Por JOÃO LANARI BO*
O filme de Johan Grimonprez trata-se de uma recusa cabal de duas conhecidas linearidades, a da história e a da linguagem documental
Mark Twain é conhecido, além dos saborosos livros que escreveu, por ter sido um frasista contumaz, irônico e agudo. Certa vez, disse: “a história não se repete, mas muitas vezes rima”. Do outro lado do oceano, o belga Johan Grimonprez, cineasta e curador, levou ao pé da letra a assertiva e realizou o voraz Trilha sonora para um golpe de Estado, ode musico-libertária sobre descolonização, Guerra Fria, Congo, Patrice Lumumba e, sobretudo, ilações jazzísticas.
Trata-se de uma recusa cabal de duas conhecidas linearidades, a da história e a da linguagem documental. O resultado, que céticos e vassalos do alfabeto irão contestar, é um filme altamente informativo e sobejamente aprazível – construído em cima de descontinuidades que se agrupam e dispersam no compasso sincopado da bateria de Max Roach.
Um modo de usufruir desses 150 minutos de sons e imagens, fonte plural em estado de permanente inovação, é imaginar o autor (ou os autores: Grimonprez e colaboradores) como dotado de uma espécie de subjetividade digital, que vê a história como espaço de dispersão e recusa princípios de causalidade, de analogia e de homogeneidade.
Ao intercalar elementos e personagens díspares tendo o ritmo staccato do jazz como guia e estrutura, Trilha sonora para um golpe de Estado privilegia a descontinuidade como eixo fundamental de análise, desmontando de passagem visões essencialistas e lugares de verdade (e os poderes neles investidos) que povoam os discursos do conhecimento. Esse conceito, exarado pelo filósofo Michel Foucault, encontra eco na afirmação do cineasta sobre seu propósito autoral – uma tentativa de dar sentido aos destroços causados pela história.
Afinal, do que se trata? Como belga, Johan Grimonprez conhece a desastrada incursão colonialista de seu país na África, Congo – uma rápida consulta ao oráculo da internet indica: “Leopoldo II foi rei dos belgas de 1865 a 1909 e é especialmente lembrado pela colonização do Congo Belga, que chegou a ser sua propriedade particular. Nesse período a Bélgica decepou mãos, braços e matou mais de 10 milhões”.
Corta para Louis Armstrong, Nina Simone, Duke Ellington, Dizzie Gillespie. Amstrong foi designado embaixador cultural ou coisa que o valha, para circular na África. Dizzie Gillespie, debochado e sardônico, lançou-se candidato à presidência dos EUA em 1964.
Corta para Nikita Khrushchev, Fidel Castro, Dwight Eisenhower, Allan Dulles, Nehru, Nasser, Andrée Blouin: o líder soviético vocifera contra as potências coloniais na ONU, tirando o sapato e batendo na mesa. Fidel Castro, talvez em seu melhor momento midiático, é expulso do hotel em Manhattan que se hospedara com a delegação cubana e convidado por Malcom X – esse, de uma inteligência fulgurante – a instalar-se no Hotel Theresa, no Harlem, epicentro da black America. Naquela época Malcom X chegou a propor intervenção da ONU em seu próprio país, Estados Unidos, diante das violações dos direitos humanos dos negros: “Se fazem isso mundo afora, porque não aqui?”.
Colonialismo é brutalidade, como se sabe: mas os belgas se superaram, se é que é possível falar em superação diante de um quadro como esse. A história avançou, dispersou, e no final da década de 1950 atingiu um paroxismo que mesclava urânio, descolonização pós-segunda guerra, polarização global, CIA e assassinatos de líderes incômodos.
Patrice Lumumba, Primeiro-Ministro congolês eleito em 1960 – mas que ocupou o cargo apenas por 12 semanas – inaugurou uma liderança que desagradava os colonialistas belgas, sempre interessados em dividir e instigar as rivalidades étnicas. Se tem urânio à vista, em especial na província de Catanga – de lá saíram toneladas para as bombas atômicas que devastaram Hiroshima e Nagasaki – entra em cena o poderio norte-americano, para “ajudar” o decadente entreposto europeu.
Trilha sonora para um golpe de Estado alterna entre outras imagens de home vídeos, cinejornais, textos acadêmicos e, em especial, discursos de Patrice Lumumba, alguns até pouco tempo considerados perdidos. Intelectual autodidata e leitor ávido, entrou na política e logo se destacou – foi eleito com 34 anos, e assassinado com 35. Relegado a prisão domiciliar após três meses de mandato, tentou fugir, mas terminou capturado em dezembro de 1960. Foi transferido para Catanga, onde foi torturado e morto por mercenários e tropas rebeldes. Seu corpo, e dos colaboradores que estavam com ele, nunca foram encontrados.
Numa manhã fria de fevereiro de 1961, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se para discutir a crise no Congo. Invadem o recinto, para protestar contra a omissão da organização pelo assassinato de Patrice Lumumba, um grupo de ativistas negros liderados pela cantora Abbey Lincoln, o baterista Max Roach e a escritora Maya Angelou. Gritos, xingamentos e socos ilustram a cena, a melhor de um filme cheio de cenas boas e fortes.
No ano 2000, um ex-policial belga confessou que os corpos de Patrice Lumumba e assessores foram dissolvidos em ácido. Não restou quase nada, apenas alguns dentes: um deles foi guardado como troféu. Em 2022, o procurador belga Frederic Van Leeuw entregou aos familiares de Patrice Lumumba uma pequena caixa azul que continha um dente — tudo que restou do herói assassinado — numa cerimônia transmitida pela televisão.
*João Lanari Bo é professor de cinema da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Cinema para russos, cinema para soviéticos (Bazar do Tempo) [https://amzn.to/45rHa9F]
Referência
Trilha sonora para um golpe de Estado (Soundtrak to Coup d’Etat)
Direção: Johan Grimonprez.
Bélgica, 2024, documentário, 150 minutos.
Elenco: Marie Daulne, In Koli Jean Bofane, Patrick Cruise O’Brien, Abbey Lincoln, Dizzy Gillespie, Duke Ellington, Dwight D. Eisenhower, Fidel Castro
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