Por ROBERTO SCHWARZ*
Comentário sobre o filme de Ruy Guerra
Assim como nos leva à savana, para ver um leão, o cinema pode nos levar ao Nordeste, para ver retirantes. Nos dois casos, a proximidade é produto, construção técnica. A indústria, que dispõe do mundo, dispõe também de sua imagem, traz a savana e a seca à tela de nossos bairros. Porque garante a distância real, entretanto, a proximidade construída é uma prova de força: oferece a intimidade sem o risco, vejo o leão, que não me vê. E quanto mais próximo e convincente o leão estiver, maior o milagre técnico, e maior o poder de nossa civilização.
A situação real, portanto, não é de confronto vivo entre homens e fera. O espectador é membro protegido da civilização industrial, e o leão, que é de luz, esteve na mira da câmara como podia estar na mira de um fuzil. No filme de bichos, ou de “selvagens”, esta constelação das forças é clara. Doutro modo, ninguém ficaria no cinema. Por este prisma, a despeito de sua estupidez, resulta destas fitas uma noção justa de nosso poder; o destino dos bichos é de nossa responsabilidade. Noutros casos, entretanto, a evidência tende a se apagar.
A proximidade mistifica, estabelece um contínuo psicológico onde não há contínuo real: o sofrimento e a sede do flagelado nordestino, vistos de perto e de certa maneira, são meus também. A simpatia humana, que sinto, barra a minha compreensão, pois cancela a natureza política do problema. Na identidade perde-se a relação, desaparece o nexo entre o Nordeste e a poltrona em que estou. Conduzido pela imagem sinto sede, odeio a injustiça, mas evaporou-se o principal; saio do cinema arrasado, mas não saio responsável, vi sofrimento, mas não sou culpado; não saio como beneficiário, que sou, de uma constelação de forças, de um empreendimento de exploração.
Mesmo grandes fitas de intenção cortante, como Deus e o diabo e Vidas secas, têm falhas neste ponto – causando, me parece, uma ponta de mal-estar. Estética e politicamente a compaixão é uma resposta anacrônica; quem o diz são os próprios elementos de que o cinema se faz: máquina, laboratório e financiamento não se compadecem, transformam. É preciso encontrar sentimentos à altura do cinema, do estágio técnico de que ele é sinal.
O filme de Ruy Guerra, que é uma obra-prima, não procura “compreender” a miséria. Pelo contrário, ele a filma como a uma aberração, e dessa distância tira a sua força. À primeira vista é como se de cena em cena alternassem duas fitas incompatíveis: um documentário da seca e da pobreza, e um filme de enredo. A diferença é nítida. Depois do boi santo, com seus fiéis, depois da fala do cego e da gritaria mística, a entrada dos soldados, motorizados e falantes, é uma ruptura de estilo – que não é defeito, como veremos.
No documentário há população local e miséria; no filme de enredo o trabalho é de atores, as figuras são da esfera que não é da fome, há fuzis e caminhões. Na mobilidade facial dos que não passam fome, dos atores, há desejo, medo, tédio, há propósito individual, há a liberdade que não há no rosto opaco dos retirantes.
Quando o foco passa de uma a outra esfera, altera-se o próprio alcance da imagem: a faces que têm dentro seguem-se outras que não têm; os brutos são para ser olhados, e humanidade, trama ou psicologia, é só nos rostos móveis que se pode ler. Uns são para ver, e outros para compreender. Há convergência, que resta interpretar, entre esta ruptura formal e o tema do filme. O ator está para o figurante como o citadino e a civilização técnica estão para o flagelado, como a possibilidade está para a miséria pré-traçada, como o enredo está para a inércia. É desta codificação que resulta a eficácia visual d’Os fuzis.
O olho do cinema é frio, é uma operação técnica. Se for usado honestamente, produz uma espécie de etnocentrismo da razão, diante do qual, como ao contato da técnica moderna, o que for diverso não se sustém. A eficácia violenta da colonização capitalista, em que razão e prepotência estão combinadas, transforma-se em padrão estético: imigrou para dentro da sensibilidade, que se torna igualmente implacável, para bem e para mal – a menos que afrouxe, banalizada, perdendo o contato com a realidade.
“Dissolve-se tudo que é fixo e empedernido, mais o séquito das tradições e concepções vetustas… profana-se o que é santo, e os forçados, finalmente, a ver com vista sóbria as suas posições e relações.” Desde o início, n’Os fuzis, miséria e civilização técnica estão consteladas. A primeira é lerda, cheia de despropósito, um agregado de gente indefesa, desqualificada pela mobilidade espiritual e real – os caminhões – da segunda. Embora a miséria apareça muito e com força, as suas razões não contam; está em relação, e tem sinal negativo.
Ao mostrá-la de fora e de frente, o filme se recusa a ver nela mais que anacronismo e inadequação. Essa distância é o contrário da filantropia: aquém da transformação não há humanidade possível; ou, da perspectiva da trama: aquém da transformação não há diferença que importe. A massa dos miseráveis fermenta, mas não explode. O que a câmara mostra nas faces abstrusas, ou melhor, o que as torna abstrusas, é a ausência da explosão, o salto que não foi dado. Não há, portanto, enredo. Apenas o peso da presença, remotamente ameaçador. A estrutura política traduziu-se em estrutura artística.
Já os soldados, por contraste, é como se pudessem tudo. Em padrão citadino são homens quaisquer, de classe baixa. No lugar, entretanto, fardados e ateus, vadiam pelas ruas como se fossem deuses – os homens que vieram de fora e de jipe. Falam de mulheres, dão risadas, não dependem do boi santo, é o que basta para que sejam, efetivamente, uma coisa nova. São grandes cenas, em que a sua empáfia recupera, para a nossa experiência, o privilégio de ser “moderno”: ser citadino é ser admirável. O mesmo vale para o comerciante e o chofer de caminhão. Os seus atos importam; estão à altura da história, cujas alavancas locais – armazém, fuzis, transporte – afetam.
Nestas figuras importa mesmo o que não passe de intenção; a má vontade dos soldados, por exemplo, faz ver soluções alternativas para o conflito final. Noutras palavras, onde há transformação de destinos conta tudo, e há enredo. – Abriu-se um campo de liberdade, em que nos sentimos em casa. A natureza da imagem se transformou. Há psicologia em cada rosto; há senso de justiça e injustiça, destinos individuais e compreensíveis. Os soldados são como nós. Mais, são os nossos emissários no local, e gostemos ou não, a sua prática é a realização de nossa política. É nela que estamos em jogo, muito mais que no sofrimento e na crendice dos flagelados.
Do ponto de vista romanesco, a solução é magistral. Veta o sentimento anódino, obriga ao raciocínio responsável. Concentrando-se nos soldados, que vieram da capital a chamado, para defender um armazém, a trama força a identificação antipática, o autoconhecimento: entre os famintos e a polícia, a compaixão vai para os primeiros, mas é na segunda que estão os nossos semelhantes. Ao deslocar o centro dramático do retirante para a autoridade, o filme ganha muito, pois torna mais inteligível e articulada a sua matéria.
Se da perspectiva da miséria o mundo é uma calamidade homogênea, difusa, em que sol, patrão, polícia e satanás têm parte igual, da perspectiva dos soldados resulta um quadro preciso e transformável: a distância entre os retirantes e a propriedade privada é garantida pelos fuzis, que, entretanto, poderiam franqueá-la. A imagem, como quer Brecht, é de um mundo modificável: em lugar da injustiça frisam-se as suas condições, práticas, o seu fiador. Por força do contexto, os bons sentimentos não se esgotam em simpatia. Onde nos identificamos, desprezamos; de modo que a compaixão passa, necessariamente, pela destruição de nossos emissários, e, neles, de uma ordem de coisas.
Os soldados passeiam pela rua a sua superioridade, mas para o olho citadino, que também é seu, são gente modesta. São, simultaneamente, colunas da propriedade, e meros assalariados, montam guarda como poderiam trabalhar noutra coisa – o chofer de caminhão já foi militar. Mandam, mas são mandados; se olham para baixo são autoridades – se olham para cima são povo também. Resulta um sistema de contradições, que será baliza para o enredo. A lógica deste conflito aparece, pela primeira vez, na cena talvez mais forte do filme: quando um soldado, diante de seus companheiros, explica aos caboclos o funcionamento e a eficácia de um fuzil. O alcance do disparo é X, vara tantos centímetros de pinho, tantos sacos de areia, e fura seis corpos humanos.
Até aqui, a informação visa ameaçar. Em seguida, quando especifica pelo nome as peças do fuzil, quer embasbacar. O vocabulário técnico, impessoal e econômico por natureza, é apaixonadamente desfrutado como superioridade pessoal, e talvez mesmo racial: nós somos de outra espécie, a que convém não desobedecer. Contrariamente à sua vocação de universalidade, o saber explora e consolida a diferença. Esta contradição, que em pequeno é um perfil de imperialismo, não vai sem má-fé.
Quando insiste na linguagem técnica, inacessível ao caboclo, o soldado desperta animosidade entre os companheiros, que deixam de rir. O esquema dramático é o seguinte: o vocabulário de especialista, prestigioso para uns, é lugar-comum para outros; para enaltecer-se, o soldado precisa da cumplicidade dos camaradas, que em seguida precisam de seu tombo para reaver a liberdade. A insistência, no caso, torna-se estúpida, logo aprisionada numa engrenagem: a ignorância alheia já não prova a própria superioridade, mas é preciso insistir nela, espezinhar o caboclo mais e mais, a fim de reter, por força da condição comum, de opressores, a solidariedade fugitiva dos companheiros irritados.
Uns nos outros, os soldados veem o mecanismo da opressão de que são agentes. Porque não são soldados só, recusam-se à confirmação recíproca, necessária à raça superior; e porque são soldados também, não vão até o desmascaramento radical. Daí a vacilação na postura, entre o peito inflado e a canalhice. E daí, também, as duas tentações permanentes: a destruição arbitrária dos retirantes, e a desagregação violenta da tropa. Os conflitos ulteriores serão desdobramento deste padrão. Assim o assassinato do caboclo, a briga deflagrada entre os soldados, e a cena de amor, que em sua brutalidade tem muito de estupro.
A série culmina com a violentíssima perseguição e morte do chofer de caminhão. O episódio é o seguinte. Os alimentos devem ser transportados para fora da cidade, para longe dos retirantes, que assistem a tudo sem piscar. Os soldados montam guarda, apavorados com a massa dos famintos, mas exasperados também, pela passividade que estes demonstram. O chofer, que está passando fome e já foi militar, faz o que também para os soldados estava à mão; tenta impedir o transporte dos mantimentos. Caçado pelo destacamento inteiro, é apanhado finalmente pelas costas, e varado por uma carga completa de fuzil. O excesso frenético dos tiros, assim como a sinistra alegria da perseguição, deixam claro o exorcismo: no ex-soldado os soldados fuzilam a sua própria liberdade, a vertigem de virar a bandeira.
Refratada no grupo dos soldados, a questão real, da propriedade, acaba por reduzir-se a um conflito psicológico. O embate das consciências, que tem movimento próprio, se esboça e acirra por várias vezes, e vai ao cabo no tiroteio final. Deflagrou-se uma dialética parcial, moral apenas, de medo, vergonha e fúria, restrita ao campo dos militares, ainda que decida à presença dos retirantes. Trata-se de uma dialética inócua, por sangrenta que seja a luta, pois não empolga a massa faminta, que seria o seu sujeito verdadeiro. É como se, em face do conflito central, o desenvolvimento dramático estivesse fora de centro [1].
Em termos técnicos, o clímax é falso, pois não resolve a fita, que por sua vez não caminha em direção dele: embora o tiroteio seja a culminação de um conflito, não governa a sequência dos episódios, em que se alternam, sempre separados, o mundo do enredo e o mundo da inércia. À primeira vista, esta construção descentrada é defeito; de que serve a sua crise, se é versão deslocada e distorcida do antagonismo principal? Se a crise é moral e o antagonismo é político, de que serve a sua aproximação? Serve, n’Os fuzis, para marcar a descontinuidade. Noutras palavras, serve à crítica do moralismo, pois acentua tanto a responsabilidade moral quanto a sua insuficiência. O nexo importante, no caso, está na ausência de um nexo direto.
Mesmo nas cenas finais, quando há paralelismo entre o campo dos soldados e o campo dos famintos, o hiato entre os dois é cuidadosamente preservado. A devoração do boi santo não decorre da morte do chofer. É um eco seu, como que uma resposta degradada. A perseguição e o tiroteio, embora tenham substrato político, não transmitem consciência aos retirantes, nem organização; mas transmitem excitação e movimento, uma vaga impaciência.
O profeta barbudo ameaça o seu boi-jesus: “Se não chover logo, você vai deixar de ser santo, e vai deixar de ser boi”. Ato contínuo, o sacro comestível, que fora preservado, é transformado, como diria Joyce, em Christeak. Os retirantes, inertes até agora, neste minuto final são como piranhas. – O grupo dos retirantes é explosivo, e a posição moral dos soldados é insustentável. A crise moral, entretanto, não alimenta os famintos, nem pode ser curada pelo que estes fizeram. A relação entre as duas violências não é de continuidade ou proporção, mas não é também de indiferença; é aleatória e altamente inflamável, como sente o espectador.
No filme de enredo, que é de nosso mundo, presenciamos a opressão e o seu custo moral; o close-up é da má-fé. No filme da miséria, pressentimos a conflagração e a sua afinidade com a lucidez. O close-up é abstruso, e não fosse assim seria terrível. No “defeito” desta construção, cujos elementos não se misturam, está fixada uma fatalidade histórica: o nosso Ocidente civilizado entrevê com medo, e horror de si mesmo, o eventual acesso dos esbulhados à razão.
*Roberto Schwarz é professor aposentado de teoria literária na Unicamp. Autor, entre outros livros, de Seja como for (Editora 34).
Publicado originalmente na Revista Civilização Brasileira. no. 9/10, setembro/novembro de 1966.
Ficha técnica
Os fuzis
Brasil, 1963, 80 minutos
Direção: Ruy Guerra
Roteiro: Ruy Guerra e Miguel Torres
Direção de Fotografia: Ricardo Aronovich
Cenografia: Calazans Netto
Elenco: Átila Iório, Nelson Xavier, Maria Gladys, Leonides Bayer, Paulo César Pereio, Hugo Carvana, Maurício Loyola.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=7bHNKleRVb4
Nota
[1] Meu argumento e vocabulário são tomados, aqui, a um estudo de Althusser, “Notes sur um théatre matérialiste”, em que se descreve e discute uma estrutura desta espécie, “assimétrica e descentrada”. Cf. Pour Marx (Maspero, 1965).