Uma tempestade perfeita

Imagem: Clara Figueiredo, sem título, ensaio. Fotografia analógica digitalizada, São Paulo, 2019.
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Por NGAIRE WOODS*

Covid-19, guerra na Ucrânia, fome, revoltas políticas e crises da dívida afetam os países em desenvolvimento

Sem qualquer responsabilidade, os países em desenvolvimento enfrentam uma tempestade perfeita de fome, revoltas políticas e crises da dívida. A invasão russa da Ucrânia e as sanções conduzidas pelo Ocidente por ela desencadeadas são parcialmente culpadas, assim como os lockdowns da Covid-19 nas economias avançadas, que privaram os países pobres da crucial atividade do turismo e da receita das exportações.

Milhões de vidas agora estão em risco, mas a mitigação é possível. Ela deveria começar nas reuniões de primavera deste mês do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.

Os formuladores de políticas têm muito a tratar – começando pela escalada dos preços dos alimentos. O conflito Rússia-Ucrânia, envolvendo países que fornecem 29% do trigo do mundo, contribuiu para um aumento de 67% dos preços do trigo desde o início deste ano. As proibições de exportação impostas por outros produtores de trigo também estão impulsionando o aumento dos preços, assim como a escassez de fertilizantes devido à redução do fornecimento da Bielorrússia e da Rússia.

Sem surpresa, a fome está se espalhando. Os primeiros países a serem atingidos são aqueles que estavam em situação desesperada antes da invasão russa, incluindo Afeganistão, República Democrática do Congo, Etiópia, Nigéria, Paquistão, Sudão, Sudão do Sul, Síria, Venezuela e Iêmen. Rapidamente juntaram-se a eles países que dependem de grãos importados e já enfrentavam uma grave insegurança alimentar, como Djibuti, Lesoto, Moçambique, Burundi, Madagascar, El Salvador, Líbano, Honduras, Suazilândia, Guatemala e Namíbia.

O diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas, David Beasley, emitiu recentemente um aviso severo: “Se você acha que agora temos o inferno na Terra, prepare-se. Se negligenciarmos o norte da África, o norte da África virá para a Europa. Se negligenciarmos o Oriente Médio, [o] Oriente Médio virá para a Europa”.

O aumento dos preços dos alimentos e a fome tornarão mais prováveis tumultos e revoltas políticas. Mesmo antes do início da guerra na Ucrânia, as pessoas tinham mergulhado em crises no Afeganistão, Etiópia, Somália, Iêmen, Myanmar, campos de refugiados sírios, e em outros lugares. Em março, protestos em larga escala irromperam em países como Camarões, Índia, Paquistão, Sri Lanka e Espanha.

Os governos que podem tomar medidas preventivas já estão fazendo isso. O Egito, por exemplo, que importa cerca de 80% de seu trigo da Rússia e da Ucrânia, introduziu recentemente um limite de preço para conter o aumento do preço do pão não subsidiado (o governo já subsidia o pão para a maioria da população). O governo também anunciou um pacote de ajuda econômica totalizando 130 milhões de libras egípcias (7 milhões de dólares). Estas medidas foram possíveis graças à  assistência do FMI e da Arábia Saudita. Mas muitos países ainda não receberam tal ajuda.

A falta de cooperação está provocando fome e conflito. Surpreendentemente, os estoques globais de arroz, trigo e milho, os três principais produtos básicos do mundo, estão aparentemente em  máximos históricos. Mesmo os estoques de trigo, a commodity mais afetada pela guerra da Ucrânia, estão “bem acima dos níveis durante a crise de preços de alimentos de 2007-08”, enquanto as estimativas sugerem que cerca de três quartos das exportações russas e ucranianas de trigo já tinham sido entregues antes da invasão.

Uma grave crise da dívida também está se desenvolvendo, já que muitos países de baixa renda, levados a seu limite pela Covid-19, são atingidos por preços mais altos de alimentos e combustíveis, menores receitas do turismo, acesso reduzido aos mercados internacionais de capitais, interrupções no comércio e nas cadeias de suprimentos, remessas reprimidas e um aumento histórico dos fluxos de refugiados. A dívida dos países em desenvolvimento subiu para um pico de 50 anos, em cerca de 250% da receita dos governos. Cerca de 60% dos países que eram elegíveis para a Iniciativa de Suspensão do Serviço da Dívida do G20 (DSSI), relacionada com a pandemia, estão experimentando ou correndo alto risco de sobreendividamento.

Além disso, um crescimento global mais lento e uma inflação crescente, acompanhados de condições financeiras mais apertadas nos países mais ricos, estão estimulando as saídas de capital das economias em desenvolvimento, forçando-as a desvalorizar suas moedas e aumentar as taxas de juros. Como observou recentemente o presidente do Banco Mundial, David Malpass, “nunca tantos países experimentaram uma recessão simultânea”. Malpass acrescentou que as políticas de estímulo das economias avançadas ajudaram a piorar a situação, impulsionando os aumentos de preços e aumentando a desigualdade em todo o mundo.

Encontrar uma solução genuinamente global para estes problemas é agora vital. Em crises da dívida anteriores, os países ricos usaram o FMI e o Banco Mundial para forçar a sobrecarga de ajustes para as economias em desenvolvimento, argumentando que eles devem empreender reformas antes de receber assistência. Mas as forças mais poderosas que golpeiam as economias de baixa renda endividadas hoje são globais e estão fora de seu controle – e os países membros do FMI e do Banco Mundial devem reunir recursos e cooperar para enfrentá-los.

A boa notícia é que os poderosos acionistas dessas instituições provaram ser capazes de ação coletiva. Em agosto passado, por exemplo, eles concordaram com uma nova alocação de 650 bilhões de dólares de direitos especiais de saque (DES, o ativo de reserva do FMI).

Mas, como os DESs são distribuídos de acordo com as quotas dos países no FMI, a maior parte da alocação foi para as economias maiores. Pior ainda, os principais acionistas do FMI e do Banco Mundial não conseguiram canalizar recursos para onde eles são mais necessários. Em vez disso, para limitar sua possível exposição a quaisquer perdas, eles continuam insistindo em condições que impedem uma implantação rápida. Esta abordagem também ameaça prejudicar o novo Fundo de Resiliência e Sustentabilidade do FMI e o financiamento emergencial do Grupo Banco Mundial.

Uma abordagem coletiva muito mais ousada é agora necessária. Estados Unidos, China, Japão, União Europeia e Reino Unido dependem da segurança global e da prosperidade. Eles devem trabalhar juntos para evitar a fome, os conflitos e uma crise da dívida dos países em desenvolvimento, que levará o mundo à recessão. Eles podem evitar a fome agindo em conjunto para acalmar os mercados globais de trigo e outros cereais e para tomar medidas para manter as exportações fluindo. Eles podem reduzir o risco de conflito não atrapalhando a assistência de emergência do FMI e do Banco Mundial com condicionalidades. E eles podem basear-se no DSSI, criando um mecanismo de reestruturação da dívida no qual todos eles participem.

Dois elementos centrais são cruciais para gerenciar a atual crise dos países em desenvolvimento. Países poderosos devem abster-se de políticas comerciais, fiscais e monetárias de empobrecimento do vizinho que causem estragos nas economias em desenvolvimento. E devem usar seus recursos combinados no FMI e no Banco Mundial para agir rápida e incondicionalmente a fim de evitar o desastre.

Os desafios enfrentados pelos países mais pobres não têm precedentes. E isso significa que a resposta cooperativa das economias mais ricas também deve sê-lo.

*Ngaire Woods é reitor da Blavatnik School of Government da University of Oxford.

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no site do Project-Syndicate.

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