Por CLARISSE GURGEL*
Se a esquerda resolver ocupar mesmo as ruas, terá que encarar um encontro real, em vielas, becos e valas armadas
Não são poucos a cogitar que Lula, mais uma vez, não estabelece um debate franco, mesmo no interior do Partido dos Trabalhadores, acerca do impeachment de Bolsonaro. Segundo muitos, para a cúpula do PT, seria preferível manter Jair M. Bolsonaro no pleito de 2022 a dar chance para o capital encontrar um nome mais alinhado, capaz de derrotar Lula nas urnas.
O capital, por sua vez, já começa a testar nas ruas seus nomes alternativos. Porém, encontra limites na concretude, para além dos apoios em redes e nos fóruns organizativos dos atos. Presentes, nas manifestações, estavam o PDT, de Brizola, e o neo-PSB, de Marcelo Freixo, que de Denise Frossard já tem bastante. Mas o capital queria, nas ruas, ali, juntos e misturados, o PSDB e o PT. Afinal, onde estava Dória, neste sábado, quando a avenida Paulista foi tomada por gritos, na defesa do impeachment do atual presidente, tido como seu arqui-inimigo? A direita queria esse grande encontro.
O fato é que as ruas oferecem algo que nenhuma rede virtual ou aplicativo é capaz de oferecer. Algo que aproxima propaganda, agitação e ação direta. Essas três dimensões da ação política, quando conjugadas presencialmente, são potencializadoras da verdade. Como sessões de expurgos, alguns nomes que ousaram aparecer nos atos, na vida real, foram vaiados e hostilizados. Foi o caso de Ciro Gomes e Paulinho da Força, em São Paulo. Tamanho refúgio nas telas levou alguns a preferirem enviar vídeos, devidamente projetados em telões, na avenida. Esta é a segurança de que dispõe a atividade remota e que já tem se evidenciado no aprofundamento da intolerância na política, deixando evidente, também, o que não se pode mais tolerar.
Na contra mão disto, está a relação face a face que, até agora, só as igrejas, o tráfico e as milícias fizeram, nos últimos trinta anos, aprofundando, porém, o alinhamento do Brasil com os EUA, via neopetencostalismo, empreendedorismo e bala. De tal modo, que a direita e, mais precisamente, a ultradireita, exerce o monopólio do trabalho político presencial, há, no mínimo, três décadas, no Brasil. E, com isto, o monopólio da desobediência.
Esse refúgio nas telas, aliás, tem sido a marca desta algorocracia, apoiada na radicalização de um elemento constituinte do capitalismo – seu aspecto genuinamente ilusório, fantasioso, que vai da mercadoria ao capital fictício. Fake news é pinto, perto de banco fake, vacina fake, facada fake, obituário fake, eleições fake… Não somente a produção da farsa é mais barato – afinal, é mais custoso reunir dinheiro para produzir vacina, do que prometê-la em minutas, para breve. Este caráter reprodutor da farsa, aliás, ganhou um grande impulso na pandemia.
De tal modo que tudo parece carregar um risco de ter uma farsa revelada. Não só aulas, reuniões, seminários passaram a ser preponderantemente remotos. As manifestações são veiculadas, ao vivo, por diversos canais, na rede. Mesmo as relações mais íntimas têm sido cada vez mais virtuais: nudes, match, sexos-virtuais. Ao mesmo tempo em que tudo se prova, pois de tudo se tem imagem, tudo se nega, pois toda imagem pode ser uma seleção manipulada e manipuladora.
Mas é interessante como este íntimo encontra uma mesma fronteira, quando só na virtualidade. E o termo é feliz, pois, tal como o virtual, é um íntimo que carrega em si muito de um caráter especulativo, de promessa: projeta-se uma noite intensa, cheia de loucuras. Uma noite que nunca chega. De tal modo que, assim como um encontro amoroso que nunca se realiza ou colegas de trabalho que nunca se conhecem, os atos parecem prometer algo, cujo fracasso atualiza sua necessidade.
É o que o capital quer, que a esquerda sempre ofereça “palanques da cidadania”, como tubos de ensaios para resolver sua crise de quadros, até 2022, e, assim, produzir um resíduo, um chorume de todas as passeatas, se não viralizar, com o perdão da palavra, em uma nova dramaturgia. Em uma gana em paralaxe, na busca de tudo, a direita abocanha até o resto. E para que não se perca o que Rousseau chamou de “momento oportuno”, os que estão nas ruas parecem já estar dispostos a impedir que a direita cerque os atos e os chame de seus.
Esta tensão exige que as manifestações saiam do circuito desejado pelo capital e, infelizmente, pelo próprio Lula, que apoia timidamente os atos para que, ao mesmo tempo, não deem em impeachment e não percam o seu carimbo de estrela. A grande noite é sempre adiada. É preciso, portanto, que os atos forcem, ainda mais, um encontro mais íntimo entre os da esquerda, os pobres e os que trabalham. Seja em seus preparativos, seja em sua realização, seja em seus desdobramentos. Mas, para isso, a esquerda precisa sair de uma rede de equivalências, no sentido fortíssimo do termo, e deixar de acreditar em uma grande noite.
Há situações em que o sujeito busca um parceiro em um aplicativo de relacionamento apenas para estabelecer um relacionamento mais profundo no aplicativo. É o caso em que o meio torna-se fim, mas cujo fim ajusta-se, perfeitamente, aos novos moldes do meio. Não é pra transar, é para conversar. E aí, a transa é na conversa. Observem, porém, que, este deslocamento assume a feição de moralização: sempre acompanhada desta postura mais comedida do casal, está a declaração de que os dois estão no aplicativo em busca de uma relação mais verdadeira. Este “mais verdadeiro”, em muitos casos, implica em uma constância na rede. De tal modo que a crítica ao uso pragmático e instrumental do meio acabe por renovar a própria utilidade e necessidade do instrumento, em um mais-de-gozo.
O mesmo parece ocorrer nas manifestações em oposição ao genocídio brasileiro. Agora, o capital – liberal na política, liberal na economia e humanista no discurso – , cobra que a esquerda aceite os partidos da direita em seus atos, condenando o que entendem se tratar de uma mesquinharia política de setores ligados ao PT e ao PSOL, com olhos voltados apenas para as eleições. Dito de outro modo, diferentemente, a direita busca uma conversa, mas não é só pra transar. Já a esquerda estaria protestando pra ganhar votos, fazendo uso do instrumento das passeatas e manifestações em busca de uma aproximação maior entre eleitores e candidatos, tal como em uma rede de relacionamentos ou qualquer uberização, cujo objetivo maior é acelerar a circulação, aproximando o serviço do consumidor.
Assim, o que se espera é que, em nome de algo maior, um “bem comum” – a democracia -, a esquerda permita que a direita participe das passeatas, em meio à multidão. Deste modo, a direita critica o uso dos atos para fins eleitorais, pois, só por meio de uma pauta ampla, ela é capaz de repetir, como farsa, a tragédia de 2013, reutilizando os atos para fins eleitorais.
No entanto, a direita começa a testemunhar seus limites, nas ruas, diante de uma esquerda ainda mais experiente e com muita capacidade de aglutinação. Deste modo, a esquerda firma seu nome e tem a chance de demarcar os limites para a composição de algo que, para além de frente única, é uma frente cultural. O povo brasileiro parece fazer uma escolha e ela envolve algo diferente da direita. O recado é para Goebbels e seus seguidores, que terão de aprender que uma mentira, quando muitas vezes repetida, não se torna mais verdade, no Brasil.
Resta, agora, à esquerda reforçar seu traço, cavar seus túneis e subsolos para ocupar outras ruas, bem mais arriscadas. Se a esquerda resolver ocupar mesmo as ruas, terá que encarar um encontro real, em vielas, becos e valas armadas. Demarcar exigirá meios bem menos virtuais. Mas, assim, não terá algoritmo capaz de desviar, feito arritmia, os desejos de um povo que não goza de nada mais. Não terá fake que cole. São encontros às escuras, sem visibilidade, muitas vezes. Mas são encontros bem mais íntimos. De modo que a esquerda se veja envolvida e o povo mostre que verdades, quando muitas vezes repetidas, se tornam mudança.
*Clarisse Gurgel é professora de ciência política na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).