ou não, estão as mulheres pobres e negras.
Embora o trabalho doméstico, portanto, dependa do contexto socioeconômico, é certo que para a grande maioria das famílias que podem e que estão respeitando o distanciamento social, esse trabalho aumentou em alguma medida. De acordo com a “Pesquisa online sobre a contratação do emprego doméstico durante a pandemia da covid-19” realizada entre os dias 25 de maio e 06 de junho de 2020, aproximadamente 70% dos contratantes de trabalhador(a) doméstico(a) afastaram seu empregado(a), suspenderam o contrato ou não mais o contrataram. Portanto, a maioria das famílias dos respondentes estão sem a empregada doméstica, a babá, o cuidador de idoso ou diarista, para auxiliar nas tarefas domésticas e de cuidados do dia-a-dia. Também não podem enviar as crianças para as escolas ou creches, que paralisaram as atividades desde o mês de março de 2020, em cumprimento aos decretos de isolamento social e ainda permanecem fechadas. Consequentemente, os membros dos domicílios vêm assumindo mais trabalho doméstico. A questão que se instaura é: como esse trabalho tem sido dividido no contexto da pandemia? Será que nessa excepcionalidade em que o trabalho doméstico tem sido evidenciado e a atuação dos trabalhadores domésticos diminuiu, ele tem sido igualmente distribuído entre os adultos do domicílio? Teriam os homens aumentado seu engajamento com as tarefas do lar e cuidado dos filhos?
O perfil dos contratantes de trabalhadores domésticos respondentes da “Pesquisa online sobre a contratação do emprego doméstico durante a pandemia da covid-19”, está resumido na Figura 1. Do total de 1.696 respondentes, 96% possuem ensino superior completo, 90% têm entre 30 e 69 anos, 83% são mulheres, 76% se declararam brancos e 84% declararam a renda domiciliar acima de 5 salários mínimos. Um perfil homogêneo, que corresponde à classe média, que em alguma medida é consequência da metodologia de amostragem não probabilística de “bola de neve” (onde um respondente indica a outro), cuja limitação é o maior acesso a indivíduos semelhantes, que geralmente vivenciam condições socioeconômicas próximas, como por exemplo o nível de escolaridade e renda. Além disso, a pesquisa se direcionou a contratantes de trabalhadores domésticos, com acesso e uso frequente de internet para responder o questionário online, o que afunilou ainda mais o perfil socioeconômico dos e das respondentes.
De acordo com as respostas à pergunta “Quem está assumindo o trabalho doméstico que era realizado por esse(a) empregado(a)?[1]” a mais frequente foi “As tarefas estão sendo divididas igualmente entre os membros do domicílio” correspondendo a 32,3% dos casos (Gráfico 1). Contudo, somando a frequência daqueles que responderam que “As tarefas estão sendo divididas entre os membros do domicílio, mas com sobrecarga para a(s) mulher(es)” e “Majoritariamente a(s) Mulher(es)”, 52% dos respondentes afirmaram que há sobrecarga de trabalho dos afazeres domésticos em seus domicílios para as mulheres. Portanto, nesse contexto da classe média com ensino superior ou mais, durante a pandemia, as mulheres seguem como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos e cuidados em seus domicílios.
Para analisar se durante a pandemia houve uma divisão mais equilibrada das tarefas entre os membros do casal, nesse contexto específico, recorremos aos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), coletados em um período anterior à pandemia, em 2019. A PNADC pergunta aos moradores o tempo individual dedicado aos afazeres domésticos e aos cuidados. Assim, a partir dessa pergunta, é possível calcular o total de trabalho doméstico feito em cada um dos domicílios e quanto proporcionalmente cada morador assumiu desse trabalho. De posse dessas proporções, criamos categorias de compartilhamento de tarefas domésticas que fossem semelhantes às utilizadas na Pesquisa sobre a Contratação do emprego doméstico durante a pandemia da Covid-19.
Com as proporções calculadas, foi considerado que as tarefas eram parcialmente divididas entre os membros do domicílio, mas com sobrecarga para a(s) mulher(es), quando as mulheres ficaram responsáveis por algo entre mais que a metade e menos de 80% das atividades domésticas em seu domicílio. O mesmo se aplicou para os homens. Considerou-se que as tarefas eram majoritariamente responsabilidade das mulheres ou dos homens quando elas/eles foram responsáveis por mais do que 80% do trabalho doméstico feito no domicílio. Por fim, temos a situação em que as tarefas eram divididas igualmente entre os membros do domicílio, quando proporcionalmente cada membro do casal assume 50% do tempo total dedicado aos afazeres domésticos. Cabe destacar que essa classificação de divisão igualitária das tarefas entre os membros dos domicílios é idêntica em ambas as pesquisas.
Outra recriação a partir da PNADC foi dos mesmos arranjos domiciliares identificados em nossa pesquisa. Os casos selecionados foram de casais sem filhos pequenos até 14 anos de idade, com ou sem outro morador adulto/idoso e casais com filhos de até 14 anos de idade, com ou sem outro morador adulto/idoso. Como a pesquisa sobre contratação de serviços domésticos foi respondida por um grupo específico do ponto de vista sociodemográfico e econômico, selecionamos na PNADC apenas os casais com ensino superior, com renda domiciliar total acima de 5 salários mínimos e que tinham idade entre 30 e 69 anos. Isso se faz necessário para que as amostras e, portanto, os resultados, sejam minimamente comparáveis.
Essas são limitações encontradas neste estudo, uma vez que se analisa apenas esse grupo em particular. Entretanto, como a própria literatura sobre o tema menciona, é entre os casais de alta renda e alta escolaridade que os conflitos de gênero tendem a ser permeados pela participação da força de trabalhadoras domésticas contratadas. A participação do serviço doméstico remunerado nos lares desses casais é um dos fatores associados à maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Nesse sentido, o estudo se faz relevante para a compreensão desse contexto, na medida em que deixa evidente a necessidade de apoio para as famílias para que tanto homens quanto mulheres possam ter acesso ao mercado de trabalho.
Reconhecendo, portanto, as potencialidades bem como as limitações, apresentamos no Gráfico 2 uma comparação entre a alocação do trabalho doméstico entre os membros da família antes e durante a pandemia, considerando casais de alta escolaridade e da classe média no Brasil. Primeiro, temos as barras que representam a alocação do trabalho doméstico para os casais sem filhos pequenos, antes e durante a pandemia. Nesse grupo, antes da pandemia, apenas em 21,5% dos casos as tarefas do domicílio eram divididas igualmente entre os membros do casal. O mais comum era a situação em que havia alguma divisão das tarefas domésticas, mas com sobrecarga das mulheres, que representava 39,3% dos casos. E, ainda, em 23,3% desses arranjos as mulheres assumiram majoritariamente o trabalho doméstico. Na pandemia, essa distribuição parece ter se alterado, de acordo com os dados da pesquisa online, na medida em que o mais comum passou a ser a divisão igualitária entre os membros do casal, que representam 42,2% dos casos. Assim, para os casais da classe média com alta escolaridade e sem filhos pequenos, a divisão parece ter caminhado para um maior equilíbrio em parte dos casais.
As barras seguintes no Gráfico 2, por sua vez, tratam especificamente dos casais com crianças pequenas, de até 14 anos. Para esses casais, antes da pandemia, em 43,9% dos casos, as tarefas eram divididas em alguma medida entre os membros do domicílio, mas com sobrecarga para as mulheres. Durante a pandemia, esse percentual foi de 40,2%, muito próximo do que se tinha antes, e que se manteve como o cenário mais comum. Também houve pouca alteração da categoria “Majoritariamente mulheres” que passou de 21,3% para 20,2%, durante a pandemia. Assim, entre os casais com filho, a situação da pandemia não parece ter necessariamente diminuído o percentual de arranjos em que as mulheres são sobrecarregadas. Por outro lado, é necessário ainda reconhecer que o percentual entre os casais com filhos em que as tarefas eram igualmente distribuídas era pouco mais elevado entre os casais se filhos 24,5% antes da pandemia e atingiu 35,9% durante a pandemia. O aumento da categoria “As tarefas estão sendo divididas igualmente entre os membros do domicílio” para ambos os tipos de casais foi consequência da redução de todas as demais categorias, contudo, a maior redução foi entre as categorias em que o homem se dedicava mais às tarefas domésticas do que a mulher. Assim, esses resultados sugerem que a sobrecarga de trabalho doméstico permanece maior para as mulheres, e naqueles domicílios em que elas se dedicavam pouco, a necessidade de permanência em casa durante a pandemia, alterou essa distribuição. Mas como também houve redução das categorias em que a mulher assume mais as tarefas domésticas, embora em menor proporção, pode-se inferir que nestes casos os homens passaram a participar mais.
Ainda que a distribuição mais igualitária das tarefas domésticas tenha aumentado, essa mudança foi mais perceptível entre os casais sem filhos do que entre os casais com filhos pequenos. A presença de crianças aumenta a quantidade de trabalho doméstico. No contexto da classe média, várias escolas adotaram a modalidade de ensino à distância, que demanda participação dos adultos quanto menor é a idade da criança. Portanto, ainda que 35,9% dos casais com filhos venham dividindo as tarefas de forma mais igualitária, não necessariamente o nível de trabalho doméstico das mães diminuiu.
É necessário reconhecer ainda que para o grupo analisado (classe média com alta escolaridade) a probabilidade de atuação no modelo de home office é elevada em relação ao restante da população, como o estudo já publicado no ONAS demonstrou. É provável que muitos desses profissionais manterão esse modelo de trabalho nos próximos meses. Assim, o maior tempo do casal em casa, que deixa o trabalho doméstico em evidência, aliado à ausência do serviço doméstico remunerado, deve reforçar a necessidade da divisão mais igualitária entre os membros do domicílio por mais tempo.
Entretanto, é difícil precisar se essa divisão mais paritária das tarefas domésticas poderia ser uma tendência ou se irá se restringir apenas a esse momento em que a manutenção do trabalhador doméstico nos domicílios dos contratantes não tem sido possível. Como a antropóloga Débora Diniz destacou recentemente “todos nós precisamos de cuidado e estamos aprendendo sobre os trabalhos essenciais à vida coletiva”.
Na atual crise de cuidados, fica claro que um passo importante para a redução das jornadas de trabalho doméstico das mulheres passa por um maior engajamento dos homens nessas atividades, mas também existe a necessidade de políticas de apoio às mulheres e a proteção de pessoas que se dedicam aos cuidados na sociedade, sejam eles dentro ou fora de casa. Esse momento atípico deveria ser utilizado para repensar a forma como se organiza a sociedade e como se distribuem os cuidados, sendo oportuno um amplo e profundo debate sobre as formas de coletivização das demandas familiares e participação do Estado, com vistas a reduzir desigualdades não apenas de gênero, mas também regionais, raciais, de classe e todas as suas intersecções.
*Jordana Cristina de Jesus & Luana Junqueira Dias Myrrha são professoras do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais (DDCA) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Publicado originalmente na página do Programa de Pós-Graduação em Demografia da UFRN
Nota
[1]Essa pergunta não foi respondida por aqueles que informaram que o trabalhador continuou com suas atividades laborais normalmente. Para esse quesito tivemos 1.442 respostas válidas.