Por TARSO GENRO*
A potência da ação hoje está em compor uma voz pública comum contra o fascismo, como apontaram os movimentos de protesto e indignação deste fim de semana em todo o Brasil
Em um conhecido livro de literatura infantil está o relato sobre o Pequeno Príncipe (Saint-Exupéry, 1943), que chegou a um diminuto planeta, onde habitava um “faroleiro”, que cuidava de um farol a ser aceso quando caía a noite. Embora a rotação do pequeno planeta – nos últimos tempos – tivesse aumentado “vertiginosamente”, passando da noite para dia “em breves instantes, as regras para acendê-lo e apagá-lo”, queixava-se o faroleiro, “continuavam as mesmas”.
A realidade material mudava, portanto, mas as normas que o faroleiro deveria cumprir permaneciam estanques. No pequeno e valioso livro La eficacia del derecho (Centro de Estudios Constitucionales, Madrid 1990, pg. 96) onde está a referência a Saint-Exupéry, o Professor Pablo Navarro, ao escrever sobre a “dinâmica da realidade” sobre o Direito, construiu uma brilhante parábola – a partir da literatura – sobre as mudanças do mundo real e os seus efeitos sobre as normas.
Avaliou no seu texto que, nos espaços onde os seres humanos vivem o cotidiano e exercem a sua influência, a eficácia das normas no Estado de Direito só permanece como “dever ser” válido, quando mantém a sua capacidade de organizar a vida comum através dos “sistemas jurídicos”, que é uma “atividade especificamente humana”. O problema, todavia, começa quando a política feita a partir do Estado vence o Direito e torna-o um adorno secundário e formal, por dentro do qual fluem decisões ilegítimas de uma autoridade despótica.
No Brasil de Bolsonaro, a parábola do jurista se adequa a um tipo de Príncipe satânico, através de formas políticas que cativam uma parte da vida comum: estas formas ainda não ensejaram uma mudança nas normas da Constituição, mas vêm mudando a vida política e social, deslocando-a, gradativamente, para a selvageria.
Ao entronizar um modo perverso do fazer político, fora das regras da Constituição e da Civilização, e sem modificar as leis, Bolsonaro foi capaz de naturalizar para uma parte significativa da sociedade, os 500 mil mortos que testemunham este movimento: é a ruína e o sucesso, num só processo de demolição da solidariedade e de esvaziamento dos laços afetivos mínimos que fundamentam a vida comum.
Bolsonaro, com sua perversidade infinita, faz com seus atos rápidos e desconexos no tempo, um fluxo veloz e personalíssimo e assim torna-se o Príncipe e o Tempo, o Mago e a Ciência (falsificada), alicerçados em sucessivos movimentos de ódio, estupidez e indiferença perante a vida. Como isso foi possível, sinceramente, ainda não compreendi completamente, mas podemos afirmar que a estupidez na História é, hoje – no Brasil – uma categoria central da política, que devemos desvendar para enfrentar a barbárie.
O planeta brasileiro girou mais depressa pelo verbo do Príncipe e as normas que organizam a vida permanecem evidentes, mas sem eficácia. É uma estória de Pequeno Príncipe ao contrário, que não se queixa da realidade do planeta-Brasil em mudança, pois conseguiu mudar – por fora da lei – as normas civilizatórias de convício democrático e de relacionamento social: a estupidez venceu a cultura e a ambição venceu a solidariedade necessária para uma vida coletiva minimamente digna.
Todos os homens são “intelectuais”, para Gramsci, embora nem todos exerçam atividades intelectuais. E dentre os que as exercem nem todos são “organizadores” da cultura ou se notabilizam por saber a importância da política e os seus efeitos na vida social: alguns são indiferentes, outros são estúpidos, mas – do ponto de vista do humanismo democrático – todos são relevantes, porque contribuem para o “todo” orgânico da vida, por ação ou omissão.
Os meus leitores e debatedores sabem que sempre busco fontes heterodoxas para compreender o direito e a política e escrever com elas, não à margem das interpretações dos meus colegas advogados, politólogos e juristas, mas tentando contribuir – a partir de outros ângulos – para novos horizontes de análise. Falar sobre a “indiferença” e a “estupidez”, portanto, como categorias da política, tem importância e atualidade na conjuntura de crise que vivemos, pois ambas estão contidas nas ações políticas estúpidas e omissões indiferentes, que mantém Bolsonaro no poder depois de 500 mil mortes.
Vejam que a grande mídia, agora aderindo novamente à democracia do “Estado de Direito” formal, é indiferente (ou apoia) as reformas que são a essência da sustentação que ele, Bolsonaro, recebe do grande capital. E ele, agarrado nas reformas, mantém a estupidez política que é também revelada na sua indiferença com a vida de milhões, amparada na sua visão fascista de mundo.
“A indiferença é o peso morto da História”, dizia Gramsci. Nesta indiferença – para ele – está o ponto em que os homens congelam “a própria estupidez”, aceitando a sua “impotência para a ação”. Aqui está, talvez – a diferença entre o pensamento de Gramsci, voltado para a transformação da sociedade pela ação política das classes com interesses comuns e a filosofia especulativa de Benedetto Croce – sua contraparte à época – que apenas “constata” a história supostamente “feita pelo pensamento”, ignorando o curso material das demandas reais dos homens comuns.
A potência da ação hoje está em compor uma voz pública comum contra o fascismo, como apontaram os movimentos de protesto e indignação deste fim de semana em todo o Brasil. E o bloqueio da estupidez virá da organização desta potência unitária – uma Frente Política contra o fascismo – que restaure a dignidade do trabalho, a retomada das funções públicas do Estado e as políticas de combate à desigualdade, à fome e a destruição ambiental do país. É possível vencer, o absurdo não se fixa na consciência até o fim dos tempos.
*Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.