Valerio Zurlini

image_pdf

Por MARIAROSARIA FABRIS*

Relações entre os filmes “Verão violento” e “A primeira noite de tranquilidade”

A orientação de uma tese de Doutoramento levou-me a restabelecer um contato mais aprofundado com a obra de Valerio Zurlini. Embora tendo sugerido e estimulado o tipo de abordagem proposto nessa tese – uma análise prevalentemente à luz do existencialismo –, algumas obras de Valerio Zurlini me colocavam também questões relativas à recente história da Itália, que, a meu ver, constituíam outra camada a ser explorada, indo além do enredo aparente.

Refiro-me particularmente a Estate violenta (Verão violento, 1959) e La prima notte di quiete (A primeira noite de tranquilidade, 1972), as quais, se vistas em contraponto, me permitiriam discutir como certos valores de classe, que pareciam superados, ainda persistiam na sociedade italiana.

Apesar dessa intuição não conseguia encontrar como abordar tais questões, até que me deparei com a resenha de Roberto Schwarz (2007) sobre o ensaio “Teatro do Sul” que Gilda de Melo e Sousa (1980) dedicou à peça A moratória (1955), que, junto com a consequente releitura do ensaio, da obra de Jorge Andrade e do prefácio de Décio de Almeida Prado (1973) e da encenação do Grupo Tapa (2008), me forneceu a chave de leitura para poder aproximar-me dos dois filmes – a questão do antes e do depois no decorrer do tempo, com o espaço cênico dividido em duas partes: à esquerda, o passado; à direita, o presente.

1.

Verão violento narra o romance entre Carlo Caremoli, filho de um dos dirigentes do Partido Fascista na região da Emília, e Roberta Parmesan, a viúva de um oficial da marinha italiana, no conturbado verão de 1943, quando – com a destituição de Benito Mussolini do cargo de chefe do governo, pelo Grande Conselho do Fascismo, em 25 de julho – a Itália se encaminhava a passos largos para o conflito interno que sacudiria o país entre 8 de setembro daquele ano e o fim da guerra (25 de abril de 1945).

Uma história de amor – proibida pelas convenções sociais (a recente viuvez de Roberta, o fato de ser mais velha do que Carlo, a rápida evolução do romance, a interdição do desejo feminino)[1] e truncada pelo recrudescimento da guerra – que se desenrola na cidade de Riccione, balneário para pessoas abastadas, na costa do Mar Adriático, a mesma em que o Duce ia exibir seus dotes físicos durante o verão e na qual Zurlini passou suas últimas férias antes de alistar-se no Corpo Italiano de Libertação, ou seja numa daquelas divisões do exército italiano que lutaram ao lado dos Aliados contra os nazifascistas, entre setembro de 1943 e o fim da guerra.

Nessa obra de 1959, na opinião do crítico de cinema Alfredo Sternheim, o que chama a atenção, ainda hoje, é a questão da impossibilidade amorosa, a qual se sobrepõe ao contexto da Segunda Guerra Mundial.

E, reportando também uma entrevista que o cineasta lhe concedeu em 1965, afirmava: “Quando eu falei que achava que o cinema dele, Verão violento principalmente, tinha […] um peso sociológico, ele disse que não, que não se preocupava muito com isso, ele se preocupava mais em contar a história, em passar o sentimento, em passar a emoção, e que ele não pretendia […] fazer um cinema de autor, mas um cinema que tocasse as pessoas, que ele não pretendia ser fiel […] a características temáticas, se elas acontecessem, aconteciam, mas que não era uma preocupação essencial dele”.

O crítico cinematográfico italiano Bruno Torri (em entrevista que integra o DVD A moça com a valise) também destacou isso no filme, ao dizer que este “fala principalmente de sentimentos, é uma história existencial”, salientando, porém, que “além dessa narração dos sentimentos, das emoções, da paixão amorosa, […] pressente-se ainda o background daquele período”.

O próprio Valerio Zurlini, aliás, em entrevista concedida a Jean Gili, pareceu corroborar essa ideia: “ao ler os clássicos, entendi que bonita é a fusão entre um fato privado e os acontecimentos históricos. Minha profunda formação tolstoiana revela-se também nesta pequena equação: uma história privada é engrandecida e torna-se extraordinária, isto é, necessária, ao apresentar-se tendo como fundo um grande acontecimento histórico”.

Como já foi dito, Verão violento trata de um momento histórico crucial; entretanto, em relação aos demais inúmeros filmes dedicados à guerra na Itália, o faz de forma bastante original (poderia dizer-se, do avesso), focalizando não os aspectos heróicos da resistência aos nazifascistas[2], mas como jovens da burguesia e da alta burguesia viveram despreocupadamente aquele período antes de serem alcançados pelo conflito bélico.

Ao prefaciar A moratória, Décio de Almeida Prado advertia: “Não compreenderá nada do alcance da peça quem não pressentir, por detrás dos indivíduos, e dos episódios particulares que ela narra, a agonia de uma sociedade em vias de transição […]. Ao serem eles mesmos, os personagens são também ‘padrões’ exemplares de sua classe social”.

Nesse sentido, os protagonistas da realização zurliniana de 1959 são personagens plenos, dotados de espessura psicológica (notadamente Roberta, mais inquieta e com seus anseios frustrados), mas nem por isso deixam de ser, como os demais, tipos representativos da camada social à qual pertencem, que, ao viverem sua estação dourada, parecem indiferentes aos novos ventos que começavam a soprar no país, como apontou o próprio diretor, na entrevista a Gili: “Com o retrato do ambiente analisado em Verão violento, não havia tentado fazer uma análise crítica, mas lembrar de certas impressões visuais experimentadas no decorrer daquele verão de 1943. Procurava reencontrar o vazio que rodeava a juventude do período, um vazio intelectual, cultural, um vazio de confiança, uma ausência de expectativas no futuro. Eles eram assim: garotos esquisitos, meio estúpidos, fruto de uma educação que, no fundo, queria que fossem estúpidos e não inteligentes. O filme se desenrola na boa burguesia da época: naquele ambiente social, os que se interessavam por algo eram uma exceção”.

Esse jogo entre os personagens em primeiro plano e o fundo, sem dúvida alguma, dota a obra de ressonâncias mais profundas, nem sempre apreciadas principalmente na época de seu lançamento. Na verdade, em Verão violento, a guerra, que parecia só insinuar-se no cotidiano daquela juventude dourada[3], aos poucos vai mostrar também sua face mais brutal, como na sequência da destruição da sede do Partido Fascista ou no bombardeio do trem antes da estação de Bolonha, que encerra a trama e determina a separação dos dois amantes[4].

O filme foi criticado por preferir a investigação psicológica das personagens à elucidação política daquele momento e por deixar um drama individual prevalecer sobre uma tragédia coletiva, por pesquisadores como Gian Piero Brunetta (na década de 1980) e Orio Caldiron, Elio Girlanda e Pietro Pisarra (nos anos 1990)[5]. O contexto histórico, porém, será mesmo apenas um pano de fundo?

Jean Gili, ao traçar o itinerário da realização zurliniana, não concordou muito com essa leitura e, num comentário bem próximo ao do crítico teatral brasileiro sobre a peça de Jorge Andrade, ponderou: “O grande mérito do filme […] está na interação permanente entre a história da Itália e o destino dos amantes, cuja aventura sentimental constitui a trama aparente do filme: a cada instante, a crise política do país reflete-se nos protagonistas, provocando, de vez em vez, um louco amor, cinismo, amoralidade, consciência diante das necessidades do momento. A obra inscreve seu desenrolar romanesco num contexto histórico preciso e traz agudamente o problema da deserção intelectual e da decomposição moral de uma juventude entorpecida por vinte anos de fascismo”.[6]

Nesse sentido apontado por Gili, Verão violento traz à memória um antecessor ilustre dentro da cinematografia italiana. Refiro-me a Senso (Sedução da carne), cuja ação se passa no período final das lutas pela unificação da Itália (1866), realizado em 1954 por Luchino Visconti, que o cineasta bolonhês tanto admirava, como lembra Piero Schivazappa, seu assistente de direção.

A trama dos dois filmes é muito parecida, principalmente no que diz respeito à atração exercida por um jovem sobre uma mulher mais madura, a qual, apesar da (aparente) divergência de convicções políticas, em nome desse sentimento enfrenta as convenções sociais e, tentando salvar o amante da guerra, incentiva sua deserção.

Valerio Zurlini, na entrevista a Gili, afirmou que tentou evocar uma mentalidade, modos de falar e a moral da época, ao filmar essa obra. Nela, no entanto, há uma espécie de “ruído”, em termos de temporalidade, que não pode deixar de ser notado: refiro-me à caracterização dos personagens, especialmente os femininos, cujos penteados, maquiagem, trajes (inclusive a padronagem dos tecidos) e até comportamentos remetem mais à época de realização do filme do que ao período retratado.

Esse fato foi apontado também por Tullio Masoni, o qual, em vez de atribuí-lo tão somente a dificuldades produtivas[7], preferiu ver nisso um traço estilístico que conferiria a Verão violento um significado histórico mais profundo: “a pobreza [de meios] transformou-se deveras em ocasião de estilo, não apenas pela qualidade e pelos equilíbrios expressivos, mas também por uma espécie de intriga temporal. Queremos dizer que a ambiguidade filológica, pela qual a trama parece ambientada tanto durante a guerra quanto no fim dos anos cinquenta […], parece dignificar, de um lado, uma intenção problemática: a escolha necessária e confusa de Carlo pode aludir à necessidade de sair de outra escuridão, a dos anos cinquenta, precisamente”.

Essa observação aguda de Masoni, que dota a obra de dois planos temporais (o do passado e o da atualidade), vem resolver também certo mal-estar “ideológico” experimentado não só diante da escolha de Carlo, como diante do desfecho dado pelo diretor. Acostumados ao heroísmo dos intérpretes principais dos filmes de guerra, no fim de Verão violento, talvez esperássemos o amadurecimento e o resgate moral do protagonista masculino, em virtude das mudanças ocorridas, o que não acontece (assim como não acontecia em Sedução da carne).[8]

E talvez esperássemos isso, pensando na experiência do próprio Zurlini, que, apesar de ter a mesma extração social de seu personagem, durante os anos da guerra intestina, engajou-se na luta, percorrendo a pé boa parte de seu país, para conhecer de perto uma realidade popular que lhe era alheia (como contou a Jean Gili).

Carlo, no entanto, é incapaz de posicionar-se diante dos acontecimentos. Assim como não discordava das opiniões e atitudes de seu pai, não deixando, portanto, de esposar a ideologia fascista, não saberá fazer uma escolha pessoal quando sua redoma de cristal se quebra, e acabará obedecendo à ordem que lhe é dada: apresentar-se em Bolonha para o alistamento. Persuadido por Roberta, pensará em desertar, mas, quando o bombardeio interrompe a fuga e ela resolve voltar a Riccione, Carlo não a acompanhará: ele só sabe seguir o rebanho (como lhe confessou antes da viagem), porque é como os demais, nunca conseguirá rebelar-se – acrescenta na despedida. E, enquanto Roberta é levada pelo trem que ruma para Rimini, Riccione e Ancona, Carlo permanece naquele cenário desolador, perdido no meio do nada.

Permanecer a meio caminho entre Bolonha e Rimini significará ainda, posteriormente, ficar aquém da chamada “linha gótica”, ou seja, da última frente fortificada das tropas alemãs, a qual se estendia desta cidade à beira-mar até o porto de La Spezia, do outro lado do Mediterrâneo. Ficar com os nazifascistas significa uma opção coerente com o ideário dentro do qual havia sido criado, o que livra o protagonista de qualquer ambiguidade e demonstra coerência por parte do diretor.

Ademais, se vista à luz do fim dos anos 1950, como sugere Masoni,[9] a escolha de Carlo parece atestar como o medo da ascensão das esquerdas – logo no período em que a Itália burguesa usufruía das benesses do boom econômico – estava levando de volta ao poder os herdeiros do regime fascista,[10] o que poderia acabar com a contraposição entre Democracia Cristã e Partido Comunista, que havia caracterizado a política do país no pós-guerra.

Por isso, mais do que cobrar uma cuidadosa reconstrução histórica, é necessário perceber que o que Zurlini quis recuperar foi antes um mood, uma atmosfera daquele período (como já foi referido), trazendo assim para o primeiro plano o que parecia relegado a uma camada menos evidente da imagem: a fissura moral da qual são portadores seus personagens, sem que isso implique numa condenação a priori de seus atos, porque eles ainda não são capazes de entender nem as consequências dessa atitude, nem as mudanças do tempo histórico que estavam vivenciando.[11]

2.

A primeira noite de tranquilidade tem como cenário outra localidade balneária do litoral adriático, Rimini, à qual regressa Daniele Dominici, no brumoso inverno de 1972. Viciado em jogo e professor substituto de literatura italiana num colégio particular, Daniele sente-se atraído por uma de suas alunas, a bela Vanina Abati, uma garota de “muito passado, pouco presente e nenhum futuro”, como dirá uma de suas conhecidas.

O professor tem uma relação aberta com Monica, que está em crise por um amor mal correspondido, enquanto a moça é noiva de Gerardo Pavani, um jovem de sólida situação financeira, que frequenta o mesmo grupo de boas-vidas – Spyder, Marcello, Elvira etc. – ao qual Daniele se ligou. Vanina abandona o noivo, perturbada pelo sentimento que nasceu entre ela e o professor, e os dois, ajudados por Marcello, vivem alguns momentos de intensa paixão até serem descobertos por Gerardo.

Dispostos a ficar juntos, resolvem enfrentar a situação, mas Monica ameaça suicidar-se. Prestes a alcançar sua amada, Daniele preocupa-se quando a ex-companheira não atende ao telefone e, ao voltar atrás para ver o que aconteceu, sofre um acidente automobilístico fatal. Spyder comparece a seu velório e descobre que aquele amigo tão desmazelado pertencia a uma família rica e tradicional.

Na sequência inicial do filme, Daniele, que surge em cena, no meio da neblina, para dar uma informação a dois navegantes australianos perdidos, afirma não conhecer Rimini, por ter acabado de chegar. Aparentemente, o professor é um homem sem um passado significativo pelas poucas informações que constam de seu currículo: tem 37 anos, nasceu em Viena, estudou em Milão, lecionou na escola italiana de Mogadíscio, em 1959-1960, tendo depois voltado a trabalhar na Itália.

Ao ser indagado pelo diretor da escola sobre um provável parentesco com o coronel Dominici, herói da batalha de El-Alamein, ele o nega, assim como nega ser um objeto pessoal, pois o teria ganhado num jogo, um anel com um brasão militar e a inscrição MAS, que vende para continuar apostando. No grupo de boas-vidas com os quais se relaciona, só Spyder consegue paulatinamente puxar os fios que permitem lançar algumas luzes sobre sua vida pregressa.

Um dia, a caminho de uma festa na casa de Elvira, este é levado pelo amigo até uma mansão em ruínas. É La querciaia, ou seja, a “Casa dos carvalhos”, local que Daniele frequentou quando adolescente e que foi sendo abandonado pelos donos depois da morte por afogamento de uma das filhas (cujo nome diz não lembrar, ao ser indagado por seu acompanhante): “Tudo podre, destruído, esboroado” – acrescenta o professor, lá dentro.

Em seguida, na festa, uma das convidadas lê sua mão, dizendo que ele é muito rico, que no passado navegou várias vezes e, no futuro, fará uma longa viagem para lugares desconhecidos. Nas linhas da sua mão, vê ainda o sinal do fogo, que ele é um artista, uma pessoa muito triste, e que no fim de tudo há uma grande escuridão.

Spyder também, que seguiu a leitura da mão com grande interesse, habilita-se a “adivinhar” o passado, o presente e o futuro do amigo: faz algumas perguntas bem específicas – “O que é o verão indiano?” (é um veranico, como se apressa a explicar Elvira; portanto, uma breve estação) e “Por que a morte é a primeira noite de tranquilidade?” (“Porque finalmente se dorme sem sonhar”, contesta o professor) – e puxa um livrinho de poesias, intitulado La prima notte di quiete[12] e dedicado a Livia um ano depois de sua morte, cujo autor é Daniele.

E será Spyder, por ocasião das exéquias deste, depois do incêndio do carro, a adentrar a grande propriedade da família Dominici, revelando, assim, o que já ia se intuindo ao longo da trama: apesar de todo o despojamento e do desinteresse por bens materiais, seu amigo pertencia à alta burguesia tradicional, como podia se deduzir de sua sólida formação e da indiferença com a qual circulava pelos locais da nova burguesia endinheirada.

A focalização desse grupo familiar, com planos em que seus membros são apresentados como se fossem seres embalsamados, sobreviventes de um tempo que não passou, traz à memória uma das frases pronunciadas por Daniele em La querciaia: “Era uma família de depravados, corroídos pela sífilis e pela loucura, durante gerações. Deixaram-se morrer lentamente neste cemitério putrefeito”.

Esta revelação leva o espectador a um retrospecto, à localização de algumas pistas disseminadas ao longo do filme: a estada do professor em Mogadíscio,[13] a referência ao herói de El-Alamein,[14] o anel com a inscrição MAS[15] – todas “relíquias” de um passado não tão remoto, antes de um país do que apenas de um indivíduo, que, assim, de pequenas referências passam a ter outro significado.

Em seus dois textos sobre o diretor, Jean Gili registrou que Valerio Zurlini declarou que, em 1959, voltou de uma segunda viagem ao Norte da África, disposto a realizar o filme Il paradiso all’ombra delle spade [O paraíso à sombra das espadas], projeto que não se concretizou, focalizando o início do colonialismo italiano naquele território, em fins do século XIX.

Em seguida, teve a idéia de narrar a saga de uma família burguesa de colonizadores, tendo derivado o roteiro de A primeira noite de tranquilidade do último episódio dessa trilogia romanesca inédita, escrita no final dos anos 1950. L’estate indiana, ou seja, a história de Daniele Dominici, com sua volta à Itália, em busca do tempo de sua juventude, por sentir-se desarraigado na África, constituía o final da terceira parte.

Dessa forma, entre a intenção (o romance inacabado) e a realização (o filme de 1972) houve um corte, por isso, vou deixar de lado a intenção para concentrar-me na realização e ver A primeira noite de tranquilidade, dentro da trajetória cinematográfica zurliniana, como integrante de outra saga familiar, cuja primeira parte o diretor levou às telas em 1959. Ou seja, num exercício de metacinema, tentar ver como Daniele poderia ser considerado um Carlo que, muitos anos depois, finalmente parece ter adquirido a consciência dos atos da camada social à qual pertence e que está fadada a desaparecer.

3.

À luz da leitura que Gilda de Mello e Sousa fez de A moratória, poderia afirmar-se que Carlo e Daniele se complementam, como se fossem o mesmo personagem retratado em etapas diferentes da história de um mesmo grupo (fins do século XIX, anos 1940, final da década de 1950, início dos anos 1970), personagem, portanto, marcado por um passado antes coletivo do que pessoal.[16]

Obviamente, a trajetória de Carlo e Daniele em duas obras distintas não permite o paralelismo temporal, como fez Jorge Andrade em sua peça; porém, ao considerar o presente vivido pelo primeiro como a vida pregressa do segundo, é possível ver as duas tramas como a memória histórica de uma nação.

O peso desse legado histórico, que abarca os acontecimentos vividos pelo país de fins do século XIX em diante, fica bem evidente na dedicatória que aparece no penúltimo plano do filme de 1972, quase como se fosse uma lápide mortuária: Ai nostri genitori [Aos nossos pais] G.L. V.Z.G.L.[17] V.Z.

Essa dedicatória, que surge depois da lúgubre apresentação da família Dominici, pode ser interpretada como uma referência à herança deixada por uma geração anterior – a dos pais –, a que foi contemporânea ao surgimento e à afirmação do fascismo, cujas consequências ainda eram sentidas pela sociedade italiana.

Embora o esquema de construção de Verão violento e A primeira noite de tranquilidade seja bastante parecido, o que interessa ressaltar aqui é antes essa identidade entre os dois personagens, que, por não conseguirem, no fundo, subtrair-se a um sistema de valores dentro do qual foram criados, não se adaptam às mudanças sociais pelas quais o país passa.

Tudo leva a crer que Carlo aderirá à República Social Italiana; Daniele, por sua vez, revela-se fechado para os acontecimentos que mobilizam os jovens entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, ao declarar aos alunos: “De direita ou de esquerda, vocês para mim são todos iguais. Os de direita são mais cretinos…”. Além disso, o professor, mesmo tendo outro padrão de vida, bastante sóbrio, não se furta a um contato com os neocapitalistas, os novos fascistas – contra os quais Pier Paolo Pasolini tão veementemente investia nos periódicos italianos daqueles anos[18] –, representados no filme por Gerardo Pavani.

O contraste entre a burguesia tradicional e os novos donos do poder expressa-se principalmente na relação dos personagens com a arte. Enquanto, Daniele, apesar de seu ceticismo, acredita na perenidade da arte e dá a impressão de estar “à espera de um milagre que ajude a arrancar o sentido superior das coisas e mostre aquele elo de conjunção entre passado e presente, que se quebrou […] o ponto de origem da existência, a razão impossível do nada, o mistério do tempo”[19], para Gerardo, quadros e estátuas parecem servir para enfeitar ambientes, têm apenas um valor venal, como se pode ver na sequência em seu apartamento, cuja decoração, aliás, lembra a da casa da família Caremoli em Verão violento.

Lá, predominantemente, a pintura do Novecento;[20] aqui, também uma arquitetura, que, em sua pretensa modernidade, lembra as construções em estilo imperial da época do fascismo.

Carlo, Daniele e Valerio Zurlini pertencem a uma “idêntica paisagem social”, mas, apesar desse “parentesco” (apropriando-me de termos de Décio de Almeida Prado) e de amar seus personagens, o diretor não parece disposto a ter compaixão deles e deixa que cumpram até o fim o destino que lhes foi designado, porque representantes – como os amantes atormentados de Sedução da carne – de “um mundo caduco” (valendo-me da expressão de Gilda de Mello e Sousa).

Isso chama a atenção, sobretudo com relação ao professor que preserva traços “biográficos” do cineasta,[21] como ele próprio afirmou a Jean Gili: “no filme, há muitas coisas pessoais; por exemplo […], aquela estranha insistência de necessidade de cristianismo. E depois, existe em mim um fundo de niilismo que espalhei a mancheias nas personagens com um desejo de destruição e autodestruição. Digamos que são aspectos um pouco mais secretos de minha personalidade: tendo ao alcance das mãos um personagem que se definia como um possível portador dessas potencialidades, provi-o, sem dúvida, de minhas incertezas, de meus medos, de minhas tragédias. Por isso, embora não o seja na trama, o filme é assim mesmo autobiográfico, talvez também por certo medo da vida contemporânea, um modo de esperar o próprio fim quase com um sentimento de libertação”.

Se o jovem Caremoli vive ainda num estado de pré-consciência, Daniele tem certeza de que o momento de sua classe social já passou. É disso que nasce sua angústia, que se traduz tão bem, no plano iconográfico, na profundidade de campo da qual ele, envolto pela neblina, parece surgir do nada e desaparecer no nada (como na sequência inicial),[22] mas principalmente naquelas imagens “congeladas” do centro ou do litoral de Rimini, que pontuam o filme ao som estridente de um trompete, tornando ainda maior o vazio interior que o personagem experimenta.

O mesmo vazio que circundava a juventude dourada da época fascista e dentro do qual Carlo fica abandonado no fim de Verão violento. Esse mal-estar diante da realidade circundante, essa lucidez extrema na caducidade do universo de valores dentro do qual foi criado e que tenta o tempo inteiro rejeitar, levam Daniele a abdicar da vida (para expiar seu pecado de origem) e a renunciar à perpetuação, negando por duas vezes a paternidade, numa resposta a Monica e numa conversa com Vanina, sintomaticamente diante do afresco de Nossa Senhora do Parto, de Piero della Francesca, na capela do cemitério de Monterchi.

Poderia afirmar-se que nessa sequência também, o diretor trabalha com o que Anna Di Martino denominou “efeito slide[23], uma vez que a obra pictórica vai se revelando antes em quatro tomadas em primeiro plano e, em seguida, numa em plano geral,[24] como se estivesse sendo esmiuçada pelo olhar. O mesmo acontece com os planos do casal adormecido depois da primeira noite de amor.

A visão dessas imagens congeladas ou quase provoca uma suspensão do tempo, mas aqui, ao contrário das tomadas da cidade, a sensação não é de angústia: é como se Valerio Zurlini tentasse reproduzir aquele momento de quietude que se segue ao arrebatamento amoroso (lembrando que o ato sexual é uma “pequena morte”) ou aqueles instantes de enlevo e exaltação que a verdadeira arte pode produzir no ser humano, confortando-o da banalidade da vida. Uma pausa, um parêntese, como havia sido, de alguma forma, a viagem de Roberta e Carlo a São Marino.

Ao referir-se às tomadas de Rimini no inverno – que consubstanciam na tela a desorientação dos personagens –, Jean Gili (no itinerário do filme) destacou que Valerio Zurlini é, ao lado de Michelangelo Antonioni, “o grande cineasta da paisagem dos estados de alma”, capaz de “ir além da crosta da realidade exterior para perscrutar o interior dos seres e das coisas”.[25]

Isso, sem dúvida, é verdade, mas não é menos verdade que seus personagens são fruto de uma classe, de uma época, de uma história, que os condiciona, e veremos que o diretor soube trabalhar magistralmente também esses elementos, se forem resgatados do segundo plano a que muitos críticos os relegaram. Porque Valerio Zurlini, embora fosse católico e nunca tenha sido um realizador abertamente engajado, era um homem de esquerda[26] e, em seus filmes, sempre tentou reconciliar o refinado esteta com o atento observador da sociedade italiana.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros textos, de “O cinema italiano contemporâneo”, que integra o volume Cinema mundial contemporâneo (Papirus).

Comunicação apresentada no XVII Encontro da Compós (São Paulo), em junho de 2008.

Referências


BRUNETTA, Gian Piero. Cent’anni di cinema italiano. Roma-Bari: Laterza, 1991.

BRUNETTA, Gian Piero. Storia del cinema italiano dal 1945 agli anni ottanta. Roma: Editori Riuniti, 1982.

CALDIRON, Orio.; GIRLANDA, Elio.; PISARRA Pietro. “Estate violenta”. In: GIAMMATTEO, Fernaldo Di (org.). Dizionario del cinema italiano. Roma: Editori Riuniti, 1995.

CATALANO, Franco. L’Italia dalla dittatura alla democrazia 1919-1948. 2 v. Milão: Feltrinelli, 1972.

CAVALHEIRO, Celia R. A dimensão do silêncio no cinema de Valerio Zurlini. Tese de Doutoramento. São Paulo: Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 2008.

CHIARELLI, Tadeu. “O Novecento e a arte brasileira”. Revista de Italianística, São Paulo, ano III, nº 3, 1995.

Enciclopedia Universale Garzanti. Milão: Garzanti, 1997.

FALDINI, Franca; FOFI, Goffredo. Il cinema italiano d’oggi raccontato dai suoi protagonisti (1970-1984). Mondadori: Milão, 1984.

GILI, Jean. “Intervista a Valerio Zurlini”; “Percorso di un’opera”. In: MARTINI, Giacomo (org.). Una regione piena di cinema – Valerio Zurlini. S.l.p.: Regione Emilia-Romagna/ Cinecittà Holding, 2000.

LONGHI, Roberto. Piero della Francesca. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: CosacNaify, 2007.

MARTINO, Anna Di. “I caratteri distintivi dell’enunciazione zurliniana”. In: MARTINI (org.), op. cit.

MASONI, Tullio. “La città nel deserto (fra cinema e pittura)”. In: MARTINI (org.), op. cit.

MINOTTI, Gianluca. Valerio Zurlini. Milão: Il Castoro, 2001.

PEDRINI, Tiberio. “Andata e ritorno per il mare”. In: MARTINI (org.), op. cit.

PRADO, Décio de Almeida. “Prefácio”. In: ANDRADE, Jorge. A moratória. Rio de Janeiro: Agir, 1973.

RUSCONI, Gian Enrico. Resistenza e postfascismo. Bolonha: Il Mulino, 1995.

SALVATORELLI, Luigi. Sommario della storia d’Italia. Turim: Einaudi, 1974.

SCHWARTZ, Roberto. “Um ensaio entre a análise estética e as reflexões sociais”. Cultura, suplemento de O Estado de S. Paulo, ano XXVI, no 1418, 30 dez. 2007.

SMITH, Denis Mack. Storia d’Italia dal 1861 al 1969. Bari: Laterza, 1972.

SOUSA, Gilda de Melo e. “Teatro do Sul”. In: Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980 [publicado originalmente na revista Teatro brasileiro, São Paulo, no 3, jan. 1956].

ZURLINI, Valerio. A moça com a valise. São Paulo: Versátil, 2007 [as entrevistas de Piero Schivazappa, Piero De Bernardi e Bruno Torri integram o DVD].

ZURLINI, Valerio. A primeira noite de tranquilidade. São Paulo: Versátil, 2007.

ZURLINI, Valerio. Verão violento. São Paulo: Versátil, 2007 [o trailer do filme, o depoimento de Alfredo Sternheim e as entrevistas de Florestano Vancini e Giuliano Montaldo integram o DVD].

Notas


[1] É importante lembrar que a repressão sexual imposta pelo Fascismo mantinha a mulher presa à autoridade patriarcal, permitindo-lhe ser apenas mãe, esposa ou filha. A essa tríade, representada no filme por Roberta, sua mãe e sua filha, Zurlini acrescenta a figura da irmã, Maddalena, que fica chocada ao perceber que a cunhada se interessa por outro homem. Excluída de uma participação mais ativa na sociedade, para a mulher só restava prantear os mortos pela pátria, no papel de viúva inconsolável, como se esperava de Roberta, ou de mãe dolorosa, como sua sogra, que não largava o retrato do filho, morto há dois anos.

[2] Na época, Zurlini não foi o único diretor a problematizar a monumentalização daquele momento histórico, mas a crítica, em geral, preferiu Tiro al piccione (Dilema de um bravo, 1961), de Giuliano Montaldo, ou Il terrorista (1963), de Gianfranco De Bosio, ao seu Verão violento.

[3] É uma aparência enganadora, no entanto, pois a guerra pesará o tempo inteiro sobre a vida de todos e se manifestará, de alguma forma, praticamente em todas as sequências do filme: (a) nos planos iniciais, quando uma embarcação traz um prisioneiro inglês ferido; (b) na capa da revista Tempo lida por Carlos no trem que o leva a Riccione; (c) na presença de um tenente italiano com um pé enfaixado na casa de um amigo de Carlo, onde um rapaz se apresenta jocosamente como Rommel e uma moça, ao servir uma macarronada, exclama “Tesserati! Morti di fame!”, lembrando, assim, a fome acumulada pelo racionamento de comida. Nessa mesma ocasião, um boletim divulgado pelo rádio informa sobre o avanço das tropas canadenses na Sicília. Temos, ainda, (d) o voo rasante de um avião alemão na praia, apavorando os banhistas; (e) o estranhamento de Roberta por Carlo não ter sido convocado; (f) a visita que faz a Roberta o oficial da marinha que, dois anos antes, lhe havia comunicado a morte do marido, quando ela diz que a guerra acabou e está perdida para os italianos; (g) o fato de se referirem a ela como a viúva de uma medalha de ouro. Além disso, ao propor um passeio a São Marino, (h) Carlo diz a Roberta que lá, não só se respira um “falso ar de pré-guerra e neutro”, como se pode comprar café de verdade, acrescentando que ele é um entendido de mercado negro. Com a chegada da cunhada da Calábria, (i) a família de Roberta tem uma descrição pormenorizada das incursões aéreas e dos bombardeios no Sul da Itália, bem como das dificuldades de se viajar dentro do país. Na noite no circo e depois na casa de Carlo, (j) há um blecaute, com o qual as pessoas já estão acostumadas, pois carregam lanternas, e o céu é cortado por fogos. No dia 25 de julho, antes do anúncio da destituição de Mussolini, (k) os alistados são intimados a retornarem aos quartéis. Depois da tomada da sede do Partido Fascista, (l) o rádio avisa que a guerra continua, e há patrulhas militares pela cidade; (m) a presença de refugiados internos na casa de Carlo, indica que foram confiscados os bens de seu pai, assim como havia acontecido com todos os dirigentes daquele partido. Por fim, (n) a cunhada de Roberta volta para o Sul, num trem carregado de soldados alemães, e, logo em seguida, (o) Carlo é intimado a alistar-se. No vagão em que ele e Roberta estão viajando, momentos antes do início do bombardeio, (p) um grupo de alpinos canta uma música que fala de deserção. Diante desse levantamento, é difícil aceitar um papel tão secundário para a história em Verão violento. O prisioneiro da sequência de abertura do filme foi identificado como inglês por causa do sinal V de vitória que seu acompanhante faz. O gesto havia se tornado célebre graças ao primeiro-ministro Winston Churchill, o qual, já em 26 de julho de 1943, entre as condições para a rendição da Itália, arrolava a libertação dos prisioneiros de guerra britânicos (conforme registrado em Catalano).

[4] Os dois momentos em que o contexto histórico foi mais explicitado são bem diferentes do ponto de vista formal: enquanto o do bombardeio representa o ponto alto do filme, graças também à colaboração do assistente de direção Florestano Vancini, o da queda do Fascismo – em que o cineasta tentou reconstituir a participação “espontânea da população, que saiu às ruas como se tivesse sido libertada de um pesadelo longo e penoso” (como a descreveu o historiador Franco Catalano) – peca pelo excesso de retórica.

[5] Apesar das reservas da crítica, o filme foi bem acolhido pelo público, principalmente pelo impacto causado pela sequência final (conforme Gili em sua conversa com Zurlini).

[6] É interessante notar que, no trailer, a história de amor – e todas as barreiras que principalmente Roberta tem de superar – aparece encaixada entre os planos que destacam a guerra, dando a ideia de que é esta a ter um peso maior dentro do filme.

[7] Verão violento foi rodado em oito semanas, com um orçamento baixíssimo. Só no fim, o produtor resolveu injetar mais recursos para a realização da sequência do bombardeio (feita em onze dias), o que, segundo alguns críticos, desequilibrou o filme estilisticamente (conforme registrou Gianluca Minotti).

[8] Poderia ser aplicado a Verão violento o mesmo conceito de “moralidade histórica” ao qual Zurlini se referiu na entrevista a Gili, ao comentar outra sua realização: Le soldatesse (Mulheres no front, 1964): “tentei dar uma visão da história italiana que a historiografia nunca quis sublinhar, sem falar, ademais, do modo como a história italiana é apresentada pelo cinema italiano. Até nos filmes realizados por meus amigos, como Luigi Comencini e outros, parece que nunca quisemos a guerra, o que talvez seja verdade, e mais, que a fizemos como uma manada de samaritanos que vai para a batalha. Durante a guerra, os italianos comportaram-se como os outros, algumas vezes, com menos coragem; outras, com um heroísmo desesperado“.

[9] Gian Piero Brunetta (no livro editado pela Laterza), também, não deixou de aventar essa hipótese, ao falar da retomada da temática da guerra, no cinema italiano do fim dos anos 1950. Ele lembrou o quanto disso “signifique também a reabertura dolorosa de páginas nem sempre heroicas, ou a denúncia da continuidade das instituições, ou revele como as escolhas em frentes opostas determinem uma guerra civil, embora o termo permaneça tabu, pode ser visto nas resenhas e nos debates que se seguiram a Verão violento de Zurlini”.

[10] O historiador Denis Mack Smith assinalou que, no período da República Social Italiana (ou República de Saló, que durou de 23 de setembro de 1943 a 25 de abril de 1945), o Duce chegou a “convencer-se de que ele não havia criado o Fascismo, mas só explorado as tendências fascistas existentes no subconsciente de todos os italianos; e isso o induzia a pensar que, mesmo no caso de uma derrota, um dia, os italianos voltariam a seus métodos”.

[11] É como se fossem ainda crianças, portanto não responsáveis por suas escolhas, principalmente Carlo, com sua incapacidade de resolver a própria vida. É como se ele tivesse a mesma idade de Colomba, a filha de Roberta, como se seu lado emocional tivesse estacionado aos quatro anos, quando a mãe o abandonou. Isso fica patente na sua visão acrítica do pai, na relação de dependência que tem com uma mulher mais madura e se traduz muito bem visualmente no fim da sequência em que a viúva vai apresentar a cunhada à garotada na praia, para que esta se enturme: depois da tentativa frustrada de falar com Roberta, Carlo, para cumprimentar Colomba, se ajoelha na areia, ficando os dois do mesmo tamanho. Quando a menina se afasta com a babá, ele permanece naquela posição, enquanto seu olhar se dirige à “mãe” distante.

[12] Segundo Faldini e Fofi, o diretor declarou: “A primeira noite de tranquilidade é um verso de Goethe, é a morte. Exprime a ideia de que o homem, em sua travessia da vida, aspira a um descanso que só a morte poderá dar-lhe”.

[13] Mogadíscio é a capital da Somália, território dominado pelos italianos entre 1889-1905 e 1941, cujas fronteiras foram expandidas em 1925 com a incorporação da parte britânica. Ocupada pelos ingleses durante a II Guerra Mundial, em 1949, sua administração foi confiada pela ONU à Itália, pelo prazo de dez anos. Tornou-se uma república independente em 1960 (dados extraídos da Enciclopedia Universale Garzanti).

[14] Em outubro de 1942, em El-Alamein (costa mediterrânea do Egito), travou-se a batalha mais importante da campanha do Norte da África, quando as tropas italianas, abandonadas pelas forças alemãs, tentaram inutilmente fazer frente ao exército britânico (dados extraídos de Luigi Salvatorelli). Pouco antes da viagem final de Daniele, o espectador deduzirá que foi seu pai quem morreu nesta batalha.

[15] MAS era a sigla da unidade de barcos a motor da marinha italiana que caçava submarinos (motoscafi antisommergibili). No período final da Segunda Guerra Mundial, a décima flotilha da MAS notabilizou-se na luta contra os partisans (dados extraídos de Gian Enrico Rusconi).

[16] Essa história coletiva surgiria da imbricação do passado da família Dominici sobre o verão de 1943 e o período latente (1959) em Verão violento e sobre o inverno de 1972 em A primeira noite de tranquilidade.

[17] As iniciais G.L. provavelmente referem-se a Goffredo Lombardo, já produtor de Verão violento, La ragazza con la valigia (A moça com a valise, 1961) e Cronaca familiare (Dois destinos, 1962).

[18] Eram artigos escritos para Il Corriere della Sera, Epoca, Il Mondo ou Paese Sera, reunidos posteriormente em Scritti corsari (Escritos corsários, 1975) e Lettere luterane (Cartas luteranas, 1977). Neles, Pasolini dizia que o novo Fascismo, apoiando-se no desenvolvimento industrial da Itália nos anos 1960-1970, tinha desencadeado um consumismo desenfreado e imposto o modo de pensar da burguesia. Isso graças à expansão da televisão, da escolarização de massa e de uma falsa tolerância do Poder em relação a conquistas da sociedade civil, como a instituição do divórcio, a liberação do aborto e a aceitação da liberdade sexual.

[19] Trecho extraído de um texto que, em 1976, Zurlini dedicou ao artista plástico Fabrizio Clerici (reportado por Masoni).

[20] Novecento: tendência artística surgida em 1922, na Itália, em oposição às vanguardas. Caracterizou-se pela volta à tradição realista, principalmente da Renascença, e foi transformada em arte nacional pelo Fascismo (segundo Tadeu Chiarelli).

[21] Como lembrou o cineasta Giuliano Montaldo, o diretor era uma pessoa atormentada e pertencia a uma família abastada, mas fazia questão de não parecer rico, exatamente como Daniele. Ademais, o sobretudo de lã de camelo, que o personagem usa, era do próprio Zurlini, segundo o roteirista Piero De Bernardi.

[22] É o que Tiberio Pedrini chamou “movimento elementar de ida e volta”. De ida, “em direção a espaços abertos, na esperança de uma mudança”; de volta, “rumo aos fatalmente restritos do presente”.

[23] Para a autora, o “efeito slide” é o que, ao congelar o espaço e suspender o tempo, interrompe o enunciado num ponto crucial, criando expectativas.

[24] Zurlini aproveitou os ensinamentos de Roberto Longhi, na descrição verbal e, mais ainda, na exploração visual dessa obra, principalmente ao deter-se na mão direita, “apoiada sobre o ventre”, e na mão esquerda, “dobrada sobre o quadril”.

[25] Afirmava o diretor: “Deve-se a Michelangelo Antonioni o desenvolvimento estilístico do cinema italiano. Todos nós somos seus filhos, dignos ou degenerados, pouco importa, mas seus filhos, porque ele foi o primeiro a não confiar apenas na realidade, em suma, a levar o discurso para dentro da personagem” (conforme registrado em Faldini e Fofi). A meu ver, porém, Zurlini parece esquecer que, nisso, Antonioni tem um precursor: Roberto Rossellini. Em todo caso, é interessante ressaltar que o diretor escolheu atores “antonionianos” para os dois filmes em tela: Eleonora Rossi Drago (Roberta), Lea Massari (Monica), intérpretes de Le amiche (As amigas, 1955) e L’avventura (A aventura, 1959), respectivamente, e Alain Delon (Daniele), protagonista de L’eclisse (O eclipse, 1962), embora este seja antes uma “criação” viscontiana, como Renato Salvatori (Marcello), de certa forma.

[26] Apelidando sua postura de “evangélico-comunista”, Zurlini dizia a Jean Gili que nisso desfrutava da boa companhia de Pasolini. Bruno Torri (em depoimento para o DVD A moça com a valise) assinalou que o cineasta não se arrolava entre os representantes do novo cinema italiano do início dos anos 1960 – como Marco Bellocchio, Bernardo Bertolucci, Marco Ferreri, Ermanno Olmi, Pier Paolo Pasolini, Paolo e Vittorio Taviani etc. –, nem se filiava à tendência pós-neorrealista de um Carlo Lizzani ou de um Francesco Maselli, dentre outros. Em relação a procedimentos ditos neorrealistas, é interessante notar, como faz Florestano Vancini, que o diretor não trabalhava com atores não profissionais, pois precisava de intérpretes já calibrados ou que tivessem certo potencial para orquestrar as atuações.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
3
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
4
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
5
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
A feitiçaria digital nas próximas eleições
27 Nov 2025 Por EUGÊNIO BUCCI: O maior risco para as eleições de 2026 não está nas alianças políticas tradicionais, mas no poder desregulado das big techs, que, abandonando qualquer pretensão de neutralidade, atuam abertamente como aparelhos de propaganda da extrema-direita global
9
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
10
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
11
Walter Benjamin, o marxista da nostalgia
21 Nov 2025 Por NICOLÁS GONÇALVES: A nostalgia que o capitalismo vende é anestesia; a que Benjamin propõe é arqueologia militante das ruínas onde dormem os futuros abortados
12
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
13
O arquivo György Lukács em Budapeste
27 Nov 2025 Por RÜDIGER DANNEMANN: A luta pela preservação do legado de György Lukács na Hungria de Viktor Orbán, desde o fechamento forçado de seu arquivo pela academia estatal até a recente e esperançosa retomada do apartamento do filósofo pela prefeitura de Budapeste
14
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
15
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES