Por ION DE ANDRADE*
O desafio de integrar desenvolvimento econômico, inclusão social e cidadania
Como já disse um filósofo, quando uma coisa está em movimento, ela está e não está, ao mesmo tempo, em dado lugar. Com o governo Lula 3 dá-se o mesmo, como está em movimento, ele está e não está nos governos passados, está e não está no Brasil que devemos construir.
Essa condição natural do movimento produz discursos que poderiam parecer contraditórios, mas que refletem a própria elaboração de Lula e do seu governo quanto aos caminhos a seguir. Encontrar esse caminho produzirá um considerável ganho de velocidade no rumo efetivamente desejado. Não por coincidência, o governo quer o Brasil no “rumo certo” o que é uma equação bastante complexa.
Para manter esse movimento em marcha e no rumo certo é preciso, portanto, conhecimento preciso do que constitui a etapa do ontem e a do amanhã, o que fará com que o movimento ganhe velocidade.
Vejamos inicialmente nessa elaboração de Lula a parte do discurso, que se alinha aos governos passados. Não se trata, quero sublinhar, de uma crítica, mas do desejo de contribuir para que a dualidade natural do momento atual se conclua, o quanto antes, por uma nova síntese.
Na parte final do artigo veremos discursos e iniciativas do próprio Lula alinhados ao que entendemos seja o novo projeto de futuro. No centro do debate que propomos aqui o recorte do acesso ao direito à cidade, à inclusão social e à contemporaneidade para as maiorias.
O velho: de onde estamos vindo, um economicismo keynesiano para a multiplicação de consumidores
Influenciado pelo inegável sucesso dos governos passados, que são o ponto de saída do atual governo, o discurso de Lula tem sido marcado por um conteúdo de viés economicista centrado na melhoria da renda do povo que também funciona como locomotiva da economia.
É uma lógica verdadeira, (embora parcial) já que o crescimento econômico e a recomposição da esperança do povo no futuro do país produzem alegria de viver, popularidade e governabilidade.
O vídeo curto do portal “Lula Oficial” ilustra essa compreensão que, em economia, é keynesiana. Porém, a extrapolação linear dessa lógica keynesiana, de forma absoluta, numa espécie de keynesianismo social pode gerar um problema cuja detecção é crucial para afinar o rumo certo, que é o que nesse artigo propomos.
Antes de abordar o risco vale considerar que a incorporação dos mais pobres ao mercado consumidor, obviamente é parte da equação do dito “rumo certo”.
Vejamos, porém, os riscos contidos nesse “keynesianismo social”. Obviamente que Lula tem uma visão muito mais abrangente sobre o papel do povo na vida social do que esse fragmento de vídeo poderia deixar supor, e, obviamente, não seria justo reduzi-lo a meia dúzia de palavras num discurso de improviso.
O propósito aqui não é, portanto, de condenar, mas de: (a) tentar captar uma das ideias força presentes no momento histórico do Brasil de hoje, um “melhorismo” que, de certa forma, apequena realidade social que o governo se dá como alvo, cujo viés aí é bem mais “passadista” e (b) de reconhecer que elementos dessa compreensão minimalista do que o povo quer ou do que é devido ao povo efetivamente perpassam uma certa compreensão política e algumas ações de governo.
Alguns devem estar perguntando que diabos de risco esse vídeo ilustra? Vejamos.
Consumidores x cidadãos; integrismo religioso; jornadas de junho e mal-estar social
Nesse último vídeo, o horizonte estratégico da vida das maiorias é visto sob o prisma de uma extrapolação linear economicista da distribuição e da circulação da renda enunciada no primeiro vídeo, visão essa que desemboca na ideia de uma produção em larga escala de consumidores pobres, mas não de cidadãos.
O problema é que escapam desse ideário dois elementos estratégicos: (a) o projeto de vida coletiva das comunidades no seio das quais essas famílias vivem, que pode ser fonte de politização, participação e desenvolvimento de aptidões, mas também, por carência de projeto, de alienação política e social e (b) a ideia da formação cotidiana de uma consciência cidadã e politizada no meio do povo ou seja, aquela consciência que pauta a coletividade.
Embora a “felicidade da família nuclear” exaltada no vídeo seja parte da equação, tais ausências deixaram, nos governos Lula 1 e 2, esses novos consumidores pobres à mercê das igrejas neopentecostais que tiveram um crescimento exponencial com base na ocupação do espaço vazio deixado pela inexistência de um projeto cívico cidadão.
A ausência desse projeto cívico ajuda a explicar o tremendo mal-estar e a explosão de insatisfação das jornadas de junho de 2013, até hoje mal compreendidas, que emergiram como uma frustração difusa com a vida medíocre, limitada e sem horizontes vivida por milhões.
Vale também ressaltar, para além das jornadas de junho, que o horizonte pequeno burguês no meio popular, sem projeto cívico e sem preocupação com a formação de uma cidadania politizada e numerosa, quando prospera, é a sementeira do vigoroso e bem conhecido integrismo religioso. Esse integrismo é o projeto cívico substituto em decorrência da ausência de um projeto cívico indutor de participação social e cidadania.
Esse fenômeno, aliás, conseguiu, apesar dos pesados investimentos do Estado (em moradias, por exemplo) e do esforço hercúleo de diversas políticas públicas, ser vitorioso em incontáveis cenários naquilo que é mais estratégico: a formação da consciência de si e da sociedade pelo povo que, sob esse formato e na circunstância tenebrosa, se alinhou, como vimos, ao fascismo.
O que não se vê aí é que, os avanços citados por Lula como possíveis de serem conquistados pelo povo se forem vistos desde a perspectiva macro para a micro, revelarão (e é o que ele vê) a ação de um Estado que quer cuidar das pessoas, porém, se forem enxergadas na perspectiva inversa, da micro para a macro, que é o que está ao alcance das pessoas, o que sobressai é (a) o mérito pelo trabalho e (b) a ajuda de Deus pelos sacrifícios e pelos inúmeros sofrimentos trazidos por vidas inteiras de exclusão social.
A extrapolação da lógica economicista e a ausência do projeto cívico (vida coletiva e cidadania) produziu e aos milhões uma percepção carregada de afetos e certezas na meritocracia e no integrismo religioso com profundas raízes.
Veremos agora o que há de novo no próprio discurso de Lula e nas ações do governo Lula 3 que dão conta de que estamos em movimento e que o governo se busca e busca o caminho.
O novo: para onde temos que ir: um projeto cívico capaz de produzir vida coletiva e replicar a cidadania em grande escala
Então o povo não quer tão pouco assim, há elementos simbólicos novos no maior programa social previsto pelo governo que é o Minha Casa Minha Vida e que no discurso de Lula emerge, (batalha dos urbanistas que desenharam a ideia), com novidades como a sacada e a biblioteca, frestas solares de uma vida coletiva e cidadã que põem aí as suas primeiras folhas.
O vídeo curto abaixo mostra com maior clareza ainda de que trata esse projeto, vejamos.
A proposta, gestada no Napp Cidades da Fundação Perseu Abramo e no Br Cidades que agora se materializa no Novo Minha Casa Minha Vida é a da oferta da moradia casada com equipamentos sociais de qualidade para a cultura, o esporte e o lazer e suas políticas para o benefício não somente dos conjuntos Minha Casa Minha Vida como também das populações do entorno para quem a presença do Minha Casa Minha Vida trará qualidade de vida, facilitando a sua integração no tecido social e urbano do bairro onde estará.
Que diferença simbólica traz o equipamento público preenchido por suas políticas específicas para a cultura, o esporte, o lazer… em relação à “felicidade da família nuclear” da extrapolação keynesiana? Ele produz vida coletiva, domínio de uma arte ou de um esporte (novas aptidões), uma nova cosmologia do eu no mundo, atado a um “nós”, autoconfiança e autoestima pelo avanço interior do domínio da técnica, novos horizontes de interesse, trabalho em equipe, autodisciplina… e oferta dessas novas oportunidades. A casa e o carro, não, mas o equipamento cultural ou esportivo funcionando escapam à ideia da meritocracia individual, pois devolvem visibilidade meridiana à ação pública e politizam porque nesse desenho o desenvolvimento de cada um condiciona o desenvolvimento dos outros!
Embora o Minha Casa Minha Vida não possa ser definido como periferia, pois já se trata de uma política de saída, nele a proposta surge como uma primeira matriz do que poderá ser feito no conjunto das periferias brasileiras enquanto política integrada a diversas outras, todas focadas no enfrentamento de séculos de abandono dos mais pobres devido à omissão do Estado. Essa ideia força está presente na elaboração da Secretaria de territórios periféricos do Ministério das Cidades através do inovador Projeto periferia viva.
A própria Secretaria de territórios periféricos, comandada por Guilherme Simões, criada com o papel de construir a integração das políticas públicas nas periferias, é uma inovação genial desse governo Lula 3 e pertence, portanto, ao universo de feitos e ideias desse “para onde devemos ir” do movimento que está em andamento.
Vale salientar que, com cada ministério focado na busca do rumo certo por conta própria, que a Secretaria de territórios periféricos oferece ao conjunto do governo a oportunidade de buscar esse rumo certo de forma integrada onde ele é mais necessário: as favelas, comunidades, bairros populares e zonas rurais do Brasil.
Na condição de torcedor do governo Lula penso que seria um golaço fortalecer as ações de direito à cidade, de inclusão social e de acesso à contemporaneidade nos territórios periféricos de forma integrada. De fato, no cenário social do Brasil de hoje nada há de mais importante, o que justificaria até mesmo um verdadeiro esforço de guerra por essas bandeiras estratégicas para a sociedade, para as pessoas e para a democracia brasileira.
Esse esforço (i) é factível, pois temos a competência nacional para fazê-lo; (ii) é barato, sobretudo se utilizarmos a estratégia de territorialização como faz o SUS, pois essa nova rede de equipamentos e políticas é muito mais barata do que a do SUS e (iii) é estratégico, pois produzirá cidadania a cento por um, massa crítica crucial para a estabilidade da democracia, para a governabilidade, para a sedimentação dos consensos necessários à continuidade dos avanços sociais e transformará em definitivo e para melhor a sociedade brasileira.
*Ion de Andrade é médico, professor universitário e membro da Rede BrCidades.
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