Venezuela — quem tem mais votos que governe!

Mérida, Venezuela/ Imagem: Arturo A.
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Por TARSO GENRO*

É possível comparar Nicolás Maduro com Donald Trump?

Com este artigo quero refletir sobre alguns dos motivos que fundamentam a postura do governo brasileiro, juntamente com os governos do México e da Colômbia, na defesa das democracias políticas na América Latina e para neutralização da extrema direita em crescimento, que certamente é vinculada aos movimentos nazifascistas europeus. O palco é a Venezuela, considerando-a como uma questão de toda a América Latina, para que a ela tenha um governo capaz de governar e afaste a possibilidade de uma guerra civil.

Nesta hipótese seus passivos brutais seriam cobrados sobretudo de toda a população mais pobre da Venezuela, bem como do conjunto dos países mais pobres do Continente. Legitimidade para governar ou acordo legítimo para sair da crise de poder na Venezuela é o que interessa a toda a comunidade democrática da América Latina. Quem tem mais votos que governe!

“A origem do atual conflito na Venezuela é o colapso do capitalismo petroleiro rentista venezuelano iniciado nos anos 1970” (…) “que levou ao surgimento de um movimento popular e de massas que tem (ou teve) na população mais empobrecida do país o seu principal pilar, em articulação com um setor reformista das Forças Armadas de onde emerge (ou emergiu) a liderança de Hugo Chavez”. Este trecho é retirado do texto da pesquisadora Carla Ferreira, na entrevista concedida à Agência Brasil em 03.08.24. Os parênteses incluídos, que remetem ao passado, são remissões deste escriba.

A origem da atual crise do sistema político dos EUA, que propiciou o formidável avanço da extrema direita americana, tem raízes mais longínquas e profundas. Está não só no seu processo eleitoral diferente, nos Estados da União, nas mutações da ordem global, no avanço das guerras localizadas, dotadas de novos meios tecnológicos de destruição com a criação de novos títeres locais e de novos sujeitos estado-nação, fortemente militarizados.

A China e a Rússia disputam, “taco a taco” com os EUA, numa nova ordem mundial afetada pela expansão da indústria armamentista e do aumento das rendas “sem trabalho” do capital financeiro, da qual sobrevive a velha hegemonia americana, que assim ordena também a vida política na Europa submissa.

É possível comparar, politicamente, a crise de Nicolás Maduro com a crise do “trumpismo”? Sim e não. Os fundamentos são bastante evidentes: Donald Trump no governo foi a caricatura de um governante golpista num país imperial-colonial, que depois do fracasso do golpe dominou novamente o “establishment” do seu país, como se a sua aventura golpista fosse só uma “distorção” do regime democrático-representativo americano, não sua essência guerreira protegida por uma máscara que, em cada ocupação militar, faz apelos cínicos pela paz mundial.

Donald Trump conseguiu acomodar a opinião pública do mundo ocidental, simulando sua tentativa de golpe, como se ela fosse penas fruto do mau humor passageiro de um senhor de família rica, que estava perdendo seus aposentos na fazenda da dinastia. Os Estados Unidos, politicamente, todavia, sempre foram uma caricatura fora de época da Revolução Francesa, cujos espíritos mais proeminentes — baseados na fórmula do Marechal Murat — argumentavam que “a bondade dos libertadores é algo que encanta (e) se os povos (selvagens) a serem libertados da barbárie, não estiverem conscientes do bem que os espera (…) é preciso fazê-los (compreender) mesmo que seja à força” (in Democracia no espelho, Edson Kossmann, Lumen Juris, p. 190).

O Marechal Murat, quando disse a Napoleão, “Vossa Excelência é esperado como Messias”, enfrentava os poderosos restos feudais das decadentes monarquias europeias, mas Donald Trump e Joe Biden, quando atacam a Venezuela e o seu regime não estão preocupados em serem novos “Messias”, mas sim com as perdas dos EUA, no concerto mundial multipolar, se as reservas de Petróleo ali instaladas pela natureza estiverem em mãos de um país soberano.

Os Estados Unidos sempre promoveram golpes e guerras onde os seus interesses estavam sendo feridos, para impor seu poder sobre territórios, em busca da apropriação das suas riquezas estratégicas. Donald Trump, com a sua tentativa de golpe e “ocupação do território” do Capitólio inaugurou — depois da Guerra da Secessão — a presença do belicismo externo para dentro do terreno da política interno dos EUA, introduzindo um precedente perigoso nos costumes da sua democracia política.

Aqui está, também, uma diferença essencial entre a crise de Nicolás Maduro e a crise do trumpismo americano, que marca a separação da época do imperialismo tradicional, da atual época das novas tecnologias informacionais e suas empresas multi-tentaculares, como as de Elon Musk, que praticamente já funcionam como estados soberanos, acima do Estados nacionais formais.

Enquanto Nicolás Maduro é atacado principalmente pelos Estados Unidos, como estado imperial, Donald Trump — ao tentar o golpe contra o Estado americano — contou com o apoio direto destas novas empresas-estado, que exercem sua soberania sobre todos os países – ricos e pobres — de forma aberta ou clandestina financiam e promovem estruturas de poder paralelas ao Estado formal, estimulando grupos de extrema direita, de natureza política ou político-militar, nas redes e fora delas.

A crise de poder de Nicolás Maduro na Venezuela, ao contrário do que ocorre no Estado norte-americano é fruto de uma revolução que não compôs, no governo, um novo conjunto de classes dominantes para governarem dentro da ordem do chavismo. Face a essa lacuna estratégica Nicolás Maduro inventou uma aliança militar-policial-popular para tentar erguer um modelo de desenvolvimento soberano de igualdade social que não se legitimou nem vingou — o que fez da referida aliança uma mera articulação pragmática de poder, um governo autoritário que rapidamente perdeu sua legitimidade

Por aqui também passa uma identidade de Donald Trump com Nicolás Maduro: ambos são presidentes caricaturais, pois Donald Trump precisou ocupar o Capitólio para tentar perverter o resultado das eleições que perdeu e Nicolás Maduro vem dispensando a contagem dos votos para não sair do Governo, ameaçado por grupos políticos golpistas misturados com uma maioria popular que quer um governo legitimado pelas urnas.

Embora Donald Trump seja um golpista e tenha sido presidente de uma República imperial construída pelas guerras, ele disputa novamente o poder num país em que a ampla maioria da sua população, unifica os dois candidatos — da oposição e da situação — como integrados numa função messiânica dos EUA, no exterior, nas condições semelhantes daquela visão contida na frase do Marechal Murat.

Enquanto que Nicolás Maduro se aferra ao poder, já sem legitimidade interna, contra adversários que pedem uma contagem justa e transparente dos votos, que o próprio regime foi o fiador durante os governos de Hugo Chaves e do próprio Nicolás Maduro, Donald Trump volta disputando pelas urnas que ele tentou fraudar com sua tentativa golpista, com toda a licenciosidade cabível numa democracia imperial.

Nicolás Maduro também pode ser comparado politicamente com Donald Trump, porque é presidente de um país que foi transformado — para o bem e para o mal — de um país passivo dono de enormes reservas de petróleo do planeta cobiçadas pelos donos do mundo, para um país soberano e ativo na política mundial.

Durante a revolução chavista o governo distribuiu a renda do petróleo para o seu próprio povo e também estimulou o orgulho de pertencerem a um país soberano. Donald Trump distribuiu ao seu povo a ilusão do messianismo americano, para dominar o mundo “selvagem” fora das suas fronteiras e acentuou o orgulho de ser cada vez mais imperialista, para os ricos e bem-sucedidos.

No momento, todavia, o que é visto do modelo de desenvolvimento do chavismo — na época de Nicolás Maduro — é que ele deslocou do seu território sete milhões de habitantes que fugiram da fome e da falta de trabalho, o que é um dado crucial para julgar a qualidade de um regime de governo e dos seus responsáveis políticos. Ambos, Trump e Maduro, são diferentes na sua forma e no seu conteúdo, mas ambos carecem de legitimidade para voltar a governar.

No momento, para servirem de exemplo num mundo que carece de exemplos e também de caminhos para combater a fome e alcançar a paz e a liberdade, Lula, Celso Amorim e Mauro Vieira têm razão na condução brilhante da nossa política externa no meio-campo: contra a fome, contra as guerras e pela paz, sem intervencionismo imperial! O império e seus aliados internos rangem os dentes e gostariam de ver o Brasil cumprindo as tarefas submissas que eles sempre destinam aos países de “selvagens” contra os seus vizinhos. Parece que não vão levar.

Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil. Autor, entre outros livros, de Utopia possível (Artes & Ofícios). [https://amzn.to/3ReRb6I]


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