Auguste Rodin

Foto de Carmela Gross
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por LUIZ RENATO MARTINS*

Comentário sobre o catálogo da mostra do escultor francês.

A obra de Rodin (1840-1917) tem raiz no materialismo do século XIX, que, em vertentes distintas, destaca a produtividade autônoma do corpo. Mas, no vasto leque do anti-idealismo, qual é o posto preciso de Rodin?

O catálogo da mostra Rodin (Pinacoteca do Estado de São Paulo) afirma, sumariamente, que o autor “recebe (numa viagem à Itália em 1875) a revelação da escultura de Michelangelo, cuja influência o marcará para sempre”. Tal conjectura supõe um mito originário e, se vê alguma analogia na eloquência dos volumes, oculta contrastes de fundo entre os corpos grandiosos e contorcidos do criador renascentista – tributário da dicotomia cristã entre carne e espírito – e o valor da corporeidade no caso moderno, grandiosa, decerto, mas laica e de fundo imanente.

De fato, o anti-idealismo de Rodin vem no embate com o léxico neoclássico – sem segredos para Rodin, auxiliar de 1870 a 1875 em grandes obras decorativas em Bruxelas. Forma-se, pois, em oposição a dois cânones neoclássicos: a transparência e a idealidade da matéria e a profundidade correlata das imagens, disposta nos relevos narrativos eternizantes, de espírito restaurador.

Concretamente, Rodin transgride a ordem neoclássica pela via do naturalismo. Antevista em O Homem do Nariz Quebrado (1864) – que o Salão recusa – e nítida desde A Idade do Bronze (1876) – que alude à guerra franco-prussiana –, a crueza de Rodin, que conclui a fase belga e abre uma via sua, será tida como decalque ou plágio.

A obra de Rodin, nesse trajeto, pertence certamente ao seu tempo. Coexiste com a fotografia (inventada ao redor de 1820-40) e com ideias como o fisiognomismo na ciência e o naturalismo de Zola. E se confronta com o uso em série do corpo na indústria.

Todavia, a desorientação do catálogo, sem fio condutor, mal deixa entrever tal quadro. E quando trata, por exemplo, do interesse de Rodin pela técnica nascente de reprodução de imagens e da cooperação que obtém de fotógrafos, o faz como se a relação fosse restrita a um apêndice documental das fases da obra. Porém, o recurso ostensivo e recorrente a composições modulares, repetindo figuras em posições diferentes – como depois se tornou usual na arte moderna, especialmente na de raiz construtiva –, mostra que o vínculo de suas esculturas com a indústria e a ideia de reprodução é intrínseco. Nega assim o valor aurático do original e afirma decididamente a era das obras reprodutíveis.

Do naturalismo inicial à liberdade expressiva, elaborada nos 40 anos seguintes, a diretriz imanentista de Rodin põe-se de muitos modos: na figuração de movimentos gratuitos, signos da espontaneidade corporal, e, nos retratos, pela busca de sínteses expressivas – precedidas de uma investigação dos traços físicos e dos hábitos; no teor compacto das obras, destacando a opacidade da matéria, salientada em sua imagem, densa e áspera, no pedestal como solo originário dos trabalhos; no inacabamento das peças que põem à vista as marcas do fazer etc.

Em suma, as noções de reflexividade do corpo e da arte – como forma de reflexão por excelência do corpo; este visto, pois, como matéria reflexiva, gerador espontâneo de produtividade ou potência ativa – alimentam a poética de Rodin. Assim, no Pensador – projeção declarada da figura do autor frente as suas obras –, a forma circular (e não ascensional como na metafísica racionalista) da composição e mais a crispação dos pés como foco de tensão física, visível ainda nas pernas da figura – de acordo com palavras do próprio Rodin, que também se refere à “lentidão do pensamento no cérebro” (p. 56 do catálogo) –, denotam a diretriz materialista.

Rodin, na sua estratégia de ocupação dos espaços públicos e institucionais, por meio de monumentos e outras formas de ação, também antecipou as intervenções de escala “midiática”, hoje usuais. O que lhe possibilitou legar em vida ao Estado francês a sua obra e negociar com este a abertura do Museu Rodin.

A mostra Rodin deixa entrever os dois lados dessas tantas moedas. Assim, o empenho oficial garantiu a presença no Brasil de obras capitais, a magnitude do evento e de sua recepção ampla em museus do centro urbano, mais acessíveis à maioria da população. Entretanto, o catálogo, descurado ao absurdo, revela ausência de atenção especializada. As imagens discrepam umas das outras quanto ao fundo e à iluminação; o uso aberrante da luz distorce todo aspecto original dos trabalhos. O que destoa das belas fotos da coleção de Rodin e da analítica da luz do Impressionismo – que a superfície nuançada de algumas esculturas, como Balzac, não ignora.

Os textos, trechos de procedência díspar, não trazem autoria; o arranjo gráfico não os qualifica ou hierarquiza. Há fotos com legenda errada. Faltam oito fotos de esculturas arroladas. Sobram seis páginas de “mensagens” oficiais, com frases sem nexo e sem revisão, onde surgem afirmações insólitas como: “Temos certeza do notável sucesso (…) junto aos amantes e estudantes de arte (…) artistas e deficientes (sic) de visão”; e o agradecimento ao “Museu Rodin, organizador da mostra e sem o qual ela não teria sido possível”.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP); e autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).

Revisão e assistência de pesquisa: Gustavo Motta.

Publicado originalmente, sob o título “No princípio era a matéria”, no jornal Folha de S. Paulo, em 3 de julho de 1995.

Referência


Vários autores. Auguste Rodin. Tradução: Irene Paternot. Pinacoteca do Estado / Francisco Alves, 141 págs.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Ari Marcelo Solon Luiz Eduardo Soares Érico Andrade Dennis Oliveira João Paulo Ayub Fonseca Daniel Brazil Fernando Nogueira da Costa Ronald Rocha Luiz Bernardo Pericás Lincoln Secco Luiz Carlos Bresser-Pereira Celso Frederico Jean Pierre Chauvin João Feres Júnior Sergio Amadeu da Silveira Gilberto Maringoni Plínio de Arruda Sampaio Jr. Gabriel Cohn Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marjorie C. Marona Ladislau Dowbor Michael Roberts Eugênio Trivinho José Dirceu Andrew Korybko Kátia Gerab Baggio Michel Goulart da Silva Anselm Jappe Flávio Aguiar Milton Pinheiro Leonardo Sacramento Chico Alencar Carlos Tautz Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Antunes Marcelo Módolo Ricardo Abramovay Sandra Bitencourt Heraldo Campos Marcos Aurélio da Silva Vladimir Safatle Marilia Pacheco Fiorillo Paulo Fernandes Silveira Mariarosaria Fabris Samuel Kilsztajn Everaldo de Oliveira Andrade Paulo Martins Manuel Domingos Neto Francisco de Oliveira Barros Júnior Alexandre Aragão de Albuquerque Maria Rita Kehl Jorge Luiz Souto Maior Ronald León Núñez Armando Boito Luis Felipe Miguel Juarez Guimarães Francisco Fernandes Ladeira Annateresa Fabris Ricardo Fabbrini Bernardo Ricupero Andrés del Río André Singer Luiz Roberto Alves Walnice Nogueira Galvão Dênis de Moraes Liszt Vieira Berenice Bento Marcelo Guimarães Lima Eugênio Bucci Denilson Cordeiro Eleonora Albano Bento Prado Jr. Thomas Piketty Lorenzo Vitral Paulo Capel Narvai Celso Favaretto João Carlos Salles José Luís Fiori Henry Burnett Rodrigo de Faria José Raimundo Trindade Marcos Silva Claudio Katz Alexandre de Lima Castro Tranjan Antonino Infranca Jean Marc Von Der Weid João Carlos Loebens Salem Nasser Chico Whitaker Bruno Machado Vanderlei Tenório José Geraldo Couto Daniel Costa Lucas Fiaschetti Estevez Gilberto Lopes João Sette Whitaker Ferreira Fernão Pessoa Ramos José Costa Júnior Francisco Pereira de Farias Eduardo Borges Luiz Werneck Vianna Henri Acselrad Antônio Sales Rios Neto Leonardo Boff João Adolfo Hansen Matheus Silveira de Souza Luiz Marques Atilio A. Boron Renato Dagnino Leonardo Avritzer Otaviano Helene Elias Jabbour Alexandre de Freitas Barbosa Vinício Carrilho Martinez Marcus Ianoni Leda Maria Paulani Flávio R. Kothe Michael Löwy Paulo Sérgio Pinheiro Luiz Renato Martins Remy José Fontana Priscila Figueiredo Boaventura de Sousa Santos Rubens Pinto Lyra André Márcio Neves Soares Slavoj Žižek Eliziário Andrade Gerson Almeida Daniel Afonso da Silva Fábio Konder Comparato Yuri Martins-Fontes Mário Maestri Carla Teixeira Rafael R. Ioris Airton Paschoa Tales Ab'Sáber Alysson Leandro Mascaro Marilena Chauí Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Valerio Arcary Tadeu Valadares Igor Felippe Santos José Machado Moita Neto Julian Rodrigues Antonio Martins Ronaldo Tadeu de Souza Luís Fernando Vitagliano Manchetômetro Ricardo Musse Jorge Branco João Lanari Bo Afrânio Catani Eleutério F. S. Prado José Micaelson Lacerda Morais Caio Bugiato Tarso Genro Osvaldo Coggiola Anderson Alves Esteves Benicio Viero Schmidt Luciano Nascimento

NOVAS PUBLICAÇÕES