Messias genocida, Lázaro endemoniado

Cultura Tolita-Tumaco, Figura sentada, século 1 aC-século 1 dC.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por MARIANA LINS COSTA*

Superstições dostoievskianas

“– É estranho que o senhor insista nisso quando eu já lhe disse que vejo […] é claro que vejo, vejo como estou vendo o senhor… […]– É mais provável que seja uma doença, entretanto… — Entretanto o quê? […] vou lhe dizer a sério e descaradamente: acredito no demônio, acredito canonicamente, no demônio em pessoa, não na alegoria, e não tenho nenhuma necessidade de inquirir ninguém, eis tudo” (Dostoiévski. Os demônios).

Talvez estejamos próximos de compreender o que Dostoiévski quis dizer quando afirmou que aquilo que, sob os parâmetros do bom senso, tende a ser descartado como fantástico e excepcional, consiste, boa parte das vezes, na própria essência do real. Como talvez estejamos igualmente mais próximos do porquê de, para a defesa dessa sua compreensão, ele ter reivindicado não a religião (como se sabe ele se autodeclarava cristão ortodoxo), mas os próprios fatos relatados diariamente nos jornais; posto que, segundo ele, os fatos mesmos, “na medida em que são fatos”, demonstravam por A + B, que o fantástico e excepcional “ocorrem o tempo todo e a cada minuto, e não são de modo algum excepcionais”.[i] Assim, se esse gigante da literatura declarou que a sua época era “mais literária” do que as precedentes,[ii] isso se devia não tanto a uma maior presença de aberrações e coincidências extraordinárias, que já há muito eram elas mesmas ordinárias, mas à ligação cada vez mais óbvia e evidente entre todos os assuntos gerais e particulares: “Leia os jornais, por favor, hoje em dia não se pode fazer de outro modo, não porque seja moda, mas porque está se tornando cada vez mais forte e cada vez mais óbvia a evidente ligação entre todos os assuntos gerais e particulares”.[iii]

E aí é que a coisa chega a nós, brasileiros, estupefatos, neste primeiro semestre de 2021. Pois se já parecia excepcional o suficiente que o nacionalmente conhecido psiquiatra forense Guido Palomba tivesse vindo a público, após aplicar os seus conhecimentos psiquiátricos à política, para oferecer à nação a “hipótese diagnóstica” de que Bolsonaro é clinicamente um psicopata[iv] – que, numa coincidência estranha e terrível, teve esse seu traço hiperpotencializado com uma presidência em meio a uma pandemia mundial (como se a ocasião viesse ao encontro do genocida); com Lázaro Barbosa agora conhecido como “serial killer do DF”, temos nas notícias de jornais como que um conto de horror do que Bolsonaro, também factualmente, tenta elevar a épico de caráter absolutamente grotesco. Conto ou épico, fato é que o ticket que permitirá a esse estranho Lazáro e a esse estranho Messias terem, além de nos jornais, os seus nomes grafados nos livros sangrentos da História é a magnitude do banho de sangue que eles claramente se mostraram mais do que dispostos a abrir as comportas. Em termos dostoievskianos, poder-se-ia, então, lançar, a seguinte “hipótese diagnóstica”: a única maneira de um “piolho estético” se fazer, digamos assim, algo semelhante a um “Napoleão” é tão somente o grau de crueldade que está disposto a lançar mão.[v] Que isso seja infame não é algo que fira o gosto de todos, afinal se não fosse pelas atrocidades, como Bolsonaro, um deputado e militar até então medíocre, poderia ser louvado nas ruas como Mito? Como o miserável Lázaro Barbosa poderia aparecer nos trending topics do Twitter comparado a ninguém menos do que Rambo? Tal como nos esclarece o deveras belo herói de Os demônios: “se for para cometer algum crime ou, o principal, uma desonra, ou seja, uma ignomínia, que seja muito infame e (…) engraçada, de sorte que as pessoas venham a lembrar-se dela por mil anos e por mil anos repudiá-la”.[vi]

Apresenta-se a nós, então, como uma espécie de triste charada e piada trágica e autoprofética, que o Messias presidente, no dia em que foram registradas 500.000 mil mortes por covid-19, tenha silenciado sobre as vítimas com cujo sangue tem suja as próprias mãos, para homenagear os policiais que correm no encalço de um endemoniado Lázaro pelo motivo de ele também ter sujas de sangue as próprias mãos.[vii] Inclusive, seria mesmo o caso de nos tranquilizarmos ante a declaração do major da polícia militar do Distrito Federal, veiculada recentemente na impressa, de que “Se ele [Lázaro] é a força satânica, as forças de segurança são os anjos de Deus”;[viii] se não soubéssemos que boa parte desses mesmos “anjos de Deus” compartilha da doutrina do Messias presidente que segundo outros incontáveis fatos, para além da hipótese-diagnóstica de Guido Palomba, é sem qualquer metáfora ou licença poética o verdadeiro “serial killer do DF” dada a incomparabilidade de milhares de mortes em série e diárias.[ix]

Como se coadjuvantes de um absurdo e tenebroso evangelho, testemunhamos, então, ao acompanhar os jornais, a existência de um Lázaro que ao invés de exorcizado ou ressuscitado, se os anjos forem bem sucedidos, corre o risco de levar um tiro na cabecinha, como diria o agora Judas Wilson Witzel, sob o seu manto farisaico de democrata – que, diga-se de passagem, anda bem em voga na CPI da Covid, da qual, como se sabe, uma das seções foi recentemente suspensa para que o seu sumo sacerdote Omar Aziz se banqueteasse com o milagre da multiplicação das pizzas que posa combater,[x] comprado com o “sim” à privatização da Eletrobrás.[xi] Estranho tempo esse nosso! Não parece um equívoco aventar que ele também é mais literário do que aqueles que lhe precedeu. Faz até lembrar o que disse aquele outro Messias que ressuscitou aquele outro Lázaro, quando na frente do templo dos fariseus: “Os mestres da lei e os fariseus se assentam na cadeira de Moisés. Obedeçam-lhes e façam tudo o que eles lhes dizem. Mas não façam o que eles fazem, pois não praticam o que pregam”;[xii] faz lembrar o que disse o próprio demônio, o espírito imundo, ao anunciar o seu nome: “Legião”, “porque somos muitos”.[xiii]

Que os bons ventos da razão, que por ora andam parados, nos levem para longe das superstições! Pois no meio de todo esse grotesco fantástico e brutalidade excepcional às vezes até parece ser o caso de suspeitar que Roberto Alvim – aquele mesmo que pretendeu inaugurar o “renascimento” do teatro brasileiro coincidentemente com uma montagem de Os demônios[xiv]  talvez não tenha mesmo de todo agido de má-fé quando denunciou que o diabo em pessoa foi quem o engazopou a ponto de fazê-lo veicular uma imitação da propaganda nazista sem que percebesse.[xv]

*Mariana Lins Costa é pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe.

Parte das considerações iniciais aqui presentes estão dispostas na série “Bolsonaro n’Os demônios de Dostoiévski” publicadas pelo o jornal O partisano.

Notas


[i] Dostoiévski apud Frank, J. Dostoiévski: os anos milagrosos, 1865-1871. São Paulo: Edusp, 2003, p. 463.

[ii] Dostoiévski apud Moser, C. A. “Dostoevsky and the aesthetics of journalism”. Dostoevsky’s Studies, vol. 3, 1982, p. 29.

[iii] Dostoiévski apud Frank, J. Dostoiévski: os anos milagrosos, 1865-1871, p. 327.

[iv] https://revistaforum.com.br/politica/guido-palomba-reconhecido-psiquiatra-forense-diz-que-bolsonaro-tem-tracos-de-psicopatia/

[v] Na obra Crime e castigo, o herói Raskólnikov comete um assassinato brutal de modo a se provar para si mesmo um homem tão extraordinário quanto um Napoleão e, com isso, escapar da sua condição de, segundo ele, “piolho estético”. De todo modo, sendo mais sensível e moral do que desejaria, Raskólnikov não consegue se livrar da culpa pelo assassinato, o que ao final do romance o leva a confessar o seu crime.

[vi] Dostoiévski. Os demônios, p. 237.

[vii] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/06/sem-mencionar-500-mil-mortos-ou-protestos-bolsonaro-homenageia-policiais-em-video.shtml

[viii] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2021/06/15/se-ele-e-satanico-forcas-de-seguranca-sao-anjos-diz-major-sobre-lazaro.htm

[ix] https://www.em.com.br/app/colunistas/ricardo-kertzman/2021/06/20/interna_ricardo_kertzman,1278565/comparar-bolsonaro-com-o-serial-killer-lazaro-seria-exagero.shtml

[x] https://istoe.com.br/omar-aziz-a-cpi-da-covid-nao-vai-acabar-em-kibe-esfiha-ou-pizza/

[xi] https://www.cartacapital.com.br/cartaexpressa/privatizacao-da-eletrobras-confira-como-votou-cada-senador/

[xii] Mateus 23:2,3

[xiii] Marcos 5:9

[xiv] https://oglobo.globo.com/cultura/teatro/promover-renascimento-do-teatro-brasileiro-nossa-missao-agora-diz-roberto-alvim-23828365

[xv] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2020/01/20/ex-secretario-que-plagiou-nazista-diz-desconfiar-de-acao-satanica.htm

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Denilson Cordeiro Eduardo Borges Vladimir Safatle Flávio R. Kothe Alexandre de Freitas Barbosa Antonino Infranca Chico Whitaker Kátia Gerab Baggio Tarso Genro José Dirceu Daniel Brazil José Costa Júnior Antônio Sales Rios Neto João Carlos Salles Paulo Sérgio Pinheiro José Geraldo Couto Slavoj Žižek Afrânio Catani Rafael R. Ioris Rubens Pinto Lyra Boaventura de Sousa Santos Francisco Fernandes Ladeira José Luís Fiori Valerio Arcary Berenice Bento Eleonora Albano Flávio Aguiar Maria Rita Kehl Marcos Silva Gerson Almeida Airton Paschoa Marilena Chauí Armando Boito Juarez Guimarães Carlos Tautz Ronald León Núñez Celso Frederico Jean Pierre Chauvin Leonardo Avritzer Marcelo Módolo Manchetômetro Celso Favaretto Michael Roberts Valerio Arcary Julian Rodrigues Ronald Rocha Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ricardo Antunes Bento Prado Jr. Luiz Roberto Alves Annateresa Fabris Jorge Luiz Souto Maior Thomas Piketty Henry Burnett Elias Jabbour Eleutério F. S. Prado Chico Alencar João Lanari Bo Carla Teixeira Vanderlei Tenório Luís Fernando Vitagliano Ladislau Dowbor Fernão Pessoa Ramos Érico Andrade Paulo Nogueira Batista Jr Alexandre de Lima Castro Tranjan Tales Ab'Sáber Luiz Eduardo Soares Marcus Ianoni Leonardo Boff Alysson Leandro Mascaro Heraldo Campos Dennis Oliveira Liszt Vieira Eliziário Andrade Dênis de Moraes Ronaldo Tadeu de Souza André Singer José Micaelson Lacerda Morais Benicio Viero Schmidt Jorge Branco Paulo Fernandes Silveira Francisco de Oliveira Barros Júnior Priscila Figueiredo Eugênio Trivinho Daniel Costa João Paulo Ayub Fonseca José Machado Moita Neto Atilio A. Boron Lucas Fiaschetti Estevez Gabriel Cohn Andrew Korybko Milton Pinheiro Sergio Amadeu da Silveira Osvaldo Coggiola Remy José Fontana Michael Löwy Luiz Renato Martins Luiz Marques Walnice Nogueira Galvão Francisco Pereira de Farias Manuel Domingos Neto Ari Marcelo Solon Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Paulo Capel Narvai Ricardo Abramovay Gilberto Lopes Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Ricardo Fabbrini Gilberto Maringoni Tadeu Valadares Marcos Aurélio da Silva Anselm Jappe Daniel Afonso da Silva Mário Maestri Igor Felippe Santos Paulo Martins Jean Marc Von Der Weid João Adolfo Hansen Fernando Nogueira da Costa Alexandre Aragão de Albuquerque Matheus Silveira de Souza Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Carlos Loebens Claudio Katz Luiz Werneck Vianna Marcelo Guimarães Lima Marilia Pacheco Fiorillo Caio Bugiato Bernardo Ricupero João Sette Whitaker Ferreira Henri Acselrad Lorenzo Vitral Luciano Nascimento Rodrigo de Faria Marjorie C. Marona Lincoln Secco Andrés del Río Vinício Carrilho Martinez Bruno Machado Yuri Martins-Fontes Everaldo de Oliveira Andrade Otaviano Helene Samuel Kilsztajn Fábio Konder Comparato André Márcio Neves Soares Sandra Bitencourt Salem Nasser Leonardo Sacramento José Raimundo Trindade Mariarosaria Fabris Michel Goulart da Silva Antonio Martins Luiz Bernardo Pericás Luiz Carlos Bresser-Pereira Luis Felipe Miguel João Feres Júnior Renato Dagnino Ricardo Musse

NOVAS PUBLICAÇÕES