Um real inominável

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Por ANA MARIA G. R. ODA & SONIA LEITE*

A pandemia de COVID-19 no Brasil: em busca de sentidos em meio à tragédia

No momento em que escrevemos este texto, o número de óbitos causados pela pandemia de COVID-19 (doença pelo novo coronavírus) já ultrapassa 160 mil pessoas no Brasil, e o número de casos de infecção no mundo chega a mais de 5 milhões. No mundo, são mais de 1 milhão de mortes e 33 milhões de casos, em 188 países (Coronavírus Resource Center, 2020). A título de comparação, as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945, atingiram cerca de 250 mil vítimas, total que inclui os mortos de modo instantâneo em ambas as cidades e aqueles que faleceram em consequência das queimaduras e do envenenamento radioativo (UOL, 2020). O fato é que os efeitos das situações de destruição em massa (pestes, guerras etc.) não se limitam ao momento do acontecimento trágico, mas sempre se estendem para além do desastre, afetando, via de regra, algumas gerações ao longo do tempo. No caso da atual pandemia, além da presença em nosso cotidiano de consequências de ordem emocional, sanitária, social, cultural, política e econômica, os sobreviventes das formas graves de COVID-19 podem ter sequelas físicas (tais como fibrose pulmonar, insuficiência cardíaca, problemas renais e neurológicos) e mentais (depressão, várias manifestações de ansiedade, quadros de estresse pós-traumático, entre outras) (Allegrante et al., 2020; Pfefferbaum & North, 2020).

Quando temos conhecimento desse real numérico somos, inicialmente, tomados pelo horror, mas, logo a seguir, paradoxalmente, uma espécie de entorpecimento nos atravessa, pois na maioria das vezes os números em si mesmos não nos dizem nada. Eles nos confrontam com o inominável.

Temos uma grande dificuldade em dimensionar as quantidades pelo fato de que somos seres das palavras, dos sentidos e dos afetos. Para ultrapassar o mero assombro numérico é necessário insistir na interpretação, na produção de sentido, mesmo quando somos confrontados com os afetos da dor, da tristeza e da desesperança. Enfrentar os afetos é fundamental porque são a sustentação daquilo que de mais humano nos habita. Humano, demasiadamente humano. Nesse sentido, pode-se dizer que os mortos pela pandemia são numerosos porém inumeráveis, isto é, longe de se restringirem a números nas impressionantes estatísticas, devem ser reconhecidos em suas experiências biográficas únicas, tal como propõe o projeto colaborativo Memorial Inumeráveis, criado pelo artista Edson Pavoni (https://inumeraveis.com.br).

Ficar entorpecido diante de um real inominável pode gerar a indiferença. A indiferença para com a morte vem de mãos dadas com o descaso para com a vida. E, por outro lado, a valorização da vida, como experiência existencial radical, está sempre entrelaçada com o reconhecimento da presença da morte em todos seus aspectos. A pandemia, com seus efeitos devastadores, nos convoca a esse reconhecimento para que se possibilite a revalorização da vida. Vida, não apenas do ponto de vista da existência humana, masda própria preservação da vida em todos seus aspectos no planeta Terra.

Mas o que nos ensina o vírus?

Como indica Boaventura de Sousa Santos (2020) em seu livro A cruel pedagogia do vírus, uma pandemia afeta a todos de maneira geral, no entanto, existem grupos, que por sua vulnerabilidade prévia, são atingidos de maneira mais radical. As situações de desastre tornam esses grupos mais visíveis, ao reforçarem a injustiça, a discriminação e a exclusão social.

A pandemia nos dá uma exemplar lição sobre os determinantes sociais da saúde e a importância de políticas públicas que garantam o mínimo de um estado de bem-estar social. É fato que a saúde, infelizmente, não é um bem igualitariamente distribuído, mas dependente do nível socioeconômico e educacional, do gênero, da cor da pele, da etnia. Desigualdades essas que implicam díspares condições na saúde e na qualidade de vida, além de produzir grandes diferenças em torno da expectativa de vida, assim como no modo como se morre, aqui incluídas as mortes violentas.

Como bem sabemos, a pandemia de 2019-nCoV encontrou o Brasil e suas seculares desigualdades estruturais, com grande número de pessoas vivendo em condições insuficientes, sem saneamento básico e sem acesso à água e à eletricidade, em moradias precárias e lotadas, e ainda com alta prevalência de doenças crônicas, tais como hipertensão e diabetes, além das chamadas doenças negligenciadas, como a tuberculose, e de zoonoses reemergentes, como a febre amarela e a dengue (Andreazzi et al., 2020).

Somos um país construído sobre corpos escondidos e, nesse sentido, a pandemia desvela tudo o que não queríamos saber sobre a realidade cotidiana. Uma realidade marcada historicamente pelo traumático oriundo da exclusão e da violência em relação aos índios, negros e descamisados. Contraditoriamente, somos um corpo coletivo que vive sob a égide da negação que, na maioria das vezes, não se reconhece no outro que expõe as nossas marcas culturais originárias. Um corpo coletivo que repudia as diferenças que indicam a diversidade que constitui a nação, e que aceita placidamente as profundas desigualdades sociais presentes na vida diária. Nesse sentido, somos um país de uma maioria de excluídos, em eterno abandono social.

Com esse terreno preparado, não espanta o que vários estudos têm demonstrado: o risco tanto de contrair o vírus quanto de morrer por COVID-19 é maior entre os mais pobres. Um estudo na cidade de São Paulo indicou que, entre os meses de março e junho de 2020, moradores de bairros periféricos da cidade tiveram 50% mais risco de morrer por COVID-19 do que os residentes em áreas de alto nível socioeconômico, e tal risco continua aumentando com o decorrer da pandemia (Bermudi e cols., 2020). No mesmo sentido indicam os resultados de um amplo estudo nacional em curso, o Epicovid19-BR (Evolução da Prevalência de Infecção por COVID-19 no Brasil): como aponta o epidemiologista Pedro Hallal (2020), os  mais pobres apresentam o dobro do risco de infecção em comparação aos mais ricos, e os indígenas têm um risco de infecção cinco vezes maior do que os brancos. Diante disso, não podemos deixar de ressaltar que os povos indígenas vêm sendo vilipendiados por descaso das autoridades governamentais, que não só falharam na ajuda humanitária, como os têm desamparado diante da violência de grileiros e posseiros e do próprio Estado. Com relação às pessoas negras, embora a informação sobre raça/cor da pele seja falha ou incompleta em muitas estatísticas, as piores condições prévias de saúde e de moradia, além do menor acesso aos serviços de saúde, faz com que essas pessoas estejam sobrerrepresentadas nas estatísticas de mortalidade hospitalar por COVID-19 (Baqui et al., 2020), mais uma vez tornando evidente a marca de exclusão social dos afrodescendentes.

Diferentemente da lista de Schindler — que salvou judeus trabalhadores das garras da Gestapo — a lista de Boaventura de Sousa Santos (2020), presente no livro acima citado, indica ainda um imenso grupo de pessoas que, por suas condições prévias à pandemia, apresentam os maiores riscos não só de contrair a doença, mas de vir a óbito, aumentando o imenso contingente de mortos que continua crescendo a cada dia.

São eles: os trabalhadores informais, atualmente dominantes no mundo todo, devido às políticas neoliberais que vêm avançando nas últimas décadas, trabalhadores estes que precisam ganhar o dia a dia para sobreviver dia a dia; os trabalhadores da rua, que são os uberizados, os entregadores que viabilizam a quarentena dos outros e que muitas vezes não podem se proteger da pandemia; os sem-abrigo que ocupam os viadutos, túneis, estações do metrô ou simplesmente as calçadas, que nos levam a interrogar o que é a quarentena para quem não tem sequer casa. No início da pandemia alguém comentou, tristemente, que passava de máscara por uma rua com vários desabrigados quando um deles indagou: “O que está acontecendo? Por que as pessoas estão andando de máscaras?”

E a lista prossegue: os refugiados e imigrantes, que vivem em locais onde os riscos de propagação do vírus é ainda maior; as pessoas com deficiências, com dificuldade de mobilidade, discriminados por suas necessidades especiais e dependentes de quem os ajude; os idosos, muitas vezes depositados em lares e asilos, que vão do luxo ao lixo, e que acabam sofrendo pelo aumento do isolamento, além do maior risco de contágio; e as mulheres que sofrem com o aumento vertiginoso da violência doméstica durante a quarentena.

Diante de cenários sanitários e socioeconômicos complexos, escolher as melhores estratégias governamentais de enfrentamento da pandemia de COVID-19, em cada fase, não tem sido tarefa fácil em local algum do mundo, tendo em conta o parco, ainda que crescente, conhecimento científico sobre o novo coronavírus, sua rápida disseminação e o potencial risco de vida para parte dos infectados (Barreto et al., 2020). Em termos de prevenção, no presente momento não existem medicamentos que possam evitar a infecção e as vacinas ainda são promessas. Assim, medidas comportamentais — higiene  pessoal e ambiental (lavar as mãos, usar máscaras, etiqueta respiratória, limpeza de superfícies) e distanciamento social (distância física entre pessoas, evitar deslocamentos, trabalhar em casa) —são as estratégias recomendadas consensualmente pelas entidades científicas internacionais (Allegrante et al., 2020).

No Brasil, implementar e manter tais medidas têm se mostrado um desafio extremamente difícil. Aqui, tem sido feito esforços notáveis por parte de profissionais da área da saúde e cientistas que buscam oferecer apoio aos gestores públicos nessa difícil empreitada, em diversas frentes, sendo que se destaca a essencial resposta do Sistema Único de Saúde na assistência e das universidades públicas na pesquisa. No entanto, no que diz respeito às ações do governo federal, nos deparamos com a espantosa situação de ter o terceiro ministro da Saúde em plena pandemia, e com fatos veiculados cotidianamente que denunciam a militarização da pasta e a falta de coordenação das ações de combate à pandemia. Como se não bastasse, lemos todos os dias notícias sobre as peripécias de um presidente da República que minimiza a pandemia, desrespeita as regras de higiene,  ironiza o número  de mortos, não reconhece a dor dos enlutados (The Lancet, 2020), além de alimentar as fantasias de prevenção e cura mágicas, desprezando a ciência e perpetrando o que se chama de necropolítica.

Nesse contexto verdadeiramente enlouquecedor, em um momento que nos traz dor, desamparo e perplexidade, a pedagogia do vírus nos convoca, antes de qualquer coisa, ao trabalho de produção de sentido e de invenção de novas formas de cuidado e de laço social. É preciso insistir nos vínculos de solidariedade, tendo em vista as diferenças que compõem o nosso cotidiano coletivo.

Assim, partindo do eixo temático Pandemia, psicopatologia e subjetividade, proposto pelas editoras, os autores convidados para o presente número especial da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental nos brindam com excelentes trabalhos, refletindo sobre diversos aspectos da pandemia de COVID-19, em visadas clínicas, sociais, culturais, históricas e psicopatológicas.

*Ana Maria G. R. Oda, médica psiquiatra, é editora responsável da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.

*Sonia Leite, psicanalista, é editora responsável da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.

Publicado originalmente como Editorial de setembro da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, Pandemia, Psicopatologia e Subjetividade, 23(3), 457-671, setembro 2020. Link: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=1415-4714&lng=pt.

Referências


Allegrante, J. P., Auld, M. E., &Natarajan, S. (2020). Preventing COVID-19 and its Sequela: “There is no Magic Bullet… It’s Just Behaviors”. American journal of preventive medicine, 59(2), 288-292. Recuperado de: <https://doi.org/10.1016/j.amepre.2020.05.004>.

Andreazzi, C. S. de, Brandão, M. L., Bueno, M. G., Winck, G. R., Rocha, F. L., Raimundo, R. L. G. et al. (2020). Brazil’s COVID-19 response. The Lancet, 396 (10254), E30, September 19. <https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31920-6>

Baqui, P., Bica, I., Marra, V., Ercole, A., & van der Schaar, M. (2020). Ethnic and regional variations in hospital mortality from COVID-19 in Brazil: a cross-sectional observational study. Lancet Glob Health, 8: e1018–26. Recuperado de: <https://doi.org/10.1016/S2214-109X(20)30285-0>.

Barreto, M. L., Barros, A. J. D. de, Carvalho, M, S., Codeço, C. T., Hallal, P. R. C., Medronho, R. de A., Struchiner, C. J., Victora, C. G., Werneck, G. L. (2020). O que é urgente e necessário para subsidiar as políticas de enfrentamento da pandemia de COVID-19 no Brasil? Revista Brasileira de Epidemiologia, 23, e200032. https://dx.doi.org/10.1590/1980-549720200032

Bermudi, P. M. M., Lorenz, C., Aguiar, B. S. de, Failla, M. A., Barrozo, L. V., Chiaravalloti-Neto, F. (2020). Spatiotemporal dynamic of COVID-19 mortality in the city of São Paulo, Brazil: shifting the high risk from the best to the worst socio-economic conditions. arXiv:2008.02322. Disponível em: https://arxiv.org/abs/2008.02322

CoronavírusResource Center. Johns Hopkins University& Medicine. Recuperado em 29 set. 2020 de: <https://coronavirus.jhu.edu/>.

Hallal, P. (2020). Mais pobres têm o dobro do risco de se infectarem com coronavírus no Brasil. UOL – Universo online. Recuperado em 1 set. 2020 de: <https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2020/07/08/mais-pobres-tem-o-dobro-do-risco-de-se-infectarem-com-coronavirus-no-brasil.htm.>

Pfefferbaum, B., & North, C. S. (2020). Mental Health and the Covid-19 Pandemic. N Engl J Med,383, 6.  <https://doi.org/10.1056/nejmp2008017>.

Santos, B. de S. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra, PORT: Almedina, 2020.

The Lancet. Editorial: COVID-19 in Brazil: “So what?” (2020). The Lancet,  395(10235), p. 1461, May 09. <https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3>

 

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