Uma mulher negra no STF?

Imagem: Donald Tong
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Por RAYNER DOS SANTOS RODRIGUES*

Esta indicação enfrenta resistências dos que ainda negam a centralidade do debate sobre as opressões às minorias na construção de um outro país verdadeiramente democrático

O sistema colonial português criou uma filosofia étnica que serviu de fundamento para a construção do ordenamento social brasileiro. Estabelecendo níveis civilizatórios de acordo com a composição étnica, a partir desta ideologia edificou-se uma hierarquização social pautada não na capacidade ou incapacidade de cada um, mas na cor e origem de nascimento – nesta hierarquia o negro compõe o seu nível mais baixo.

Assim, como os espaços de poder e prestígio social representavam os interesses da classe senhorial, sua composição era branca, já que, por meio daquele mecanismo de seleção racial, quanto mais se sobe ao topo da pirâmide social, mais branca é sua composição.

Com o fim do escravismo, ainda que sob novas formas, esta filosofia étnica se manteve e, por isso, estabeleceu, também, a estratificação social da sociedade de classes. Nela, novos mecanismos mantém o negro imóvel na parte inferior da sociedade brasileira, de modo que os espaços de poder e prestígio continuam sendo a representação da elite brasileira e, por isso, continuam sendo brancos. No Supremo Tribunal Federal não foi diferente: criado em 1891, sua composição histórica é marcada pela indicação de 171 ministros, destes, 168 brancos, sendo apenas 3 mulheres, nenhuma delas negra.

É certo que a indicação de uma mulher negra, por si, não é capaz de reformular uma instituição que sempre cumpriu o papel de garantia dos interesses das elites nacionais e internacionais, como no seu papel no golpe de 2016 – o grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo –, na proteção à atuação ilegal da Operação Laja Jato, na retirada da candidatura de Lula na eleição presidencial de 2018 e no aval para a venda e destruição do que restava dos setores industriais nacionais, perpetradas por Paulo Guedes e Jair Bolsonaro – por este motivo, aliás, é preciso a indicação daquela que tenha um compromisso real com a defesa da soberania nacional e do desenvolvimento econômico e social do país, algo inexistente nas últimas indicações.

Mas, nesta sua limitada capacidade de atuação para a transformação do país dado esse caráter classista do judiciário, a indicação de uma mulher negra possui diversos papéis importantes, além do estritamente técnico. Por se tratar de uma nova perspectiva sobre os diversos temas, sua presença induz a uma série de debates, sobretudo sobre a questão racial, a exemplo do ocorrido nas universidades brasileiras após a entrada dos cotistas.

Além disso, sua representação em um espaço de poder e prestígio social possibilita interromper nos demais negros e negras um processo de negação de suas identidades, já que, por atrelar sua condição social inferiorizada à cor de sua pele, é comum entre esta parcela da população procurar se “embranquecer” na tentativa de ser melhor inserido nos circuitos de consagração e ascensão social – o que significa, por consequência, uma negação de seu papel político, enquanto sujeito negro, na transformação radical dessas estruturas sociais racializadas.

Mas, esta indicação enfrenta resistências daqueles que ainda negam a centralidade do debate sobre as opressões às minorias na construção de um outro país verdadeiramente democrático. Se, como dizem, a raça e o gênero não são critérios de escolha, e sim a qualificação técnica, então teria a mulher negra alguma pré-disposição natural à incapacidade de compreensão jurídica, uma vez que nenhuma delas foi indicada em 132 anos? O que este argumento tenta esconder é que o gênero e a raça sempre foram, sim, critérios de escolha e, se assim os são, por que não uma mulher negra no STF?

*Rayner dos Santos Rodrigues é graduando na Faculdade de Direito da USP.

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