Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*
Os funcionários da governança tecnocrática do capitalismo terão de operar num quadro social e econômico que podemos caracterizar como barbárie
Um artigo publicado como “working paper” pelo FMI causou certo espanto em alguns economistas de esquerda no Brasil. O seu título: Crenças acocoradas, vieses ocultos: elevação e queda das narrativas de crescimento (Crouching beliefs, hidden biases: rise and fall of growth narratives). Os seus autores, Reda Cherif, Marc Engler, Fuad Hasanov, mesmo sendo pouco conhecidos, conseguiram causar um pequeno tremor no campo da teoria econômica. Todos os economistas que frequentam o cercado do mainstream parecem tratar o artigo de modo respeitoso. Afinal, ele tem o endosso da principal organização controladora do dinheiro em âmbito mundial.
A razão pela qual o conteúdo desse artigo ecoou entre os economistas de esquerda é que parece expor a teoria econômica como ideologia. Ademais, parece indicar também que há um declínio da política de austeridade a qual combatem com veemência. Nessa recepção do paper, há, porém, um suposto implícito. Se até mesmo os economistas do centro do sistema abandonaram esse discurso, os da periferia, menos competentes segundo o preconceito, deveriam fazer o mesmo. Os funcionários da governança tecnocrática do capitalismo no Brasil precisam, portanto – e esse é o argumento –, alinharem-se aos que estão na vanguarda, que operam no centro do sistema.
Mas, o que há nesse artigo? Trata-se de um estudo sobre a preponderância e a força performativa de certas arengas do capital que se apresentaram na cena econômica ao longo do desenvolvimento do capitalismo nos últimos setenta anos. O comandante desse modo de produção, como se sabe, fala e escreve por meio dos discursos dos economistas que atuam como seu suporte. O estudo examinou um conjunto de 4920 relatórios feitos no âmbito dessa organização que abriga, como bem se sabe, um importante núcleo de personificações do capital mundializado. Esses relatórios analisam as economias e orientam as políticas econômicas dos países que se submetem às diretrizes e ao “aconselhamento” dessa organização.
A força performativa mencionada diz respeito ao uso da linguagem como ação que é capaz de produzir mudanças no comportamento das pessoas, ou seja, dos receptores dos discursos. Ora, é justamente nessa perspectiva que os autores do artigo compreendem o papel das “narrativas econômicas”: “nosso mundo” – dizem eles – “é moldado pelas ideias e as ideias dos economistas são particularmente influentes”. Keynes observara – apontam – “que as ideias dos economistas e dos filósofos políticos, sejam elas erradas ou certas, são mais poderosas do que comumente se julga.” Na verdade, dissera ele, “o mundo é regrado por elas e por quase nada além delas”.
Keynes – note-se – pensava ainda essa disciplina estritamente como ciência. Não se pode esquecer que a Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro veio à luz na forma de um ressurgimento e renovação, durante a depressão dos anos 1930, da economia política clássica. Se ele se preocupava nesse tempo tormentoso com o desempenho macroeconômico da economia capitalista, não fugia da questão da repartição da renda entre as classes sociais tal como aqueles antecessores da primeira metade do século XIX.
A luta das classes para ampliar a participação no produto líquido social é o fim condutor interno da obra de Keynes. É assim, nesse balanço, que se define a demanda efetiva. Portanto, para ele, as ideias formuladas pelos economistas diziam respeito às condições internas do evolver do próprio sistema econômico.
Os autores do artigo aqui examinado se valeram das idéias de Robert Schiller, um economista superficial contemporâneo, ganhador do Prêmio Nobel de 2013, que criara e divulgara essa temática na econosfera. Para tanto, escreveu um artigo e um livro com o sugestivo nome de Narrativas econômicas (Narrative economics). Como bom investidor, ele “enfatiza a importante influência das narrativas ou estórias populares nos resultados econômicos”. Diferentemente de Keynes, entretanto, sustenta que essas narrativas livre-flutuantes determinam “a severidade de uma crise ou mesmo o desemprego tecnológico”. Se a afirmação de Keynes já contém um viés idealista, a suposta capacidade de moldar o mundo das opiniões econômicas difusas torna-se notoriamente fantasiosa em Schiller.
Por que esse último autor passa da ciência para a narrativa econômica? A primeira consiste sempre num saber supostamente racional sobre a natureza e o funcionamento do sistema econômico; já as narrativas são engendradas com a finalidade de construir consensos sobre as formas da governança do capitalismo nas conjunturas históricas. Veja-se que esses três autores parecem saber, pelo menos implicitamente, que a própria teoria econômica estrutura-se agora como um saber tecnonormativo que abandonou a pretensão de ser um saber científico. E que ela é hoje construída nos laboratórios do império, no centro e nas periferias, não para dar conta dos fenômenos como tais – e menos ainda dos seus nexos internos–, mas justamente para legitimar formas específicas de política econômica.
A teoria econômica – não se pode deixar de registrar aqui – é uma forma de saber decadente, em si mesma semelhante à velha escolástica medieval, mas que mantém sempre uma orientação instrumentalista que melhor convém ao próprio capitalismo.
Cherif, Engler e Hasanov, de qualquer modo, descrevem em seu texto quatro narrativas que foram difundidas, senão impostas aos gestores, nos últimos cinquenta anos do desenvolvimento do capitalismo em escala global. Eles as denominam de “narrativas de crescimento”, mas aqui – como já ficou claro – elas serão ressignificadas como arengas do capital.
Aqui se pretende apresentar de modo resumido o conteúdo desses discursos, mostrando os períodos em que predominaram e porque se tornam necessários frente ao próprio desenvolvimento do capitalismo. Tem-se como objetivo mostrar que eles, longe de serem livre-flutuantes, responderam às dificuldades objetivas da acumulação de capital no tempo histórico. Não resta dúvida que há certa autonomia dos discursos econômicos em geral, mas também é verdade que eles estão condicionados e mesmo pressionados pelas condições objetivas da acumulação de capital.
Como se sabe, o capital é um sujeito automático que tende à desmedida, à superacumulação e à crise; conforme se reproduz, ele cria barreiras para o seu próprio processo de crescimento, supera em geral essas barreiras, mas apenas para criar barreiras ainda mais elevadas, as quais passam a dificultar o seu próprio desenvolvimento. Mas essa sabedoria é atualmente um pouco insuficiente. Esse ensinamento que veio do século XIX deve agora ser complementado com o saber de que o movimento de acumulação no capitalismo contemporâneo não depende mais só da espontaneidade do capital; ao contrário, ele depende sempre da intervenção constante e fundamental do Estado, das políticas econômicas engendradas pelas instituições que dão suporte à reprodução do capital.
A história do capitalismo no pós-guerra pode ser apresentada sinteticamente por meio do gráfico que se segue e que apresenta uma média ponderada da lucratividade do capital no conjunto dos países que formam o G 20, onde se concentra em torno de 85% do PIB mundial. Mesmo havendo ocorrido uma queda tendencial da taxa de lucro ao longo dos últimos 70 anos, o período como um todo pode ser dividido em quatro subperíodos: idade dourada, crise de lucratividade, recuperação neoliberal e longa depressão.
O que determina essa periodização é obviamente o comportamento ascendente ou descendente dessa variável. Note-se que é o próprio movimento da taxa de lucro que explica a sucessão de subperíodos. Nele se reflete a lógica mencionada da produção e da superação das barreiras: quando a taxa de lucro cai, o capitalismo tem de se transformar para continuar prosperando. Ao prosperar, acaba produzindo mais a frente uma nova queda da taxa de lucro.
Por falta de espaço, não se vai aqui explicar em detalhes o desenvolvimento do capitalismo nesse período. Essa explanação, que não prescinde de muitas outras considerações teóricas, fatos históricos e evidências empíricas, encontra-se num importante livro de Michael Roberts. Em A longa depressão: porque aconteceu, como aconteceu e o que vai ainda vai acontecer (The long depression: how it happened, why it happened, and what happens next), ele apresenta uma interpretação da história do capitalismo que aqui se segue em grande medida. O próprio gráfico abaixo apresentado foi construído por esse autor com base nas informações estatísticas da Penn World Table 9.1. De qualquer modo, a evidência que aí aparece parece bem significativa.
Como os três economistas chegam a conceber os quatro mencionados discursos. Eles empregam uma técnica estatística que consiste em selecionar um conjunto de palavras significativas, em descobrir depois a frequência com que essas palavras aparecem nos relatórios do FMI, para chegar até aglomerados de significantes que são, então, tomados como manifestações privilegiadas de certos discursos.
Fazendo isso, identificaram quatro ondas discursivas, em parte sobrepostas, que formavam, segundo eles, “narrativas” típicas. Elas foram assim denominadas: “estrutura econômica”, Consenso de Washington, “reformas estruturais” e Constelação de Washington. Ora, elas foram aqui ressignificadas como discurso do capital industrial, discurso do choque neoliberal, discurso das reformas estruturais neoliberais e discurso da superação da estagnação, respectivamente. Essas ondas são apresentadas na figura em sequência como linhas coloridas num gráfico temporal.
O discurso do capital industrial começou antes de 1978; na verdade, ele predominou no pós-guerra até o fim da década dos anos 1970, quando começou a declinar. O que o demarcou na pesquisa foram os termos produtividade, estrutura industrial, competição, eficiência etc. Enquanto enunciação econômica recebeu o nome genérico de keynesianismo. O seu definhamento ocorreu junto com a crise de lucratividade observada justamente na década dos anos 1979, a qual se manifestou por meio da queda da taxa de crescimento do PIB, das elevações abruptas dos preços do petróleo, do estagflação e do ativismo sindical. Ele foi sucedido pelo discurso do neoliberalismo e do capital financeiro a partir da década dos anos 1980.
Os autores do estudo identificaram o discurso do choque neoliberal, uma arenga que se projetou internacionalmente, com o nome de “Consenso de Washington”. Os termos privatização e liberalização foram as suas marcas registradas. As medidas de política econômica que recomendava visavam, em última análise, tirar os entraves à circulação nacional e internacional do capital. Elas permitiram o processo da globalização da produção industrial e, ao mesmo tempo, o enfraquecimento dos sindicatos e da classe trabalhadora. Em última análise, o objetivo era forçar uma recuperação da taxa de lucro por meio da redução da parcela salarial, o quede fato ocorreu como se pode ver no gráfico anterior.
Paralelamente, cresceu também o discurso das reformas estruturais que visavam promover a liberalização dos mercados e mudar o modo de atuação do Estado. Ele recomendava a redução da proteção social dos trabalhadores para que o Estado pudesse atender melhor à acumulação de capital privado, em particular na esfera financeira. Marcou esse discurso uma preocupação central com a qualidade das instituições na perspectiva da redução dos custos das condições da acumulação como infraestrutura, educação, saúde etc. O seu objetivo central era consolidar institucionalmente o regime de acumulação do neoliberalismo.
Mesmo quando o discurso do choque começou a declinar já na virada do milênio, o discurso das reformas neoliberais continuou cada vez mais importante. Ocorre que a taxa de lucro voltou a cair depois de 1997, trazendo de volta a preocupação com uma tendência persistente à estagnação que se manifestou nos países centrais e em grande parte dos países periféricos. Os próprios economistas do sistema começaram a debater o que eles mesmos chamaram de “estagnação secular”. Nesse quarto discurso começou a aparecer uma preocupação com a elevação das desigualdades de renda e riqueza, com a corrupção, com a questão ecológica, com os impactos das tecnologias da informática e da comunicação, assim como um questionamento keynesiano da austeridade.
O artigo de Cherif, Engler e Hasanov menciona de passagem que a realidade objetiva pode, sim, impactar no discurso dos economistas que escrevem e falam em nome do capital – mesmo se dizem e pensam ao contrário. Afirmam, por exemplo, que “as crises dos anos 1970 e 1980 podem ter acelerado a defesa das políticas de menor participação e intervenção do Estado”. Mas lhes falta uma audácia maior.
Esses autores não tratam do futuro das arengas do capital. Pode-se, entretanto, conjecturar que doravante vai ascender um discurso marcado por uma certa dúvida crucial: se antes predominara a tese de que “não há alternativa”, agora pode prevalecer a questão sobre se “o capitalismo pode sobreviver”.
É bem evidente que esse modo de produção enfrenta agora não apenas a crise renitente da COVID-19, mas também um colapso ecológico generalizado, a ascensão do racismo e do neofascismo, uma derrocada possível do castelo de areia construído pelo sistema financeiro internacional. A euforia neoliberal predominante dos anos 1980 em diante pode ser substituída agora por um discurso depressivo que não poderá ser amenizado pelo consumo de drogas psicoterapêuticas, mas que afundará com elas, assim como com o consumo generalizado de drogas mais pesadas. Esse discurso terá de operar num quadro social e econômico que não poderá deixar de ser caracterizado como barbárie.
*Eleutério F S Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Complexidade e práxis (Plêiade).