Por BRUNO FABRICIO ALCEBINO DA SILVA*
A complexidade das representações visuais durante da “Marcha pela Vida” em Buenos Aires, no ano de 1982, revela como dois fotógrafos capturaram o mesmo momento de maneiras opostas, refletindo as tensões políticas da época
1.
Em 5 de outubro de 1982, ocorreu em Buenos Aires a “Marcha pela vida”. Organizado por diversas entidades de direitos humanos, como as Mães da Praça de Maio, o protesto reuniu mais de 10 mil pessoas para exigir respostas sobre os milhares de desaparecidos, apesar de ter sido proibido pela ditadura militar. Durante este evento, um mesmo momento foi capturado de formas opostas por dois fotógrafos.
De um lado, Jorge Eduardo Sánchez, da agência estatal Télam, registrou a realidade da cena: a furiosa confrontação da manifestante Susana de Leguía com o comissário de polícia Carlos Enrique Gallone, que impedia a passagem da marcha. Essas imagens, que expunham a tensão e a repressão, foram imediatamente censuradas e arquivadas (demorando 40 anos para se tornarem públicas).
De outro, Marcelo Ranea, da agência Diarios y Noticias (DyN), capturou um instante fugaz e visualmente ambíguo dessa mesma interação. Essa única imagem foi descontextualizada pelo regime e divulgada massivamente como um “abraço de reconciliação”. A fotografia manipulada serviu como uma potente ferramenta de propaganda para projetar uma falsa narrativa de diálogo e paz, sendo tão bem-sucedida que foi publicada internacionalmente, ganhou o prêmio Rei da Espanha (1983) e foi usada para mascarar a violência do Estado.

Este par de imagens oferece um estudo de caso emblemático sobre a virada estética nas Relações Internacionais, exemplificando o uso da representação visual como ferramenta política por um ator estatal, a ditadura militar argentina, para manipular a percepção pública nacional e internacional, construindo uma narrativa falsa de reconciliação para ocultar a repressão sistemática.
Esta abordagem teórica defende que produtos culturais, como as fotografias, não apenas refletem, mas também moldam ativamente as narrativas políticas, as identidades e as relações de poder (Santos, 2024, p. 12). O regime militar argentino (1976-1983), caracterizado pela repressão brutal e pelo “Terrorismo de Estado”, encontrava-se em um profundo processo de isolamento internacional devido às sistemáticas violações de direitos humanos (Neto, 2021, p. 3-21). Nesse contexto, a manipulação da imagem tornou-se uma ferramenta estratégica de política externa e interna.
2.
A análise do evento exige a compreensão do que o filósofo francês Jacques Rancière define como a partilha do sensível: “o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes respectivas” (Rancière, 2005, p. 15). O protesto de 5 de outubro de 1982, liderado pelas Mães da Praça de Maio, era em si um ato político que desafiava a partilha do sensível imposta pelo regime.
As Mães, ao ocuparem o espaço público da praça, tornavam visível o que o Estado tentava apagar: o desaparecimento forçado de seus filhos (Paula, 2016, p. 9). Elas construíram uma identidade poderosa, transformando a maternidade em um símbolo de resistência contra a representação, imposta pela ditadura, de que eram “mães de terroristas” (Paula, 2016, p. 6). Na terminologia de Jacques Rancière, sua ação era uma intervenção direta na partilha existente, um ato político que reconfigurava “o que se vê e o que se pode dizer sobre o que é visto” (Rancière, 2005, p. 17).
É aqui que a disputa estética se acirra. A ditadura, confrontada com a potente resistência das Mães de Maio, não a ignora, mas a coopta e a reconfigura. A fotografia de Jorge Sánchez, que mostrava a confrontação, foi censurada (El País, 2022). Em seu lugar, o regime promoveu a imagem ambígua de Marcelo Ranea, que, isolada de seu contexto, podia ser interpretada como reconciliação.
Esta escolha deliberada ilustra o argumento de Roland Bleiker de que as imagens nunca são neutras; elas “moldam os eventos internacionais e a nossa compreensão deles” (Bleiker, 2018, p. 1 apud Santos, 2024, p. 46) e “inevitavelmente excluem tanto quanto incluem” (Bleiker, 2018, p. 14 apud Santos, 2024, p. 50). Ao divulgar a foto do “abraço”, o regime excluiu a narrativa da violência e impôs uma narrativa de pacificação, redefinindo quem tem “competência para ver e qualidade para dizer” (Rancière, 2005, p. 17).
Este ato de manipulação visava redefinir a “partilha do sensível”. As Mães, com seus lenços brancos e sua presença na praça, tentavam impor uma partilha em que a dor e o crime do desaparecimento forçado eram centrais e inegáveis (Paula, 2016, p. 7). A ditadura, por sua vez, utilizou a fotografia manipulada para impor uma partilha alternativa, onde a repressão era reconfigurada como cuidado e o conflito como harmonia, silenciando assim as “possibilidades de luta e resistência política” (De Jesus; Tellez, 2014, p. 73 apud Santos, 2024, p. 26).
O objetivo era claro: projetar para o público doméstico e, principalmente, para a comunidade internacional, uma imagem de normalidade e diálogo, contrariando as denúncias de organismos de direitos humanos que isolavam o regime (Neto, 2021, p. 7).

A eficácia dessa estratégia foi notável a curto prazo: a imagem foi publicada internacionalmente pelo Excelsior no México, o New York Times e o El País na Espanha, premiada, e chegou a ser utilizada como prova de defesa por Gallone em seu julgamento por crimes contra a humanidade (El País, 2022).
Isso demonstra a capacidade da estética de “moldar narrativas, identidades e percepções internacionais, promovendo a memória coletiva e a reflexão sobre questões de justiça e direitos humanos” (Santos, 2024, p. 4). O poder da imagem de Ranea reside no que Bleiker chama de “efeito de vítima identificável”, que tem maior probabilidade de “evocar compaixão nos espectadores” (Bleiker, 2018, p. 10 apud Santos, 2024, p. 50). A ditadura perversamente se apropriou dessa compaixão, direcionando-a não para a vítima da repressão, mas para a suposta reconciliação que o regime oferecia.
Em suma, o par de fotografias do protesto de 1982 é mais do que um registro histórico, é a materialização de uma disputa política travada no campo estético. Elas revelam como um ator estatal utilizou a representação visual para conduzir uma política de engano, buscando legitimar-se e atenuar a condenação internacional.
A análise dessas imagens, à luz da virada estética e do pensamento de Jacques Rancière, demonstra que para compreender plenamente a política mundial, é indispensável analisar não apenas os tratados e as ações militares, mas também as “posições e movimentos dos corpos, funções da palavra, repartições do visível e do invisível” (Rancière, 2005, p. 26), que constituem o cerne da relação entre estética e política.
*Bruno Fabricio Alcebino da Silva é graduando em Relações Internacionais e Ciências Econômicas pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
Referências
CENTENERA, Mar. The story behind a photograph that was exploited by Argentina’s military dictatorship. El País, 8 out. 2022. Disponível em: https://english.elpais.com/international/2022-10-08/the-story-behind-a-photograph-that-was-exploited-by-argentinas-military-dictatorship.html. NETO, Tomaz Espósito. A “DIPLOMACIA DAS ARMAS”: UM OLHAR REALISTA SOBRE A POLÍTICA EXTERNA ARGENTINA DO PERÍODO MILITAR (DE 1976 A 1983). Revista NEIBA: Cadernos Argentina-Brasil, v. 10, p. 01-26, 2021.
PAULA, Adriana das Graças de. Os Movimentos de Mulheres na Ditadura: uma análise sobre as Mães da Praça de Maio (Argentina) e o Movimento Feminino pela Anistia (Brasil). In: Anais do II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina. São Paulo: PROLAM/USP, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível: Estética e política. São Paulo: EXO Experimental org.; Ed. 34, 2005. Cap. 1: Da partilha do sensível e das relações que estabelece entre política e estética.
SANTOS, Hugo Alexandre Rodrigues dos. Estética e relações internacionais: a ditadura militar Argentina nas telas do cinema. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Relações Internacionais e Integração) – Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Foz do Iguaçu, 2024.
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