Lições da África do Sul

Imagem: Omar Ramadan
image_pdf

Por VIVALDO BARBOSA*

Na África do Sul o povo está reclamando respeito

Boa parte do povo sul-africano está indo às ruas para protestar contra a prisão do ex-presidente Zuma por desacato a determinação de um tribunal local. As manifestações têm sido fortes, com depredações, e o que se vê são pessoas bem humildes nas ruas. Zuma foi eleito na sequência da eleição de Mandela (o segundo, depois de Mandela).

Geração seguinte àquela esplendorosa que, na década de 1940 e 1950, ainda jovens, Mandela, Oliver Tambo, Walter Suzulo e outros, assumiram a direção do Congresso Nacional Africano, partido fundado no início do Século XX. Levaram o partido para as ruas, manifestações, tribunais, onde eles brilhavam como jovens advogados, Mandela à frente. Foram processados pelo Judiciário local e ficaram 27 anos na prisão.

Voltaram em um processo revolucionário que restaurou os direitos dos negros sul-africanos, implantou a democracia e levou Mandela à Presidência. Zuma foi eleito nesta sequência revolucionária. Agora, Zuma está sendo processado pelo Judiciário local sob a alegação de corrupção e está preso por desacato.

A história recente já está cheia de casos assim. Fizeram o mesmo com Lula, Rafael Correa, no Equador, Cristina Krishner, na Argentina. Na Bolívia, cassaram até o mandato de Evo Morales, que teve de se exilar.

O povo da África do Sul está pedindo respeito ao seu voto. Quando vota e elege, o povo está fazendo julgamento da pessoa, com mais força e poder que qualquer juiz.

Não que, após eleitos, ficam licenciados para fazer falcatruas, ou que o povo não erre e eleja mentirosos, enganadores e falsos representantes.

Mas quando isso acontece, há de haver procedimentos especiais, com tribunais adequadamente preparados e de alto nível, com legitimidade para quebrar a investidura popular que o eleito recebeu, mesmo após o exercício do mandato.

O povo sul-africano está dizendo: “Alto lá! Zuma foi feito presidente com meu voto, meu julgamento, nós o fizemos sucessor de Mandela, não é qualquer juiz ou Tribunal ou processo comum que vai desfazer isto”.

Mesmo que tenha cometido erros, Zuma não pode ser processado em processo comum, como ex-presidente. Aliás, não se pode esquecer que, no enterro de Fidel Castro, Zuma fez o melhor discurso: “Fidel foi o único do Ocidente que foi à África para nos ajudar, não para explorar nossas riquezas”.

A investidura popular é o momento mais elevado da República. Ensina-se nas Faculdades em Direito Constitucional que o Presidente da República é o magistrado número um do País. Não pode ser processado como um acusado comum, mesmo quando cometa erros.

Vale relembrar aqui o caso de Lula. O juiz Moro fez-lhe mais de uma centena de perguntas, procurando desmerecê-lo. Na sequência, em outra audiência, a juíza repreendeu Lula por ter feito críticas ao juiz anterior. Ela disse que não podia admitir alguém criticar um colega e que Lula poderia se dar mal. E nós sabemos como terminou recentemente o caso: o colega idolatrado foi proclamado suspeito e parcial pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A República brasileira já deu solução razoável. Na tradição constitucional brasileira, os eleitos, portadores de investidura popular, só poderiam ser processados e julgados por tribunais especiais. O Presidente da República, pelo Supremo.

Há países que oferecem soluções melhores, mas já era razoável. Inclusive funcionava na outra ponta: quem cometesse falcatrua, seria enfrentado por tribunal mais forte. Mas campanha recente intensa na mídia chamou isto de “foro privilegiado”. E o Supremo Tribunal Federal criou uma norma constitucional, afirmando que somente durante o exercício do mandato o eleito seria julgado por tribunal especial. Nenhuma Constituição previu isto, nenhum tribunal ousou inserir essa norma na Constituição.

O Judiciário sempre segue a mídia, especialmente o STF de hoje, e a mídia segue os grupos econômicos, e as elites sempre dando as cartas.

Não foi à toa que, com nítido propósito político e método, diria Shakespeare, logo levaram Lula para um juiz de Curitiba (hoje trabalha numa empresa em Washington, ligada à CIA? – com certeza, afirmam), que não tinha nada a ver com nenhuma das histórias, nada havia acontecido no Paraná.

Na África do Sul o povo está reclamando respeito. Na Bolívia e na Argentina já deram o troco nas eleições. O povo brasileiro está caminhado no mesmo sentido. O prestígio que o brasileiro já confere a Lula é a grande resposta de agora.

*Vivaldo Barbosa foi deputado federal Constituinte e secretário da Justiça do governo Leonel Brizola, no RJ. É advogado e professor aposentado da UNIRIO.

Publicado originalmente no site Viomundo.

 

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
O segundo choque global da China
06 Dec 2025 Por RENILDO SOUZA: Quando a fábrica do mundo também se torna seu laboratório mais avançado, uma nova hierarquia global começa a se desenhar, deixando nações inteiras diante de um futuro colonial repaginado
2
Energia nuclear brasileira
06 Dec 2025 Por ANA LUIZA ROCHA PORTO & FERNANDO MARTINI: Em um momento decisivo, a soberania energética e o destino nacional se encontram na encruzilhada da tecnologia nuclear
3
Simulacros de universidade
09 Dec 2025 Por ALIPIO DESOUSA FILHO: A falsa dicotomia que assola o ensino superior: de um lado, a transformação em empresa; de outro, a descolonização que vira culto à ignorância seletiva
4
A guerra da Ucrânia em seu epílogo
11 Dec 2025 Por RICARDO CAVALCANTI-SCHIEL: A arrogância ocidental, que acreditou poder derrotar a Rússia, esbarra agora na realidade geopolítica: a OTAN assiste ao colapso cumulativo da frente ucraniana
5
Asad Haider
08 Dec 2025 Por ALEXANDRE LINARES: A militância de Asad Haider estava no gesto que entrelaça a dor do corpo racializado com a análise implacável das estruturas
6
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
7
Uma nova revista marxista
11 Dec 2025 Por MICHAE LÖWY: A “Inprecor” chega ao Brasil como herdeira da Quarta Internacional de Trotsky, trazendo uma voz marxista internacionalista em meio a um cenário de revistas acadêmicas
8
Raymond Williams & educação
10 Dec 2025 Por DÉBORA MAZZA: Comentário sobre o livro recém-lançado de Alexandro Henrique Paixão
9
Considerações sobre o marxismo ocidental
07 Dec 2025 Por RICARDO MUSSE: Breves considerações sobre o livro de Perry Anderson
10
O agente secreto
07 Dec 2025 Por LINDBERG CAMPOS: Considerações sobre o filme de Kleber Mendonça Filho, em exibição nos cinemas
11
Impactos sociais da pílula anticoncepcional
08 Dec 2025 Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: A pílula anticoncepcional não foi apenas um medicamento, mas a chave que redefiniu a demografia, a economia e o próprio lugar da mulher na sociedade brasileira
12
Insurreições negras no Brasil
08 Dec 2025 Por MÁRIO MAESTRI: Um pequeno clássico esquecido da historiografia marxista brasileira
13
As lágrimas amargas de Michelle Bolsonaro
07 Dec 2025 Por CAIO VASCONCELLOS: Estetização da política e melodrama: A performance política de Michelle como contraponto emocional e religioso ao estilo agressivo de Jair Bolsonaro
14
A armadilha da austeridade permanente
10 Dec 2025 Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Enquanto o Brasil se debate nos limites do arcabouço fiscal, a rivalidade sino-americana abre uma janela histórica para a reindustrialização – que não poderemos atravessar sem reformar as amarras da austeridade
15
O empreendedorismo e a economia solidária – parte 2
08 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Quando a lógica do empreendedorismo contamina a Economia Solidária, o projeto que prometia um futuro pós-capitalista pode estar reproduzindo os mesmos circuitos que deseja superar
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES