Primeiro de maio

Imagem: Mike Bird
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Por MARIANA LINS COSTA*

História e significado desta data que é comemorada em mais de 80 países

“[…] a classe trabalhadora desaprendeu tanto o ódio quanto a vontade de sacrifício. Pois ambos se nutrem da visão dos ancestrais escravizados, e não do ideal dos descendentes libertados” (Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”).

1.

Em 1º de maio de 1886, teve lugar a primeira greve geral dos Estados Unidos, e a segunda do mundo, já que apenas em Londres uma greve da mesma magnitude havia ocorrido 56 anos antes. A greve conseguiu reunir trabalhadores, sindicalistas, socialistas e anarquistas, além de um sem-número de simpatizantes sob a pauta da diminuição da jornada de trabalho para 8 horas; cujo hino, bastante audaz para a época, era: “Oito horas de trabalho. Oito horas de descanso. Oito horas para fazer o que quisermos”.

Naquele 1º de maio de 1886 cerca de 300 mil trabalhadores entraram em greve nos Estados Unidos. Só em Chicago, epicentro do movimento, estima-se que algo em torno de 40 mil trabalhadores tenham parado e cerca de 80 mil pessoas tenham ido às ruas. Os protestos em Chicago estavam programados para ocorrer ao longo de vários dias – não obstante, rapidamente, a brutalidade da repressão policial se fez ver: em 3 de maio uma pessoa foi morta e várias ficaram feridas num confronto entre a polícia e os grevistas.

Para protestar contra a violência policial, lideranças anarquistas convocaram uma reunião em massa para o dia seguinte, 4 de maio, na Praça Haymarket. Em determinado ponto da reunião até então pacífica, tumultos foram causados pela polícia, o que resultou no lançamento de uma bomba contra os policiais. No caos que se seguiu, deu-se um tiroteio, que segundo testemunhas também foi iniciado pela polícia. Entre civis e policiais de dez a quinze pessoas foram mortas e aproximadamente 60 ficaram feridas.

O autor do atentado nunca foi identificado, muito embora os efeitos da bomba tenham, por assim dizer, se alastrado por todo país. A opinião pública foi instantaneamente cooptada pela imprensa contra os anarquistas, e todo um clima de histeria antivermelha foi instaurado. Os jornais de Chicago divulgaram uma série de histórias infundadas nas quais os anarquistas eram retratados como agentes de uma conspiração antiamericana levada a cabo por imigrantes, o que deu lugar não só a uma associação difamatória entre anarquistas e imigrantes, como à inflamação do clamor público por vingança impiedosa: “Eles devem ser enforcados!” – gritava-se nas ruas.

Após dezenas de prisões, apreensões e detenções, oito anarquistas foram responsabilizados pelo atentado, embora não houvesse quaisquer provas que comprovassem o envolvimento direto de algum deles. Dos oito sentenciados, apenas um não foi condenado à morte, e, dentre os que o foram, dois apelaram em carta ao então governador de Illinois; e tiveram a pena comutada para prisão perpétua. Uma clemência da parte das autoridades que, antes de qualquer coisa, resultou da campanha contra a arbitrariedade do julgamento, apoiada por personalidades ilustres como Oscar Wilde, Bernard Shaw e Friedrich Engels.

Dos cinco homens que optaram por não apelar de modo a se manterem fies às suas convicções –, apenas o jovem imigrante Louis Lingg, não foi enforcado, posto que se suicidou, com um detonador, em sua cela, um dia antes da execução, então marcada e realizada no dia 11 de novembro de 1887. Milhares de pessoas compareceram ao funeral dos cinco condenados à pena capital em nome da ordem e da lei. Seis anos depois, em 1893, os três sobreviventes encarcerados receberam o perdão do então novo governador de Illinois, John Peter Atgeld – que sacrificou a sua carreira política, ao fazer valer para tamanhos miseráveis a letra escrita da lei. Atualmente, o julgamento é considerado como um dos maiores erros judiciais da história estadunidense.

2.

Albert Parsonsfoi um dos anarquistas executados pelo atentado à bomba em Haymarket – dentre os oito condenados, era o único que não era imigrante. Albert Parsons, casado com a famosa anarquista negra Lucy Parsons, era editor-chefe do jornal The Alarm. August Spies, outro dos executados, liderava o Arbeiter Zeitung, direcionado especificamente a imigrantes. Através do trabalho de Parsons e Spies uma ponte entre imigrantes e estadunidenses foi construída no que diz respeito ao movimento anarquista nos Estados Unidos. Em ambos os jornais, foram publicados diversos artigos, nos quais o uso da violência nos métodos revolucionários estava justificado: os leitores eram incitados a estudar livros de química com o objetivo de aprender a fabricar todo tipo de explosivo, como forma de autodefesa contra a violência estatal levada a cabo pelo governo dos Estados Unidos – caso das repressões necessariamente sanguinárias às greves, para o que o próprio exército era via de regra acionado pela lei.

Parte significativa desses escritos em que se dava a defesa aberta do que é hoje comumente denominado “terrorismo político”, era da autoria de Johann Most, imigrante alemão, quem, em 1885, um ano antes da tragédia de Haymarket, publicou, em Nova York, uma compilação dos seus escritos e discursos, intitulada Ciência da guerra revolucionária: manual de instruções para o uso e produção de nitroglicerina, dinamite, algodão-pólvora, fulminato de mercúrio, bombas, explosivos, venenos, etc– coletânea obteve grande destaque durante o julgamento do incidente em Haymarket. Johann Most ficou também conhecido como o responsável por popularizar, nos Estados Unidos, a expressão “propaganda pelo feito”, postulado fundamental a qualquer grupo político que julgue necessário o uso da violência na ação direta. Não é exagero dizer que ele só escapou de ser enforcado pelo incidente em Haymarket, porque já estava preso cumprindo pena pelo crime de “discurso inflamatório”.

Tanto o The Alarm, quanto o Arbeiter Zeitung foram suspensos no dia da tragédia em Haymarket, com todos os membros de ambas as equipes presos. Com Albert Parsons na prisão, o anarquista Dyer D. Lum que na época do incidente vivia em Nova York, mudou-se para Chicago com o objetivo de retomar a publicação do jornal – o que conseguiu, precisamente, cinco dias antes da execução. Nessa primeira nova edição, foi publicada uma nota do próprio Albert Parsons encorajando os companheiros a prosseguir com a luta, assim como, posteriormente, foi publicado o bilhete suicida de Louis Lingg. Mais do que publicar o bilhete, foi Dyer D. Lum quem forneceu a Lingg o detonador que o mataria após seis horas de agonia, à véspera da sua execução. As atividades do jornal foram definitivamente suspensas no final de 1888.

Dyer D. Lum cometeu suicídio em 1893 após sofrer de depressão severa; nunca se conformou com o fato de que nenhuma retaliação da parte dos anarquistas, ou dos radicais em geral, tivesse sido empreendida para vingar os mártires de Chicago. Ele mesmo criou um plano para libertar os condenados à morte antes da execução, por meio de explosões em diferentes pontos da cidade e de um ataque armado simultâneo ao presídio, mas nenhuma ação foi tomada nesse sentido. Dyer D. Lum era convicto da imprescindibilidade do uso da violência na luta contra a opressão e o fato de ele mesmo ter falhado nisso, ao que parece, foi motivo para que nunca perdoasse a si mesmo.

A memória da tragédia de Haymarket o dominou completamente. Chegou a considerar se valer do seu suicídio como um ato político de protesto e vingança, mas com o mergulho na depressão, que veio acompanhado do abuso de álcool e opiláceos, cometeu suicídio na decadência de um quarto de albergue, na cidade de Nova York, ao ingerir uma capsula de veneno. Ante o absurdo sanguinário em que se converteu a luta inicialmente tão grandiosa (a greve foi desmoralizada com o atentado), o destino derrotado de Dyer D. Lum guarda também o seu caráter exemplar.

Embora o objetivo da reação das autoridades fosse o de reprimir qualquer simpatia e adesão para com o anarquismo, o efeito foi, em grande medida, contrário. Muitos tiveram a sua consciência política desperta com a oposição flagrante entre a injustiça do julgamento e a legitimidade da pauta dos grevistas, caso de duas mulheres anarquistas reconhecidas na atualidade: Emma Goldman e Voltairine de Cleyre. Conforme relata Emma Goldman em sua autobiografia: “Chicago foi muito significativo na minha vida. Devo o meu nascimento espiritual aos mártires de 1887”. Ou conforme pondera de Voltairine Cleyre em A construção de uma anarquista: “a ocasião específica que foi responsável por amadurecer as minhas tendências anarquistas diz respeito ao caso de 1886-87, quando cinco homens inocentes foram enforcados em Chicago pela ação de um culpado que ainda hoje segue desconhecido. Até então eu acreditava na imparcialidade essencial da lei americana e no julgamento por júri. Depois desse caso, já não pude mais”.

No primeiro congresso da Segunda Internacional, em Paris, no dia 14 de julho de 1889, centenário da Revolução Francesa, a data 1º de maio foi instituída como o Dia Internacional do Trabalhadores, em homenagem aos mártires de Chicago e à sua luta pela jornada de oito horas de trabalho diárias. Somente em 1937, a jornada de oito horas foi promulgada, sob a forma da lei, para todo território estadunidense. O Dia Internacional do Trabalhadores é comemorado no dia 1º de maio em mais de 80 países, dentre os quais o Brasil. Nos Estados Unidos, ironicamente, em 1º de maio é oficialmente comemorado o “Dia da Lealdade” – lealdade, no caso, aos Estados Unidos e à tradição americana da liberdade –; o presidente Eisenhower decretou o feriado em 1955, durante a guerra fria, de modo a evitar qualquer indício de complacência para com o 1º de maio dos “trabalhadores do mundo”. [i]

3.

Não se julgue, aqui, de pouca monta que o marco escolhido para a luta dos trabalhadores tenha se iniciado com um ato de desespero; isso, é verdade, somente no caso de ter sido mesmo algum radical anônimo quem jogou a bomba contra os policiais, em vez de as próprias autoridades, como não tão raramente até hoje acontece, quando é preciso justificar ante os olhos da opinião pública a excepcionalidade da repressão estatal para com um determinado grupo e/ou um maior investimento nas forças de segurança e armadas.

Seja como for, fazendo livre uso das palavras de Walter Benjamin, citadas na epígrafe: reverenciemos, tomados pelo devido páthos, os antepassados escravizados via a sanção direta ou indireta do Estado, em vez de nos narcotizarmos com fantasias infantilizadoras sobre o futuro ideal dos descendentes libertados; ideal que, neste nosso avançado da hora, muito depois de já ter soado e ressoado o alarme de incêndio, como se sabe, está a se confundir com alguma utopia obscura agora alcunhada de “mundo multipolar” – o que, sob certa perspectiva anarquista e feminista, soa tão absurdo quanto celebrar que de um mundo patriarcal se esteja em direção a um mundo multipatriarcal, à nova era do multipatriarcalismo geopolítico…

*Mariana Lins Costa é pesquisadora de pós-doutorado em filosofia na Universidade Federal de Sergipe (UFS).

Nota


[i] A reconstituição histórica aqui disposta é parte da minha tradução da obra Ação direta e outros escritos da anarquista estadunidense Voltairine de Cleyre, com organização de Acácio Augusto, a ser lançada pela editora Hedra. A fonte principal dos fatos aqui narrados consiste na obra de Paul Avrich, The Haymarket Tragedy. New Jersey: Princeton University Press, 1984.


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