Clarice Lispector em italiano

El Lissitzky, Di hun vos hot gevolt hoben a kam (The Hen that Wanted a Comb), 1919
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Por DAYANA LOVERRO*

Entre o universal e o feminino

“Você que me lê, que me ajude a nascer” (Água Viva, 1973).

Clarice Lispector, escritora cujo centenário de nascimento foi celebrado em 2020, cultivava uma destacada relação com o leitor em seus contos, romances e crônicas – conexão que a acompanhava também na esfera privada, através de suas intensas correspondências. Ao desenvolver a sua produção literária no século XX (momento em que, na teoria literária, as construções de sentido tendiam a se concentrar um tanto menos no autor e no texto em si para então se completarem no leitor), mesclava textos de profunda introspecção com textos que manifestavam esse diálogo substancial, em uma interação que atravessou fronteiras e proporcionou trocas em diversos idiomas – dentre eles, o italiano.

Lispector publicou o seu primeiro livro, Perto do Coração Selvagem, em 1943. Muito bem recebido pela crítica, obteve grande reconhecimento em 1944 ao receber o prêmio Graça Aranha que, à época, era um dos mais importantes prêmios literários do Brasil. Nesse período, a escritora já morava na Europa: casada com o diplomata brasileiro Maury Gurgel Valente, viveu na cidade de Nápoles, na Itália, entre os anos de 1944 e 1946.

Durante a II Guerra mundial, atuou como voluntária junto ao corpo de enfermagem do hospital da Força Expedicionária Brasileira (FEB), onde cuidava dos combatentes doentes e feridos e também lia e escrevia-lhes cartas aos familiares. A experiência como voluntária é relatada em suas cartas pessoais, como aquelas à sua irmã, Elisa, e ao amigo Lucio Cardoso. Em suas cartas também estão presentes outras experiências do período em que viveu na Itália, como por exemplo, passagens com o pintor De Chirico (que fizera um retrato seu) e relatos sobre o seu estimado cão, Dilermando, que deixou, com muito pesar, aos cuidados de outra pessoa ao mudar-se para a Suíça. Alguns traços dessa profunda relação de afeto com o seu cão se fazem presentes em contos e em determinados momentos de suas obras. Nos anos em que viveu na Itália, concluiu ainda a escrita do romance O lustre e teve contato também com o poeta Giuseppe Ungaretti, que muito apreciou a qualidade de seus escritos.

De acordo com Mona Lisa Teixeira, o período vivido por Lispector na Itália é relembrado em crônicas como “O maior elogio que já recebi”, “Bichos”, “Aldeia nas montanhas”, “Corpo e alma”, “Uma italiana na Suíça” e “O chá”, com destaque às impressões sobre o povo italiano e a natureza do país, bem como a episódios particulares. Teixeira destaca que “suas vivências pessoais nesse período se transformariam, mais adiante, em mananciais para seus escritos, como é possível perceber nas suas trocas de correspondências com as irmãs, e os amigos Lúcio Cardoso e Manuel Bandeira, para citar alguns, em que muitas vezes fala sobre os problemas com relação à adaptação de suas funções como esposa de diplomata, suas dificuldades com relação à elaboração de seus escritos e sobre os escritores que lê, como Marcel Proust, Emily Brontë e Katherine Mansfield. É através das correspondências que se informa sobre a situação política do Brasil, assim como da vida intelectual do país, como se constata nas suas cartas trocadas com Manuel Bandeira”.[1]

Conforme assinala Dal Pont[2], diversos aspectos característicos do Brasil se descortinam ao público leitor das obras brasileiras em contexto de recepção, como aqueles relacionados à Antropologia, Sociologia e Estudos culturais. Se o consumo da produção literária promove a construção de referenciais sobre determinada sociedade e cultura no mesmo país onde é escrita, no exterior a construção desse imaginário tem chances de se potencializar. Pensando-se sobre as formas de observação da literatura brasileira (a partir do próprio país ou sob o espectro do olhar estrangeiro) e considerando-se a multiplicidade de influências em sua composição, é útil nos lembrarmos, de acordo com Antonio Candido[3], que a literatura brasileira se propaga através de um olhar comparativo – ao passo que as demais existem por si só. Porém, ao longo dos anos foram cada vez mais reconhecidos os traços inovativos presentes na literatura nacional, o que ocorre marcadamente através da obra de Clarice Lispector.

O destaque conferido aos escritos de Lispector pela crítica brasileira acontece com maior intensidade entre as décadas de 60 e 70, momento em que as ideias europeias chegavam ao Brasil em contraponto à hegemonia social ou ao engajamento presente na produção estética desse período. De acordo com Corrêa & Pilati[4], foi dessa forma que a escrita de Lispector parece ter assumido matizes universais, com a capacidade de entender a alma humana “devido ao desejo profundo de compensação (recorrência na história do intelectual brasileiro) do atraso nacional. “A sociedade resolve no domínio imaginário as contradições que não consegue superar no real” (JAMESON, 1985, p.14). A possibilidade artística de uma escritora que está acima da matéria brasileira, desponta como uma exceção – Lispector existiria assim apesar das condições precárias do país, e não, exatamente, por causa dessa materialidade específica”.

A natureza universal presente em Lispector colaborou também para que a sua obra se difundisse no exterior. O editor e escritor Pedro Corrêa do Lago, em matéria de Tom C. Avendaño para o jornal El país em 2017, considera que foram as traduções e o interesse que começou a despertar no exterior que a transformaram em um fenômeno editorial brasileiro. Nas palavras dele, “os grandes artistas sabem projetar, de uma maneira muito estranha, uma visão muito excêntrica e pessoal sobre os falantes de todo um idioma, e também sabem fazer com que acreditem que essa visão é sua. Assim, é impossível imaginar o espanhol sem Cervantes, o inglês sem Shakespeare, e o português sem Clarice”[5].

De acordo com Francavilla[6], a autora representou uma ruptura com a tradição literária ao deslocar-se da abordagem local e nacional, predominante na literatura brasileira do contexto pós-independência até o momento de suas primeiras publicações (década de 1940), para temáticas universais e, ao mesmo tempo, com traços de introspecção ligados às sensações e às questões da alma humana; abrindo espaço, dessa forma, a novas possibilidades do fazer literário no Brasil.

Em relação à Itália, os anos 1970 representaram um marco para a tradução da ficção brasileira. Conforme elucida Torquato, vários autores brasileiros até então inéditos foram introduzidos no mercado editorial italiano nesse período. As décadas seguintes dariam prosseguimento a esse intercâmbio literário, intensificando-o, como ocorreu na década de 1980. Esse é o caso de Clarice Lispector: desde que publicada pela primeira vez em italiano, tornou-se uma das autoras brasileiras mais traduzidas na Itália (ao lado de Machado de Assis e Jorge Amado).

Torquato[7] indica que a Itália tomou contato com a ficção de Lispector muitos anos após outros países. A autora já era traduzida na França, por exemplo, desde 1954 (com a publicação de Perto do coração selvagem); e em 1967 foi traduzida pela primeira vez nos Estados Unidos (com a edição americana de A maçã no escuro). Porém, aparentemente, após o contato do público leitor italiano com a narrativa da escritora brasileira através da tradução de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres [Un apprendistato o il libro dei piaceri][8], em 1981, a Itália buscou recuperar o período sem traduções, pois em um curto espaço de tempo (1981-1989) traduziu-se, em média, uma publicação ao ano.

Os paralelos entre a escrita de Lispector com James Joyce e Virginia Woolf, por exemplo, também contribuíram para uma posição mais “canônica” da autora na recepção da literatura brasileira no exterior. Um dos pontos mais marcantes em comum deve-se ao fato de que Lispector também se utiliza do trabalho com a linguagem para alcançar a expressão de um “fluxo de consciência”, próprio dos monólogos interiores. Apresenta identificação – ainda que sem intencionalidade – também com a escrita feminina, sob a ótica de Hélène Cixous[9], que propõe, entre outros aspectos, a mudança da noção do “feminino” como parte de uma lógica binária que se opõe à noção do “masculino” (enquanto a primeira é atribuída às mulheres e a segunda aos homens), e concebe a noção do feminino como transcendente de distinções biológicas.

Para que se forme um público leitor cujas demandas possam ser atendidas, é preciso que as esferas editoriais e mercadológicas atuem em consonância. Os escritos de Cixous ajudaram a difundir Lispector internacionalmente em um momento em que as mulheres se defrontavam com questões de cunho político e social, referentes ao seu espaço no mundo – e a expressão literária feminina pôde atuar como uma grande auxiliar na elaboração e síntese dessas mesmas questões.

A abordagem feminista presente nos estudos de Hélène Cixous repercutiu amplamente também junto ao público leitor italiano (sobretudo feminino). Assim, com relação à ampla divulgação internacional e à recepção de Clarice Lispector na Itália, Guerini & Torquato[10] (2006) explicam que, a partir da década de 1970, Lispector vem a ser conhecida no país principalmente em decorrência do movimento feminista.

Clarice Lispector não é intencionalmente relacionada ao feminismo, pois nem mesmo permitia ser classificada como uma feminista, mas a sua escrita ia ao encontro das necessidades de expressão desse movimento. A autora desenvolveu a sua produção literária em um momento em que o movimento feminista no Brasil ainda não havia se consolidado. A biógrafa e especialista Nádia Gotlib[11] explica que, “embora não tenha sido ativista e tenha até criticado o feminismo pelo risco da sua burocratização, Clarice colaborou de modo decisivo para a emancipação da mulher, ao desvendar novas perspectivas de vida contra os limites paternalistas impostos por uma sociedade autoritária e machista”.

No que diz respeito ao aproveitamento das obras de Lispector por destacadas teóricas feministas italianas, Bonalumi[12] expõe que a obra A Paixão segundo G.H. [La passione secondo G.H.][13] foi uma das obras mais impactantes sobre a qual essas estudiosas dedicaram discussões, em grande parte motivadas pela sensação de estar ante a uma autora inacessível, à qual se deve voltar muitas vezes para obter uma compreensão mais profunda sobre ela. Bonalumi completa, ainda, que após a publicação dos Études Littéraires de Hélène Cixous em 1978 (um artigo sobre o livro A maçã no escuro), Clarice Lispector passa a ser mais lida mundialmente, em razão da intensificação das traduções. É interessante lembrar que também os Estudos da Tradução começaram a se estruturar paralelamente ao desenvolvimento dos estudos feministas na década de 1970, embora as duas áreas tenham permanecido à parte até muito recentemente.

Em complemento ao primeiro movimento das traduções de Clarice Lispector na Itália, nota-se nos últimos anos o surgimento de um segundo movimento de traduções e retraduções de sua obra em italiano, também acompanhando uma tendência internacional. Benjamin Moser[14], biógrafo e um dos tradutores de Lispector em língua inglesa, considera que a autora trouxe abordagens inéditas para a literatura, destacando-se no contexto internacional, sobretudo, pelo talento.

Na Itália, após a recente aquisição dos direitos para a publicação de traduções de Clarice Lispector pela editora Adelphi (Adelphi Edizioni), estimam-se diversos lançamentos de títulos traduzidos em italiano para os próximos anos. Os títulos em italiano lançados mais recentemente foram Acqua viva[15], Un soffio di vita][16] e Tutti i racconti][17].

De tal sorte, o mais recente processo de internacionalização da autora apresenta-se amplamente relacionado às atuais dinâmicas editoriais e, em tempo, vem para lembrar e laurear os esforços de muitos editores, tradutores, professores, pesquisadores e leitores que, por décadas, se dedicam – no Brasil, na Itália e em todo o mundo – à memória, interlocuções e presença de Clarice Lispector.

*Dayana Loverro é doutoranda em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Língua, Literatura e Cultura Italianas da FFLCH-USP.

Publicado originalmente na revista eletrônica Literatura Italiana Traduzida, v. 1, n. 12, dez. 2020.

Notas


[1] TEIXEIRA, Mona Lisa Bezerra. “Uma estrangeira do mundo – Memórias de Clarice Lispector na Itália.” In: Anais do XV Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Rio de Janeiro, 2017, p. 6791-6792.

[2] DAL PONT, Stella Rivello da Silva. “Cânone em tradução: Três décadas de conexões literárias entre Brasil e Itália (1977-2007)”. Tese. Centro de Comunicação e Expressão. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2017.

[3] CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.

[4] CORRÊA, Camila Chernichiarro de Abreu; PILATI, Alexandre Simões. “A dimensão histórica da obra de Clarice Lispector”. In: Anais do XV Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Rio de Janeiro, 2017, p. 2598.

[5] LAGO, Pedro Corrêa do. “Clarice Lispector: o segredo mais popular da literatura brasileira”. El pais (jornal). Espanha, 20/09/2017. Disponível em: brasil.elpais.com/brasil/2017/09/20/cultura/1505923237_969591.html.

[6] Cf. FRANCAVILLA, Roberto. “A língua é um cavalo: traduzir Clarice Lispector”. In: Revista Olho d’água. UNESP: São José do Rio Preto, 2018.

[7] Cf. TORQUATO, Carolina Pizzolo. Breve estudo sobre a literatura brasileira na Itália: traduções entre 1882 e 1996. Florianópolis: Editora da UFSC, 2007.

[8] LISPECTOR, Clarice. Un apprendistato o il libro dei piaceri. Trrad. Rita Desti). La Rosa: Turim, 1981.

[9] CIXOUS, Hélène. “The Laugh of the Medusa” (1975). In: FREEDMAN, Estelle B. The essential feminist reader. Nova York: Modern Library, 2007.

[10] GUERINI, A; TORQUATO, C.P. “La letteratura italiana tradotta in Brasile e la brasiliana tradotta in Italia”. Mosaico (revista), nº 26. 2006. Disponível em: www.comunitaitaliana.com.br/mosaico/mosaico92/guerini.htm

[11] GOTLIB, Nádia Battella. “[ENTREVISTA] Nádia Battella Gotlib fala sobre Clarice Lispector”. Folha de Pernambuco (jornal). Brasil, 09/12/17. Disponível em: www.folhape.com.br/cultura/entrevista-nadia-battella-gotlib-fala-sobre-clarice-lispector/51542/

[12] Cf. BONALUMI, Emiliana Fernandes. “Análise de similaridades e diferenças no uso de marcadores de reformulação e frases lexicais, em um corpus paralelo, constituído de contos e romances de Clarice Lispector, e as respectivas traduções para o inglês e italiano”. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2010.

[13] LISPECTOR, Clarice. La passione secondo G. H. Trad. Adelina Aletti. Feltrinelli Editore: Milão, 1982, 1991.

[14] MOSER, Benjamin. “Uma entrevista com Benjamin Moser, o biógrafo de Clarice Lispector”. Vice Media Group (site de notícias). EUA/Canadá, 14/12/2015. Disponível em: www.vice.com/pt/article/aewagp/uma-entrevista-com-benjamin-moser-o-biografo-de-clarice-lispector

[15] LISPECTOR, Clarice. Acqua Viva. Trad. Roberto Francavilla. Adelphi Edizioni: Milão, 2017.

[16] LISPECTOR, Clarice. Un soffio di vita. Trad. Roberto Francavilla. Adelphi Edizioni: Milão, 2019.

[17] LISPECTOR, Clarice. Tutti i racconti. Trad. Roberto Francavilla. Feltrinelli Editore: Milão, 2020.

 

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