Por THEODOR W. ADORNO*
Uma conferência radiofônica pronunciada em 1968.
Nós, os representantes mais velhos do que veio a ser chamado de Escola de Frankfurt, temos sido recentemente acusados de resignação. Teríamos desenvolvido elementos de uma teoria crítica da sociedade, mas não estaríamos dispostos a extrair dela consequências práticas. Tampouco teríamos fornecido planos de ação ou mesmo apoiado as ações daqueles que se sentiam estimulados pela teoria crítica.
Deixo de lado a questão de saber se isso pode ser exigido de pensadores teóricos, que são, de certo modo, instrumentos sensíveis e, de modo algum, à prova de choque. A determinação que lhes coube na sociedade baseada na divisão social do trabalho pode ser questionável e, talvez, eles mesmos tenham sido deformados [deformiert] por ela. Mas eles também foram formados [geformt] por ela; decerto, não poderiam suprimir, por mera vontade, aquilo que se tornaram.
Não pretendo negar o momento de fraqueza subjetiva inerente ao confinamento à teoria. Considero o lado objetivo mais importante. A objeção, facilmente repetida, é mais ou menos a seguinte: aquele que a esta altura duvida da transformação radical da sociedade e que, por isso, não participa de ações espetaculares e violentas, nem as recomenda, teria renunciado. Ele não considera realizável aquilo que imagina; na verdade nunca quis realizá-lo. Na medida em que deixa o estado de coisas como está, ele o aprova sem confessar.
A distância da práxis é suspeita aos olhos de todos. Quem não arregaça as mangas e não quer sujar as mãos é desacreditado, como se a aversão a isso não fosse legítima e desvirtuada somente pelo privilégio. A desconfiança diante daquele que desconfia da práxis se dissemina desde aqueles que repetem para quem está do outro lado o velho lema “chega de conversa” até o espírito objetivo da publicidade, que propaga a imagem [Bild] – o ideal [Leitbild], como o chamam – do homem ativo e atuante; seja ele líder empresarial ou esportista. Todos devem participar. Quem apenas pensa, quem se retira, seria fraco, covarde, virtualmente um traidor. Sem que eles o percebam, o clichê hostil do intelectual opera profundamente no interior do grupo daqueles oposicionistas, que são, por sua vez, xingados de intelectuais.
Os ativistas pensantes respondem: deveria ser transformada justamente, entre outras coisas, o próprio estado de separação entre teoria e práxis. A práxis seria necessária precisamente para nos livrarmos da dominação dos homens práticos e do ideal prático. Mas logo surge daí uma proibição de pensar. Um mínimo basta para que a resistência à repressão se volte de modo repressivo contra aqueles que, por menos que queiram glorificar o próprio ser [das Selbstsein], não renunciam àquilo que se tornaram.
A tão proclamada unidade entre teoria e práxis tem a tendência de passar para a predominância da práxis. Algumas vertentes difamam a própria teoria como uma forma de opressão; como se a práxis não estivesse ligada a ela de modo muito mais imediato. Em Marx, a doutrina dessa unidade era animada pela possibilidade presente da ação – não realizada já naquele momento. Hoje se delineia antes o contrário. As pessoas se aferram a ações por apreço à impossibilidade da ação.
Todavia, já em Marx se oculta aí uma ferida. Talvez ele tenha exposto a décima primeira tese sobre Feuerbach de modo tão autoritário porque ele mesmo não estava totalmente certo dela. Em sua juventude, ele reivindicara a “crítica impiedosa de todo o existente [rücksichtslose Kritik alles Bestehenden]”. Porém, ele troçava da crítica. Mas seu famoso chiste sobre os jovens hegelianos, o termo “crítica crítica”, foi um tiro n’água, desfazendo-se em mera tautologia.
A primazia forçada da práxis silenciou irracionalmente a crítica, que o próprio Marx exercia. Na Rússia e na ortodoxia de outros países, a piada maldosa sobre a crítica crítica tornou- se instrumento para que o existente [das Bestehende] pudesse acomodar-se de modo terrível. Práxis significava tão-somente: produção crescente de meios de produção; a crítica não era mais tolerada, a não ser aquela que dizia que ainda não se trabalhava o suficiente. Com facilidade, a subordinação da teoria à práxis se inverteu no serviço a uma opressão renovada.
O pensamento, o esclarecimento consciente de si mesmo, ameaça desencantar a pseudo-realidade na qual se move o ativismo, segundo a formulação de Habermas. Só se pode tolerar esse ativismo porque ele é tomado como pseudo-realidade. Enquanto postura subjetiva, a pseudo-realidade é conjugada à pseudo-atividade – um fazer que se dissimula e é ativado graças à própria publicity, sem admitir em que medida ele serve como satisfação substitutiva, elevando-se a um fim em si mesmo. Encarcerados querem desesperadamente sair.
A intolerância repressiva contra o pensamento que não vem imediatamente acompanhado da instrução para a ação funda-se no medo. O pensamento não tutelado e a atitude que não permite barganhá-lo devem ser temidos, pois, no fundo, sabe-se o que não se deve admitir: que o pensamento tem razão. Um antigo mecanismo burguês, que os iluministas [Aufklärer] do século XVIII conheciam bem, se repete, mas de modo inalterado: o sofrimento causado por um estado negativo, desta vez, por uma realidade bloqueada, se torna fúria contra aquele que o exprime.
Em tais situações, não se pensa mais, ou se pensa somente com pressupostos fictícios. Na práxis hipostasiada, apenas se reage e, por isso mesmo, de maneira falsa. Somente o pensamento poderia encontrar uma saída, mais precisamente um pensamento para o qual não se prescreve aquilo que dele deveria resultar, como tão frequentemente ocorre naquelas discussões em que se predetermina quem deve ter razão e que, portanto, não avançam a questão, mas se degeneram inevitavelmente em questões táticas.
Se as portas estão obstruídas, então o pensamento, menos ainda, deve ser interrompido. Ele deveria primeiro analisar as razões e então extrair as consequências. Cabe a ele não aceitar a situação como definitiva. Ela se transformaria, caso isso seja possível, somente através de uma compreensão [Einsicht] irrestrita. O salto na práxis não cura o pensamento da resignação enquanto ele for pago com o saber secreto de que este não é o caminho.
A pseudo-atividade é, em geral, a tentativa de salvar enclaves de imediaticidade em meio a uma sociedade completamente mediada e endurecida. Tais tentativas são racionalizadas dizendo-se que a pequena transformação seria uma etapa do longo caminho em direção à transformação do todo. O modelo fatal da pseudo-atividade é o “do it yourself”, o faça você mesmo: atividades em que se executa aquilo que, já há muito tempo, pode ser melhor executado com o auxílio da produção industrial, apenas para despertar nos indivíduos não-livres, paralisados em sua espontaneidade, a confiança de que são importantes. A estupidez do “faça você mesmo” na produção de bens materiais e também em muitos reparos é evidente. Ela não é, entretanto, total. Na escassez dos assim chamados services, prestações de serviços, as medidas que uma pessoa privada toma, algumas vezes desnecessárias segundo o nível técnico, cumprem uma finalidade quase racional.
O “faça você mesmo” na política não é exatamente do mesmo tipo. Os próprios homens são a sociedade que impenetravelmente faz frente a eles. A confiança na ação limitada de pequenos grupos lembra a espontaneidade, que se atrofia sob o todo enrijecido sem a qual este não pode se transformar em um outro. O mundo administrado tende a asfixiar toda espontaneidade, e por fim a canalizá-la em pseudo-atividade. Pelo menos, isso não funciona tão sem atritos como os agentes do mundo administrado esperavam.
Entretanto, a espontaneidade não deve ser hipostasiada, tampouco separada de sua situação objetiva e idolatrada como o próprio mundo administrado. Do contrário, o machado em casa, que nunca dispensa o carpinteiro, quebra a próxima porta e a tropa de choque toma posição. Também ações políticas podem rebaixar-se a pseudo-atividades, a teatro. Não é por acaso que os ideais de ação imediata, eles mesmos propaganda do ato, são ressuscitados depois que as organizações, outrora progressistas, se integraram docilmente e desenvolveram, em todos os países do mundo, traços daquilo contra o qual uma vez se opuseram. Mas, assim, a crítica ao anarquismo não chegou a caducar. Seu retorno é aquele de um fantasma. A impaciência ante a teoria, que nela se manifesta, não leva o pensamento para além de si mesmo. Na medida em que ela o esquece, fica aquém do pensamento.
Isso é facilitado para o indivíduo por meio de sua capitulação diante do coletivo com o qual ele se identifica. Ele é poupado de reconhecer sua impotência; os poucos tornam-se muitos. Esse ato, e não o pensamento resoluto, é resignado. Não rege nenhuma relação transparente entre os interesses do Eu e o coletivo, a que ele se entrega. O Eu deve se apagar para se tornar parte da eleição da graça do coletivo. Implicitamente se ergue um imperativo categórico pouco kantiano: tu deves assinar embaixo.
O sentimento de nova proteção [Geborgenheit] é pago com o sacrifício do pensamento autônomo. É um consolo enganoso a ideia de que se pensaria melhor no contexto da ação coletiva: o ato de pensar, como mero instrumento de ações, é embotado como a razão instrumental em geral. Nenhuma forma [Gestalt] superior de sociedade é concretamente visível neste momento: por isso, há algo regressivo naquele que se comporta como se isso estivesse ao alcance da mão. Mas quem regride, segundo Freud, não alcançou a meta de sua pulsão [Triebziel]. A degeneração regressiva [Rückbildung] é objetivamente renúncia, mesmo se ela se considera o contrário disto e propaga ingenuamente o princípio do prazer.
Frente a isto, o pensador crítico descompromissado, que não falseia a consciência e nem se deixa aterrorizar a agir, é aquele que na verdade não desiste. Pensar não é a reprodução intelectual daquilo que, em todo caso, é. Enquanto o pensamento não cessar, ele guarda a possibilidade. Sua insaciedade, sua aversão a deixar-se enganar, recusa a tola sabedoria da resignação. Nele, o momento utópico é tão mais forte quanto menos ele se objetivar em utopia – também isso uma forma de regressão –, de modo a sabotar sua realização.
O pensamento aberto aponta para além de si mesmo. Sendo ele próprio um comportamento, uma figura [Gestalt] da práxis, ele tem mais afinidade com a práxis transformadora do que aquele que obedece em nome da práxis. Na verdade, diante de todo conteúdo particular, o pensamento já é a força para a resistência e só arduamente foi alienado dela.
Um tal conceito enfático de pensamento certamente não é encoberto nem pelas relações existentes, nem por fins a serem alcançados, nem por quaisquer batalhões. O que fora uma vez pensado, pode ser reprimido, esquecido, levado embora. Todavia, ele não se deixa persuadir que algo daquilo sobrevive. Pois o pensamento possui o momento do universal. O que foi pensado de forma precisa deve ser pensado por outros, em outros lugares: essa confiança acompanha ainda o pensamento mais solitário e impotente.
Quem pensa não se enfurece na crítica: o pensamento sublimou a fúria. Uma vez que aquele que pensa não força a si mesmo, ele também não quer forçar os outros. A felicidade que surge em seus olhos é a felicidade da humanidade. A tendência universal de repressão vai contra o pensamento enquanto tal. Ele é felicidade, mesmo ali onde determina a infelicidade: na medida em que a expressa. Somente assim a felicidade penetra na infelicidade universal. Quem não permite isto definhar não se resignou.
*Theodor W. Adorno (1903-1969) foi professor na Universität Frankfurt (Alemanha). Autor, entre outros livros, de A personalidade autoritária (Unesp).
Tradução: Felipe Catalani.
Publicado originalmente nos Cadernos de filosofia alemã, vol. 23, no. 1.