Por FLÁVIO AGUIAR*
A intolerância e a extrema direita crescem na Europa
Dias atrás uma brasileira amiga minha saiu de seu local de trabalho, em Berlim, e entrou no metrô, a fim de voltar para casa. O trem veio, ela entrou no vagão e sentou-se. Ela tem uma pele de tez morena À sua frente sentou-se um homem de cabelo castanho bem claro e pele também clara, que ela identificou como sendo um alemão comum. Não conseguiu ver-lhe a cor dos olhos, porque ele usava uns óculos muito escuros e grandes.
De repente, sem mais aquela, ele disse a ela: “Pena que não há vagões maiores”. Ela ainda deu-se ao trabalho de responder: “Como assim?” – “Wie so?”. “Porque ai eu não precisaria ficar olhando para gente como você”, retrucou ele, num tom de voz bastante alto.
Havia mais gente no vagão. Ninguém se mexeu, ninguém olhou, ninguém levantou alguma sobrancelha, ninguém fez nada. Absolutamente nada. Não era com eles, nem com elas. Tampouco ela fez alguma coisa. Não se mexeu. “Ele pode estar armado, pode ter uma faca”, foi tudo o que pensou, transida de medo. Os minutos seguintes foram muito angustiantes para ela. Felizmente, nada mais aconteceu. Algumas estações adiante o homem levantou-se e desceu do trem. Aliviada, ela seguiu para casa.
Quando me contou a história, acrescentou: “Flávio, eu sequer me indignei, sequer lamentei, sequer chorei. Me dei conta que aquilo parecia natural: a agressão covarde do homem e a indiferença dos outros”.
Episódios como este vêm se tornando mais e mais comuns e corriqueiros. Ocorrem outros do mesmo tipo: agressões verbais, físicas, depredação e vandalismo contra símbolos religiosos e culturais considerados não-europeus. Ataques a sinagogas se sucedem, como desde sempre. Mas os novos alvos preferenciais passam a ser os refugiados e imigrantes que vêm da África ou do Oriente Médio, ou que sejam com eles parecidos, ainda que vagamente, como é o caso daquela minha amiga.
Com a guerra, a chegada de refugiados ucranianos – que sem dúvida requerem apoio e auxílio – piorou a situação. Afinal, são os refugiados “corretos”, “brancos”, “europeus”, ao contrário dos “outros”, que são “estranhos”, não são como “nós”: “nós:, isto é, “eles”, os “europeus”, os que se acham “puro sangue”.
Ouvi relatos sobre mulheres (sempre os alvos mais frágeis para a covardia dos agressores), muçulmanas ou identificadas como tal, agredidas aos berros: “por que não voltam para de onde vieram?”, “vocês não são daqui”, “não têm nada o que fazer aqui!”, e assim por diante.
Há uma indisfarçável hostilidade oficial e para-oficial contra os imigrantes e refugiados “estranhos”, sobretudo aqueles que vêm pelo mar, nas perigosas travessias através do Mediterrâneo, em barcos e botes que foram, com justiça, apelidados de “ataúdes flutuantes”. Desde 2014, estimam ONGs que tentam ajudar estes “trânsfugas” de regiões devastadas por guerras e pela miséria, 21 mil pessoas pereceram em naufrágios na tentativa de chegarem a uma Europa que cada vez os quer e estima menos, apesar de continuar precisando destes “eles” para serviços básicos que cada vez mais os “nós” europeus se recusam a fazer.
Como no Brasil bolsonarista recentemente refugado, mas não morto, velhos fantasmas saíram dos armários europeus, e não só na Alemanha. Recentemente o protesto de um refugiado iraquiano em Estocolmo, queimando um exemplar do Alcorão em frente a uma mesquitas provocou uma onda de repúdio, e não só no mundo árabe ou próximo: o papa Francisco também protestou diante desta agressão descabida. O autor da proeza era um iraquiano, provavelmente descontente em relação a alguma coisa em sua pátria de origem. Mas detalhe relevante: a manifestação foi autorizada pela polícia, em nome da “liberade de expressão”, como no Brasil até pouco tempo atrás dominado pelo “discurso do ódio”.
Há também um estado de ânimo voltado para a belígerância que se alastra, graças à guerra na Ucrânia. Acompanha este “espírito guerreiro” um esquecimento de bandeiras pacifistas que movimentam boa parte das esquerdas continentais. Falar de “paz” virou “traição” ou sinônimo de “putinismo”. O Partido Verde alemão, que nasceu ecológico e pacifista, hoje é apelidado de “verde-oliva”, destacando-se como um dos mais aguerridos defensores da guerra “geral” contra a Rússia.
E o cavaleiro destes “retornos do recalcado” galopa a ascensão generalizada dos partidos de extrema-direita, que crescem em quase toda a Europa. E alguns deles atualizam suas bandeiras tradicionais.
Na semana passada um pequeno terremoto agitou a cena política alemã. Pela primeira vez o partido Alternative für Deutschland (AfD), de extrema direita, conseguiu eleger um prefeito no país. Trata-se de Hannes Loth, da pequena cidade de Raghun-Jessnitz, no estado da Alta-Saxônia. No município de quase 9 mil habitantes, Loth, com 51% dos votos, derrotou seu adversário Nils Neumann, que se apresentava como candidato independente.
Dias antes o AfD conseguira eleger seu primeiro administrador distrital, em Sonneberg, no estado da Turíngia. Este estado é o único da Alemanha a ter um governador do Die Linke, partido de esquerda. Mas se houvesse eleição hoje, o AfD chegaria na frente, com 28% dos votos, contra 22% da Linke, e a conservadora União Democrata Cristã (CDU) em terceiro, com 21%.
Estes números confirmam o enraizamento da extrema direita na antiga Alemanha Oriental. Mas o AfD vem fazendo progressos em todo o país. Se houvesse hoje eleições gerais, a CDU viria em primeiro lugar, com 28% dos votos. Também pela primeira vez o AfD chegaria em segundo, com 20%, superando o Partido Social-Democrata (SPD), do atual chanceler Olaf Scholz, que ficaria em terceiro, com 18%. Os Verdes teriam 14% e o liberal FDP, ambos da coalizão governamental, ficaria com 7%. A Linke, com apenas 4%, sequer entraria no Parlamento Federal, o Bundestag.
Na Espanha, o Vox, que se declara herdeiro do ditador Francisco Franco e dos Cavaleiros Templários da Idade Média, também fez progressos nos últimos tempos, embora na última pesquisa seu ímpeto tenha arrefecido. Esta deu, em primeiro lugar, o conservador Partido Popular (PP), com 31,3% dos votos. Em segundo, vem o Partido Socialista Operário Espanhol, atualmente no governo, com 29,5%. Em terceiro vem o Vox, com 14,8% e em quarto a frente de esquerda, Sumar, com 13,4%. Onze por cento ficariam para outros partidos. O Vox e o Partido Popular vêm fazendo alianças em várias regiões, desbancando o Partido Socialista em alguns de seus redutos tradicionais.
Partidos de extrema direita lideram os governos da Itália, da Polônia e da Hungria. Na Finlândia a extrema direita passou a integrar o governo, e na Suécia dá apoio decisivo ao novo governo conservador. Na Grécia, onde os conservadores conseguiram expressiva vitória recentemente, três partidos de extrema direita conseguiram entrar no Parlamento Nacional. E na cada vez mais convulsionada França a candidata Marine Le Pen, também de extrema direita, ganha mais votos a cada eleição que disputa.
De um modo geral, os partidos de extrema direita mantém-se fiéis a seu nacionalismo nostálgico e xenófobo, voltado sobretudo contra os imigrantes e refugiados não-europeus. Mas em outros pontos alguns deles vêm modificando suas teses tradicionais. Por exemplo, já não falam em “sair” da União Europeia, mas em “reformá-la”. Quanto à moeda única, o euro, vêm mantendo o que se pode chamar de um “silêncio obsequioso”. Tradicionalmente acusados de serem simpáticos ao presidente russo Vladimir Putin, vêm se distanciando dele, devido à guerra na Ucrânia.
Estes partidos também são favorecidos pela atitude de militantes dos partidos conservadores tradicionais, que se aproximam de suas bandeiras, como as da hostilidade aos imigrantes não-europeus, na tentativa de recuperar votos que estão perdendo. No fundo, esta atitude legitima tais bandeiras aos olhos do eleitorado.
Curiosamente, a principal exceção a este quadro, que muitos analistas avaliam como ameaçador para a democracia no continente, está na seguidamente conservadora Inglaterra. As últimas pesquisas dão uma vantagem estável para o Labour, o Partido Trabalhista, com uma votação estimada entre 43 e 47%, com tendência de alta, enquanto os Tories, o Partido Conservador, atualmente no governo, ficam entre 22 e 29%, com tendência de baixa. Já o Partido Reformador do Reino Unido, Reform UK, de extrema direita, ficaria apenas entre 4 e 9%.
O primeiro grande termômetro deste novo desenho político ocorrerá na Espanha, cuja eleição nacional está marcada para o próximo 23 de julho. O Partido Popular, ainda que em queda nas últimas pesquisas, lidera a corrida; o PSOE, abalado por uma séria derrota em eleições regionais há pouco tempo, vem se recuperando. Ambos estão se movimentando em direção a um empate técnico nas pesquisas. E até agora nem as direitas (PP + Vox) nem as esquerdas (PSOE + Sumar) têm condições de obter uma maioria absoluta.
*Flávio Aguiar, jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
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