Por PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.*
Liberalização, conversibilidade e dolarização
Houve algum debate, embora tardio e insuficiente, sobre o projeto de lei que concedeu autonomia formal ao Banco Central do Brasil (Projeto de Lei Complementar 19 de 2019). Ainda mais limitada tem sido a discussão de outro projeto de lei que diz respeito ao Banco Central, também aprovado pela Câmara no início de fevereiro – o que dispõe sobre o mercado cambial (Projeto de Lei 5.387, de 2019), apelidado por alguns críticos como o projeto da “farra cambial”. É deste segundo, que traz ampla reforma do marco legal do mercado cambial, que pretendo tratar neste artigo.
O PL da autonomia, que tramitou primeiramente no Senado, seguiu para sanção presidencial.[1] O PL do câmbio seguiu para consideração pelo Senado. Tudo a toque de caixa. Estão passando a boiada – e não só na área ambiental.
Cada um desses PLs já seria problemático, por si mesmo. Combinados, constituem uma verdadeira bomba para o País. Antecipo em duas frases o que pretendo argumentar: o Banco Central, agora blindado da influência do governo, terá carta branca para adotar uma série de medidas fundamentais sobre o regime monetário e cambial do Brasil, já iniciadas ou sinalizadas no próprio projeto. Banco Central autônomo, País dependente e vulnerável.
Leitor, veja bem: a autonomia que a turma da bufunfa prega para o Banco Central não é apenas, como imaginam os incautos, a de conduzir a política monetária de controle da inflação ao abrigo da influência de governantes de horizonte curto. É muito mais do que isso. Na prática, a autonomia formal serve, também, para colocar nas mãos do Banco Central autônomo decisões cruciais para a soberania monetária. Decisões que dizem respeito a aspectos essenciais da relação entre a moeda nacional e as moedas estrangeiras. Decisões que passam a ser tomadas com autonomia pelo Banco Central, sem a ingerência do Conselho Monetário Nacional (CMN), onde o Ministério da Economia, subordinado ao Presidente da República, tem a maioria dos assentos.
Do ponto de vista organizacional, o ponto central, raramente destacado, é a transferência para o Banco Central de atribuições hoje nas mãos do CMN. A diretoria do Banco Central, um grupo de tecnocratas e financistas blindados do governo eleito, muitos deles visceralmente ligados ao mercado financeiro, passa a concentrar poderes e atribuições sem precedentes. Por motivos que expliquei em artigos e comentários recentes e que não vou repetir aqui, isso equivale a transferir ainda mais poder para as mãos das grandes instituições financeiras nacionais e estrangeiras.[2]A turma da bufunfa, penhorada, agradece.
O projeto cambial é complexo e tem muitas implicações. Ao alterar ou revogar um grande número de dispositivos legais, ele representa profunda alteração do arcabouço jurídico do mercado de câmbio. A mais profunda em décadas. Algumas mudanças, que envolvem simplificação ou modernização, são até defensáveis. Mas eles vêm misturados com mudanças estratégicas altamente questionáveis.[3]
Vou tratar de alguns desses aspectos estratégicos que me parecem perigosos, na esperança (a última que morre) de que o Senado se disponha, no mínimo, a promover uma discussão do tema nas comissões ou em audiências públicas, antes de tomar uma decisão final.
Destaco dois aspectos que ameaçam a autonomia nacional e a soberania monetária: a) a liberalização do mercado cambial e dos movimentos de capital; e b) a ampliação do uso da moeda estrangeira no território nacional, inclusive abertura de contas bancárias em dólar.
Com o projeto, desaparecem ou são modificados dispositivos que regulam, ainda que de forma limitada ou apenas potencial, fluxos de capital de diferentes tipos, o que aumenta a conversibilidade da moeda nacional. Concede-se ao Banco Central carta branca para aprofundar esse movimento de liberalização, que pode desembocar em conversibilidade plena do real. Desde os anos 1990, nos governos Collor e FHC, foram adotadas diversas medidas de abertura prematura da conta de capitais do balanço de pagamentos do Brasil, aumentando a vulnerabilidade externa da economia e contribuindo para sucessivas crises cambiais. Tudo indica que a intenção é completar esse serviço.
Uma inovação particularmente problemática é a de autorizar uso mais amplo do dólar e outras moedas estrangeiras no território brasileiro. No contexto latino-americano, o Brasil sempre se destacou por resistir à dolarização da sua economia. É um dos pontos fortes da trajetória brasileira. Mesmo em tempos de inflação alta e hiperinflação, a correção monetária generalizada e a indexação de contratos impediram a dolarização ou limitaram muito o seu alcance, ao oferecer aplicações protegidas contra a corrosão inflacionária e unidades de conta domésticas superiores ao dólar.[4] Evitamos, assim, os desastres que a Argentina e outros vizinhos sofreram com a dolarização. O PL 5.387/19amplia as hipóteses de uso interno do dólar e dá ao Banco Central carta branca para regulamentar contas em moeda estrangeira no País, inclusive quanto aos requisitos e procedimentos para sua autorização e movimentação.
Tudo isso mostra, leitor, o abandono em que se encontra o interesse nacional. Desde o golpe que derrubou a presidente Dilma, Brasília se aliou à Faria Lima e a interesses estrangeiros para implantar reformas regressivas, que tornam o Brasil mais iníquo e mais vulnerável a influências externas, criando obstáculos de difícil superação à retomada do desenvolvimento sustentado com autonomia nacional e justiça social.
*Paulo Nogueira Batista Jr. foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países. Autor, entre outros livros, de O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata (LeYa).
Versão ampliada de artigo publicado na revista CartaCapital em 19 de fevereiro de 2021.
O autor agradece a ajuda de Emílio Chernavsky na discussão do projeto de lei da reforma cambial.
Notas
[1] Para discussões recentes do tema da autonomia e do projeto de lei complementar 19/2019 ver, por exemplo, Nelson Barbosa, “BC: autonomia em relação a quem?”, Folha de S. Paulo, 10 de fevereiro de 2021; e artigo que publiquei em 14 de dezembro de 2020: “Autonomia do Banco Central – um quarto poder?”, disponível no meu portal na internet: <https://www.nogueirabatista.com.br/2020/12/14/autonomia-do-banco-central-um-quarto-poder/>.
[2] Ver comentários em vídeo publicados em dezembro de 2020 no meu canal do Youtube, na aba comentários: “A turma da bufunfa e a porta giratória no Banco Central” e “Autonomia do Banco Central: estão tentando passar mais uma boiada”, disponíveis em:<youtube.nogueirabatista.com.br>. Na aba entrevistas do canal, postei entrevistas de fevereiro sobre a questão da autonomia e a tramitação do projeto de lei na Câmara dos Deputados.
[3] Alguns dos problemas do projeto de reforma cambial foram discutidos em artigo que publiquei quando do seu encaminhamento pelo Executivo ao Congresso: “O Brasil deve avançar na liberalização do mercado de câmbio? Não”, Folha de S. Paulo, 19 de outubro de 2019.
[4] Esse ponto é tecnicamente interessante, mas tem sido esquecido. A menos que a taxa de câmbio obedeça consistentemente a alguma regra de indexação (variação pela inflação interna ou pelo diferencial entre a inflação interna e externa), o dólar é um indexador ineficiente e problemático. Dada a vulnerabilidade do balanço de pagamentos, sempre sujeito a variações dos termos de troca e ao ciclo financeiro internacional, a aplicação de uma regra de indexação à taxa de câmbio mostra-se difícil de sustentar ao longo do tempo. Num regime de câmbio flutuante, a dificuldade de recorrer à moeda estrangeira como unidade de conta e indexador de contratos é ainda maior. Se existem índices gerais de preços considerados confiáveis e o instituto da correção monetária é juridicamente reconhecido, a indexação interna ao nível de preços se mostra mais eficiente do que a indexação ao dólar.