Tragédias urbanas

Imagem: Soner Arkan
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por CLÁUDIO DI MAURO, ERMÍNIA MARICATO & JOSÉ MACHADO*

É óbvia a situação de precariedade e a imensa dívida social do setor de saneamento em relação à população brasileira

Antes mesmo de completar dez dias de trabalho, o novo governo do Brasil foi alvo de vários tipos de ataques, com destaque para dois deles em particular. O primeiro foi a desastrosa tentativa de golpe contra os resultados das últimas eleições perpetrada no dia 8 de janeiro, algo que ganhou visibilidade inquestionável, tanto em escala nacional quanto internacional. O outro ataque evidente é menos espetacular, mas talvez seja até mais danoso à democracia e à sociedade brasileira, pois tem como protagonista o chamado “mercado”, em sólida parceria com a mídia hegemônica: trata-se das críticas descabidas ao governo que começaram antes mesmo de sua posse.

Diferentemente do que fez em suas primeiras gestões, o atual presidente respondeu aos ataques do mercado criticando a maior taxa de juros do Planeta e a “independência” do Banco Central (quarto poder independente no Brasil?). O governo Lula encontrou um orçamento elaborado pelo governo anterior que não contemplava seu projeto e os compromissos com os quais foi eleito, especialmente a inclusão dos setores populares nos gastos públicos. Para efetivar tal inclusão, preparou uma Proposta de Emenda ao Orçamento de 2023 que gerou imensa reação do chamado “mercado”.

A “PEC da gastança”, ou “PEC do estouro”, são algumas das expressões usadas na imprensa para se referir ao projeto que saiu vencedor nas eleições.[i] O mais surpreendente desses ataques se deu por meio de alguns títulos de várias matérias jornalísticas que deram a entender que o “mercado” se frustrou com o sucesso e o fortalecimento do governo Lula após o enfrentamento dos acontecimentos de 8 de janeiro.

No dia 10 de janeiro, o jornal Folha de S. Paulo registrou na chamada da matéria de página interna: “Efeitos na economia de fortalecimento de petista preocupam investidores”. Outras duas chamadas de matérias jornalísticas nesse jornal, e na mesma página, registram: “Atos preocupam estrangeiros, mas menos que agenda econômica de Lula”[ii] e “Defesa da democracia fortalece petista, e governo precisará se voltar ao centro, dizem economistas”.[iii] Será exagero concluir que o personagem “mercado” não dá a menor importância para a democracia? Ou para a estabilidade das instituições e que não tem qualquer interesse em reduzir a fome e as agruras das populações mais empobrecidas?

A questão do saneamento básico tem sido motivo particular desses ataques absolutamente prematuros. O “mercado” criticou medidas propostas pela equipe de transição do governo Lula que propôs mudanças na ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) e em portarias referentes ao Marco Regulatório do Saneamento aprovado em 2020. O jornal O Estado de S. Paulo estampa em sua primeira página do dia 15/12/22: “Equipe de Boulos sugere a Lula tirar saneamento da Agência das Águas; especialistas veem riscos”. Não se tratava da “equipe de Boulos”, que era um entre os mais de 20 integrantes do Grupo de Trabalho “Cidades na Comissão de Transição de Governo”. Nem se sugeria, exatamente, “tirar saneamento da Agência Nacional de Águas e Saneamento”, muito embora, convenhamos, essa seja uma cogitação que precisa ser discutida democraticamente.

Por que tal imprecisão na informação aos leitores? Porém a atitude mais arrogante desse episódio estava no tratamento dado aos “especialistas” e “técnicos” do “mercado” em contraposição à “interferência dos políticos”. “O que queremos é que essas normas sejam feitas de forma robusta, técnica com equipe imunizada de questões políticas”, declarou um “especialista“ do “mercado” numa dessas matérias jornalísticas citadas.

É notável a pretensão de neutralidade dos “especialistas” ou “técnicos” do “mercado”, que se julgam “imunes às questões políticas”. Se resolvemos ocupar nosso tempo nessa disputa semiótica é para informar aos “especialistas” do “mercado” que eles se enganam quando acham que a privatização do saneamento vai resolver a determinação legal de universalização desses serviços até 2033 como determina lei 14.026/2020.

É óbvia a situação de precariedade e a imensa dívida social do setor de saneamento em relação à população brasileira. Será necessário o reconhecimento da importância dos temas água e saneamento que devem estar no centro das políticas e dos investimentos anuais, enquanto prioridades, pois estamos diante de um dos maiores problemas do país. O acesso à água potável e à coleta, afastamento e tratamento de esgoto, ademais da coleta e disposição de resíduos sólidos, têm tudo a ver com a saúde da população e o meio ambiente.

Praticamente 15% da população brasileira não tem acesso regular à água potável. Mais de 45% não tem esgoto coletado e, daquilo que é coletado, apenas cerca de 50% é tratado. A rede hídrica é o destino final de grande parte do esgoto e do lixo urbano, o que determina a poluição geral dos cursos d’água no entorno das cidades. Entretanto, o que os “especialistas” do “mercado” não sabem ou não reconhecem é que a maior parte desse déficit de saneamento é também um déficit de cidade. Estamos nos referindo à população urbana, nesse caso, embora grande parte do déficit seja rural, mas em ambos os casos a solução não está na ação empresarial privada e fragmentada no território.

As tragédias que atingiram o litoral norte de São Paulo, neste carnaval de 2023, apenas comprovam o propósito que queremos evidenciar aqui de que o assentamento habitacional de grande parte da população brasileira se faz sem Estado e sem “mercado”: com inobservância legal quanto ao registro da propriedade da terra, às leis de uso e ocupação do solo e ao código de obras; desconhecimento técnico, pela carência de arquitetos, engenheiros, geógrafos, geólogos e outros profissionais; falta de investimento público ou financiamento privado na construção das casas. A pura e simples ocupação ilegal de terras que não interessam ao mercado imobiliário formal e a compra de lotes ilegais são saídas para a completa e total falta de alternativas.

Expulsas da faixa litorânea pelo mercado imobiliário, não restou às camadas populares outra alternativa senão os taludes desmatados da instável Serra do Mar. O preço da terra, decorrente dos investimentos e atributos que a cercam, está no coração dessa desigualdade. O nó da terra – a propriedade formal da terra valorizada – divide a sociedade brasileira no campo e na cidade. A questão é histórica e estrutural, as tragédias são recorrentes e o futuro é preocupante, pois o mercado informal da moradia está fortemente marcado pela ação das milícias e do crime organizado em todas as regiões do país.

Em 2019, o número de moradias em favelas do Brasil era de 5,12 milhões (IBGE), ou seja, mais de 20 milhões de brasileiros vivem em favelas onde não há arruamento (ou endereço) regular. Muitas dessas favelas, especialmente no norte e nordeste do país, são formadas por palafitas. Grande parte da população urbana – em muitas metrópoles, a maior parte – ocupa áreas legalmente vedadas, com construções informais, tais como: Áreas de Proteção Permanente (APPs), Áreas de Proteção de Mananciais (APMs), áreas inundáveis, áreas de risco de escorregamentos de solo e de desmoronamentos, entre outros.

Essas construções informais são exatamente as que não têm endereço, nem pavimentação com drenagem urbana, nem acesso à água potável, nem ao afastamento de esgoto, nem à coleta de lixo, ou sequer à iluminação pública em suas ruas. E os que nelas moram são também os que não conseguem pagar pelos serviços, precisando e devendo ser contemplados com subsídios públicos. A ilegalidade urbanística – caracterizada ainda pelo racismo ambiental e territorial – constitui regra e não exceção no Brasil urbano, uma realidade cuja escala é desconhecida, com frequência, até no universo acadêmico.

A importância do Estado social, a importância das políticas públicas e da importância da regulação democrática – econômica, social, territorial – é fundamental para a saúde, para a sustentabilidade ambiental e econômica. Uma visão sistêmica sobre o espaço urbano deve substituir o interesse privado, setorial, fragmentado, especulativo e rentista, se queremos superar a abissal desigualdade no Brasil. Essa não é, em definitivo, uma problemática estritamente técnica, como quer o chamado “mercado”. É, na substância, essencialmente política.

Cláudio Di Mauro, ex-prefeito de Rio Claro, é professor de Geografia na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

*Ermínia Maricato, arquiteta e urbanista, é professora titular aposentada da FAU-USP. Autora, entre outros livros, de Para entender a crise urbana (Expressão Popular).

José Machado é ex-prefeito de Piracicaba e ex-diretor-presidente da Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA).

Notas


[i] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/12/camara-aprova-texto-base-da-pec-da-gastanca-apos-desidratacao-da-proposta.shtml.

[ii] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/01/atos-golpistas-preocupam-investidores-estrangeiros-mas-menos-que-agenda-economica-de-lula.shtml

[iii] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/01/defesa-da-democracia-fortalece-lula-mas-governo-precisara-de-agenda-ao-centro-dizem-economistas.shtml

O site A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
Clique aqui e veja como

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O veto à Venezuela nos BRICSMÁQUINAS FOTOGRÁFICAS 19/11/2024 Por GIOVANNI MESQUITA: Qual seria o maior desaforo ao imperialismo, colocar a Venezuela nos BRICS ou criar os BRICS?
  • Balanço da esquerda no final de 2024Renato Janine Ribeiro 19/11/2024 Por RENATO JANINE RIBEIRO: A realidade impõe desde já entender que o campo da esquerda, especialmente o PT, não tem alternativa a não ser o nome de Luiz Inácio Lula da Silva para 2026
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Notas sobre a disputa em São Paulogilberto maringoni 18/11/2024 Por GILBERTO MARINGONI: É preciso recuperar a rebeldia da esquerda. Se alguém chegasse de Marte e fosse acompanhar um debate de TV, seria difícil dizer quem seria o candidato de esquerda, ou de oposição
  • O perde-ganha eleitoralJean-Marc-von-der-Weid3 17/11/2024 Por JEAN MARC VON DER WEID: Quem acreditou numa vitória da esquerda nas eleições de 2024 estava vivendo no mundo das fadas e dos elfos

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES