Uma repactuação?

image_pdf

Por LUIS FELIPE MIGUEL*

Comentário sobre o artigo de Ascânio Seleme publicado no jornal “O Globo”

O infame artigo de O Globo sobre “perdoar o PT” é um dos acontecimentos mais significativos da atual conjuntura política [1]. O sentido do golpe de 2016 foi silenciar de vez o campo popular na política brasileira, a fim de que o desmonte do Estado e dos direitos pudesse avançar com rapidez e sem contratempos. Mesmo uma política de moderação extrema, ciosa dos estreitos limites da transformação social no Brasil, como a do lulismo, era considerada algo a ser extirpado.

Para alcançar esse objetivo, a Constituição foi rasgada várias vezes. Uma presidente legítima foi derrubada. Os abusos da Lava Jato foram aplaudidos. O ex-presidente Lula foi condenado e preso em julgamentos farsescos e ao arrepio da lei. A violência política se agigantou. Os militares foram trazidos de novo para o proscênio da política nacional. Quando chegaram as eleições de 2018, os mesmos que articularam o golpe preferiram apoiar um criminoso intelectualmente incapaz a abrir diálogo com um liberal cauteloso como Fernando Haddad.

Uma aposta de risco. Se Bolsonaro entregou muito do que prometera, com as medidas antipovo e antinação de Guedes, por outro lado mostrou-se danoso, seja por sua incompetência administrativa e intemperança verbal, seja por privilegiar os interesses paroquiais (ou devo dizer “milícias”?) aos quais está associado. Prisioneiro do discurso superficialmente antissistêmico que o projetou, de uma dinâmica de conflito e também de sua própria masculinidade frágil, que o faz ver qualquer compromisso como humilhação, em muitas áreas Bolsonaro mostrou-se disfuncional para grupos que o apoiavam.

A rede Globo é um deles. A rede exige ser chamada a participar da partilha do poder – e, portanto, zela pela manutenção de seus próprios recursos de pressão diante dos governantes. Já Bolsonaro se sente mais confortável com parceiros menos demandantes. Estranhou-se com a rede Globo não apenas por criticar sua programação, destratar seus jornalistas ou repetir bravatas sobre a não renovação da concessão. Bolsonaro diminuiu a participação da rede Globo na verba publicitária do governo; agiu no sentido de beneficiar suas concorrentes, recriando sorteios na TV; atingiu uma fonte de receita importantíssima, no caso da transmissão dos jogos de futebol.

E a Globo sente que não é mais – se é que um dia de fato foi – aquele poder supremo que faz e desfaz presidentes no Brasil. Já havia sido derrotada por Temer. E agora não consegue enquadrar Bolsonaro. Daí o aceno ao PT. O autor é um porta-voz autorizado do império dos irmãos Marinho; não é insensato ler o texto como sendo uma posição oficiosa da empresa.

Não vou me estender sobre os absurdos do artigo. Todas as arbitrariedades cometidas nos últimos anos (o golpe contra Dilma, o lawfare contra Lula) são apresentadas como justas punições aos “malfeitos” petistas. O perdão do PT é condicionado ao abandono, pelo partido, de bandeiras abominadas, como democratização da mídia e participação popular.

As respostas dos petistas ao artigo foram – como serea de se esperar – de indignação. Mas tendo a crer que não foi para eles que o artigo foi escrito – foi para os outros setores da direita interessada em deter Bolsonaro. Eles sabem – como Ascânio Seleme escreveu – que não é possível alcançar esse objetivo sem o apoio militante daqueles que estão à esquerda do centro.

Tentaram, em primeiro lugar, obter esse apoio sem abrir qualquer brecha para que o campo popular tivesse voz. Era a estratégia das “frentes amplas”, em que cabia à esquerda nada mais do que abraçar FHC, Michel Temer e Luciano Huck e assinar manifestos em defesa de valores inefáveis.

Seduziu muita gente, dentro do próprio PT e também do PSol. Mas a oposição enérgica de Lula freou o entusiasmo. Essa oposição, aliada ao fato de que muitos à direita deixaram transparecer que seu objetivo na tal “frente ampla” era negociar em melhores condições uma acomodação com Bolsonaro, desinflou estas iniciativas, que no momento parecem ter caído numa desmoralização sem retorno.

Por isso, O Globo propõe dar um passo à frente. Ele propõe que se aceite, hoje, aquilo com que Lula acenou tantas vezes depois do golpe, quando se lançou candidato, e que reiterou ao colocar Fernando Haddad como seu substituto: uma repactuação que readmita a centro-esquerda como participante do jogo político, pagando o preço da aceitação da maior parte dos retrocessos dos últimos anos.

Não acho que seja uma boa saída. Mas o fato é que o principal conglomerado da imprensa burguesa está propondo, para seu campo, essa alternativa que, até há pouco, era alvo de anátema. Essa é uma mudança importante na conjuntura.

*Luis Felipe Miguel é professor de ciência política na UnB. Autor entre outros livros de Consenso e conflito na democracia contemporânea (Unesp).

Nota

[1] Ascânio Seleme. “É hora de perdoar o PT” [https://oglobo.globo.com/opiniao/e-hora-de-perdoar-pt-24527685].

 

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES