Auguste Rodin

Foto de Carmela Gross
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Por LUIZ RENATO MARTINS*

Comentário sobre o catálogo da mostra do escultor francês.

A obra de Rodin (1840-1917) tem raiz no materialismo do século XIX, que, em vertentes distintas, destaca a produtividade autônoma do corpo. Mas, no vasto leque do anti-idealismo, qual é o posto preciso de Rodin?

O catálogo da mostra Rodin (Pinacoteca do Estado de São Paulo) afirma, sumariamente, que o autor “recebe (numa viagem à Itália em 1875) a revelação da escultura de Michelangelo, cuja influência o marcará para sempre”. Tal conjectura supõe um mito originário e, se vê alguma analogia na eloquência dos volumes, oculta contrastes de fundo entre os corpos grandiosos e contorcidos do criador renascentista – tributário da dicotomia cristã entre carne e espírito – e o valor da corporeidade no caso moderno, grandiosa, decerto, mas laica e de fundo imanente.

De fato, o anti-idealismo de Rodin vem no embate com o léxico neoclássico – sem segredos para Rodin, auxiliar de 1870 a 1875 em grandes obras decorativas em Bruxelas. Forma-se, pois, em oposição a dois cânones neoclássicos: a transparência e a idealidade da matéria e a profundidade correlata das imagens, disposta nos relevos narrativos eternizantes, de espírito restaurador.

Concretamente, Rodin transgride a ordem neoclássica pela via do naturalismo. Antevista em O Homem do Nariz Quebrado (1864) – que o Salão recusa – e nítida desde A Idade do Bronze (1876) – que alude à guerra franco-prussiana –, a crueza de Rodin, que conclui a fase belga e abre uma via sua, será tida como decalque ou plágio.

A obra de Rodin, nesse trajeto, pertence certamente ao seu tempo. Coexiste com a fotografia (inventada ao redor de 1820-40) e com ideias como o fisiognomismo na ciência e o naturalismo de Zola. E se confronta com o uso em série do corpo na indústria.

Todavia, a desorientação do catálogo, sem fio condutor, mal deixa entrever tal quadro. E quando trata, por exemplo, do interesse de Rodin pela técnica nascente de reprodução de imagens e da cooperação que obtém de fotógrafos, o faz como se a relação fosse restrita a um apêndice documental das fases da obra. Porém, o recurso ostensivo e recorrente a composições modulares, repetindo figuras em posições diferentes – como depois se tornou usual na arte moderna, especialmente na de raiz construtiva –, mostra que o vínculo de suas esculturas com a indústria e a ideia de reprodução é intrínseco. Nega assim o valor aurático do original e afirma decididamente a era das obras reprodutíveis.

Do naturalismo inicial à liberdade expressiva, elaborada nos 40 anos seguintes, a diretriz imanentista de Rodin põe-se de muitos modos: na figuração de movimentos gratuitos, signos da espontaneidade corporal, e, nos retratos, pela busca de sínteses expressivas – precedidas de uma investigação dos traços físicos e dos hábitos; no teor compacto das obras, destacando a opacidade da matéria, salientada em sua imagem, densa e áspera, no pedestal como solo originário dos trabalhos; no inacabamento das peças que põem à vista as marcas do fazer etc.

Em suma, as noções de reflexividade do corpo e da arte – como forma de reflexão por excelência do corpo; este visto, pois, como matéria reflexiva, gerador espontâneo de produtividade ou potência ativa – alimentam a poética de Rodin. Assim, no Pensador – projeção declarada da figura do autor frente as suas obras –, a forma circular (e não ascensional como na metafísica racionalista) da composição e mais a crispação dos pés como foco de tensão física, visível ainda nas pernas da figura – de acordo com palavras do próprio Rodin, que também se refere à “lentidão do pensamento no cérebro” (p. 56 do catálogo) –, denotam a diretriz materialista.

Rodin, na sua estratégia de ocupação dos espaços públicos e institucionais, por meio de monumentos e outras formas de ação, também antecipou as intervenções de escala “midiática”, hoje usuais. O que lhe possibilitou legar em vida ao Estado francês a sua obra e negociar com este a abertura do Museu Rodin.

A mostra Rodin deixa entrever os dois lados dessas tantas moedas. Assim, o empenho oficial garantiu a presença no Brasil de obras capitais, a magnitude do evento e de sua recepção ampla em museus do centro urbano, mais acessíveis à maioria da população. Entretanto, o catálogo, descurado ao absurdo, revela ausência de atenção especializada. As imagens discrepam umas das outras quanto ao fundo e à iluminação; o uso aberrante da luz distorce todo aspecto original dos trabalhos. O que destoa das belas fotos da coleção de Rodin e da analítica da luz do Impressionismo – que a superfície nuançada de algumas esculturas, como Balzac, não ignora.

Os textos, trechos de procedência díspar, não trazem autoria; o arranjo gráfico não os qualifica ou hierarquiza. Há fotos com legenda errada. Faltam oito fotos de esculturas arroladas. Sobram seis páginas de “mensagens” oficiais, com frases sem nexo e sem revisão, onde surgem afirmações insólitas como: “Temos certeza do notável sucesso (…) junto aos amantes e estudantes de arte (…) artistas e deficientes (sic) de visão”; e o agradecimento ao “Museu Rodin, organizador da mostra e sem o qual ela não teria sido possível”.

*Luiz Renato Martins é professor-orientador dos PPG em História Econômica (FFLCH-USP) e Artes Visuais (ECA-USP); e autor, entre outros livros, de The Long Roots of Formalism in Brazil (Haymarket/ HMBS).

Revisão e assistência de pesquisa: Gustavo Motta.

Publicado originalmente, sob o título “No princípio era a matéria”, no jornal Folha de S. Paulo, em 3 de julho de 1995.

Referência


Vários autores. Auguste Rodin. Tradução: Irene Paternot. Pinacoteca do Estado / Francisco Alves, 141 págs.

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