Por CELSO FAVARETTO*
Hélio Oiticica e Lygia Clark tinham em comum um projeto, cultural e político, de “desestetização” da arte
Desde o final dos anos 1950, e mais incisivamente no início dos 60, o projeto comum de Lygia Clark e Hélio Oiticica visava “transformar os processos de arte em sensações de vida”. Levando ao limite a crise da pintura, a desestetização lançava os artistas na busca de um “além-da-arte” que respondesse aos “novos rumos da sensibilidade contemporânea”. As soluções encontradas por eles – na linha dos desenvolvimentos que vinham fazendo sobre as possibilidades abertas pela vertente construtiva da arte moderna – encaminhou-os na realização das complexas relações entre arte e vida. A articulação de construtividade e vivências tinha na ideia de “participação” o centro nevrálgico das transformações que propunham: mais do que estética, a proposição era cultural e política.
Neste trabalho comum de superação da pintura e destruição de todas as circunscrições artísticas, descobriram suas afinidades. Inicialmente, as proposições são paralelas, mas a partir do “Parangolé”, de Oiticica, e do “Caminhando”, de Lygia, cada um se singulariza nos modos da participação. Em carta a Lygia, Oiticica diz que a “grande inovação” deles estava “exatamente na forma da participação, ou melhor, no sentido dela”. Sublinha que isto os distingue do que se fazia na Europa e nos EUA, talvez porque no Brasil havia uma “barra mais pesada”, “talvez porque os problemas tenham sido checados de modo mais violento”. Alusão, certamente, tanto à repressão e censura do regime militar quanto às reações do sistema de arte do público às suas propostas.
As cartas que trocaram explicitam tais problemas. A distância, o exílio e a imersão em outros circuitos artístico-vivenciais aguçam a lucidez. No Brasil, a repressão do regime é paralela às “pragas da vanguarda” e mediocridade do meio artístico: competitividade, esteticismo, convi-conivência, denunciados por Oiticica em textos (como “Brasil Diarreia”) e declarações. Estas cartas valem como crônica e levantamento de sintomas da diarreia brasileira: diluição. Valem também como manifestação dos signos irredutíveis de diferença, de radicalidade crítica, de originalidade artística.
Contrariamente às críticas, que confundiam a marginalidade implícita aos seus programas com uma marginalidade meramente circunstancial, Lygia e Oiticica afirmavam um comportamento – de que as cartas expõem as vísceras e as pulsões – que enfrentava o fechamento institucional, a desestetização e os desafios das propostas vivenciais por meio de ações que desfaziam as contradições entre inconformismo estético e inconformismo social. Não viviam a expensas do tema da morte da arte, para eles já caso vencido; viviam da transmutação da arte em “outra coisa”.
Certa vez Oiticica disse que, ao instalar o “Eden” na Witechapel Gallery de Londres em 1969, tinha chegado “ao limite de tudo”, pois o programa-parangolé teria levado às últimas consequências a sua proposição-vivencial. O “Eden” materializava a abertura estrutural, as manifestações ambientais, o “Supra-sensorial” e o “Crelazer”, realizando a articulação do “conceitual” e do “fenômeno vivo”.
Em outro registro, em Paris, Lygia desenvolvia as proposições sensoriais que a levariam aos “Objetos Relacionais”. Em ambos, o além-da-arte apresentava-se como transmutação da arte e da vida, despregando-se dos domínios da arte. Como denominar aquilo a que tendiam? Para Lygia, já não era arte aquilo que fazia; como se viu depois, chegou a um modo singular de terapia, embora os “Objetos Relacionais” estivessem engatados nas proposições construtivas-sensoriais.
Em Oiticica, a permanência do “sentido de construção” nas proposições-vivências é mais evidente e proposital. O além-ambiente dos “Ninhos”, por exemplo, a idéia-projeto “Barracão”, os “Contrabólides” são células germinativas de vivências participativas em que se surpreendem os princípios dos desenvolvimentos construtivos, patentes dos “Metaesquemas” às “Manifestações Ambientais”‘. O que era arte é vida, e vice-versa.
Saudade, disse Oiticica em 1978, só sente quem não comeu o fruto todo, quem só deu uma dentada. Tendo chegado ao limite de tudo, no Rio, em Londres, em Nova York, ao voltar ao Brasil constata que a diluição permanece e que, novamente, na arte e na cultura recrudesce o interesse pelas “raízes”. A desculturação, que grassara em toda parte no pós-68, aqui não se fixara. A proximidade da redemocratização acenava para o que ficara estancado no 1968 brasileiro. Não para ele, entretanto, pois o desenraizamento propunha não a “remitização” mas a “desmitificação”. Tratava-se de relançar os fios soltos do experimental; explorá-los – como já dizia em “Experimentar o Experimental”- num campo aberto de possibilidades.
Esta trajetória de Oiticica é exemplar para se entender o rumo e o destino da experimentação que tensionou os limites da modernidade. Abriu possibilidades que só após a sua morte puderam ser devidamente avaliadas e valorizadas. Neste sentido, uma referência indispensável é o catálogo produzido pelo “Projeto Hélio Oiticica”, para uma grande mostra itinerante do artista que passou por Amsterdã, Paris, Barcelona, Lisboa, Minneapolis e Rio de Janeiro. Constitui uma amostra eloquente da força do trabalho de Oiticica e de suas possíveis repercussões na arte contemporânea.
Ressalte-se, na organização do catálogo, o procedimento conceitual. Em vez de acompanhar os desenvolvimentos de Oiticica segundo a cronologia, privilegiou-se uma ordenação das proposições que destacasse, além da coerência, as sínteses. Assim, com propriedade, inicia-se com o “Eden”, seguido do fundamental “Brasil Diarreia”. Assim, se formulam simultaneamente a posição experimental de Oiticica e a posição crítico-cultural. Teria sido muito interessante que também aparecesse neste bloco o “Experimentar o Experimental”, pois não só reitera a radicalidade de “Brasil Diarreia”, como mostra algumas inflexões do pensamento de Oiticica diante de questões colocadas pelo consumo e as recodificações do início dos 70.
O bloco seguinte retraça a formação das proposições de Oiticica a partir dos “Metaesquemas”; textos já coletados em “Aspiro ao Grande Labirinto” pelo “Projeto HO” (e que está precisando de uma nova edição, mais cuidada e mais completa), notas inéditas, estudos etc. Finalmente, o importantíssimo bloco de textos, anotações, esquemas e projetos, posteriores a 69, pouco conhecidos porque alguns apareceram em revistas de efêmera duração ou em catálogos de exposições póstumas de Oiticica, e outros ficaram dispersos em jornais e vários inéditos, que faziam parte dos diários do artista. Aliás, o conhecimento mais completo do pensamento e dos projetos de Oiticica, de 1970 a 1980, só será possível quando se tiver acesso a estes diários. Principalmente porque só então poderemos entender melhor o alcance do que dizia pouco antes de morrer: “tudo o que fiz antes considero um prólogo. O importante está começando agora”.
Voltando ao Brasil com os muitos projetos delineados em Nova York, relança os fios soltos do experimental segundo o seu “processo de desmitificação” que comandava o “program in progress“: “Tudo o que veio antes (…) não passa de um prelúdio àquilo que há de vir e que começa a surgir a partir desse ano na minha ‘obra’: ao que antes chamei de ‘ovo’ há de seguir ‘o novo’. O ovo e o novo da experimentação de Oiticica estão agora à nossa disposição. Trata-se de saber, nas apropriações em curso, como ultrapassar a lenda e salvar a honra do nome.
*Celso Favaretto é crítico de arte, professor aposentado da Faculdade de Educação da USP e autor, entre outros livros, de A invenção de Helio Oiticica (Edusp).
Referências
Luciano Figueiredo (org.). Lygia Clark/Hélio Oiticica: Cartas, 1964-74. Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 262 págs.
Luciano Figueiredo (org.). Hélio Oiticica – Catálogo da Exposição. Projeto Hélio Oiticica, 279 págs.