Por VALÉRIO ARCARY*
Considerações sobre a trajetória política do líder da Revolução portuguesa de 25 de abril de 1974
“Os corajosos experimentam a morte apenas uma vez” (William Shakespeare).
Há pessoas que são sujeitos de feitos tão extraordinários que entram para a história ainda em vida. Otelo Saraiva de Carvalho era ainda jovem quando assumiu a liderança do 25 de abril de 1974, a insurreição militar que derrubou o governo de Marcelo Caetano e a ditadura salazarista, a forma portuguesa do regime fascista. A valentia de seu papel merece admiração e respeito.
Os riscos não eram pequenos. Foi uma proeza, ou mesmo uma façanha político-militar, porque poucos meses antes um levante nas Caldas da Rainha tinha fracassado. A ditadura tinha quase meio século de existência. Exigiu coragem pessoal, capacidade de articulação, organização minuciosa e lucidez estratégica.
Otelo foi o chefe do Comando Operacional do Continente (Copcon), uma unidade militar chave durante os dezoito meses decisivos da situação revolucionária. Como muitos outros, entre os oficiais de carreira das Forças Armadas, Otelo tinha origem social nas camadas medias plebeias, era um homem de ação, muito voluntarismo e alguma simplicidade, pouco repertório político, mas se radicalizou à esquerda com a experiência trágica da guerra colonial, e se entusiasmou com a intensidade da mobilização popular.
Otelo tinha uma personalidade carismática, transbordava de sinceridade e paixão, um pouco entre um Chávez e um Capitão Lamarca, ou seja, entre o heroísmo da organização do levante, e uma aventura à deriva das posteriores relações com as FP-25, um grupo militarista, que o levou à prisão. Felizmente, depois veio a anistia.
Ensina a história que, em situações revolucionárias, os seres humanos excedem-se ou se elevam, entregando-se na melhor medida de si próprios. Aparece, então, o que têm de melhor e pior. Os oficiais do MFA foram protagonistas centrais da revolução portuguesa. O lugar dos indivíduos ou a sua estatura se revela.
Spínola era enérgico e perspicaz, um ultrarreacionário pomposo, com poses de general germanófilo, com seu espantoso monóculo do século XIX. Costa Gomes, sutil e astuto, era, como um camaleão, um homem da oportunidade. Do MFA surgiram as lideranças de Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, valentes e honrados, mas sem educação política; de Vasco Lourenço, de origem social popular, atrevido e arrogante, mas tortuoso; de Melo Antunes, instruído e sinuoso, o homem chave do grupo dos nove, o feiticeiro que termina prisioneiro de suas manipulações; de Varela Gomes, o homem da esquerda militar, discreto e digno; de Vasco Gonçalves, menos trágico que Allende, mas, também, sem a bufonaria de Daniel Ortega. Foi da tropa, também, que surgiu o “Bonaparte” Ramalho Eanes, sombrio e sinistro, que enterrou o MFA.
A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise crônica. Um país de dez milhões habitantes, acentuadamente defasado da prosperidade europeia dos anos sessenta, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar mantendo um exército de ocupação de dezenas de milhares de homens, indefinidamente, em uma guerra africana.
A reforma pelo alto, por deslocamentos internos do próprio salazarismo, a transição negociada, a democratização pactuada, tantas vezes esperada, não veio. O fascismo “defensivo” deste Império desproporcional e semi-autárquico sobreviverá a Salazar, permanecendo incríveis 48 anos no poder. A burguesia desta pequena metrópole resistirá à vaga de descolonização dos anos cinquenta por um quarto de século.
Encontrará forças para enfrentar, a partir dos anos sessenta, uma guerra de guerrilhas em África, na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, mesmo se, na maior parte desses longos anos, mais uma guerra de movimentos, que uma guerra de posições, ainda assim, sem solução militar possível. Mas a guerra sem fim acabou destruindo a unidade das Forças Armadas. Quis a ironia da história que tenha sido o mesmo exército que deu origem à ditadura que destruiu a I República, que tenha derrubado o salazarismo para garantir o fim da guerra.
Clandestinamente, na oficialidade média, já estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A fraqueza do governo Marcelo Caetano era tão grande que cairia como uma fruta podre, em horas. A nação estava exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução anti-imperialista nas colônias, iria entrar a revolução política e social na metrópole.
O serviço militar obrigatório era de assombrosos quatro anos, dos quais pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Mais de dez mil mortos, sem contar os feridos e mutilados, na escala de dezenas de milhares. Foi do interior desse exército de alistamento obrigatório que surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA.
Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e, também, à pressão da classe trabalhadora na qual uma parcela dessa oficialidade média tinha sua origem de classe, cansados da guerra, e ansiosos por liberdades, rompiam com o regime. Estas pressões sociais explicam, também, os limites políticos do próprio MFA e ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano, entregaram o poder a Spínola.
O próprio Otelo, defensor, a partir do 11 de Março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação nacional, à maneira de movimentos militares em países da periferia, como no Peru do início dos anos setenta, fez o balanço com uma franqueza desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no ‘bom’ caminho, nos perseguiria até o final”.
Esta confissão permanece uma das chaves de interpretação do que ficou conhecido como o PREC (processo revolucionário em curso), ou seja, os doze meses em que Vasco Gonçalves esteve à frente do II, III, IV e V governos provisórios. Ironicamente, assim como muitos capitães se inclinavam a depositar excessiva confiança nos generais, uma parcela da esquerda entregava aos capitães, ou à fórmula unidade do povo com o MFA, defendida pelo PCP, a liderança do processo.
Mas a revolução portuguesa foi muito mais do que o fim protelado, tardio, atrasado de uma ditadura obsoleta, arcaica e criminosa. Já se disse que as revoluções tardias são as mais radicais.
Abatida militarmente por uma guerra sem fim, exausta politicamente pela ausência de base social interna, esgotada economicamente por uma pobreza que contrastava com o padrão europeu, e cansada culturalmente pelo atraso obscurantista que impôs durante décadas, poucas horas foram suficientes para uma rendição incondicional. Foi nesse momento que o processo revolucionário que comoveu Portugal se iniciou.
A insurreição militar agigantou-se como uma revolução democrática, quando as massas populares saíram às ruas. Mas a revolução social que nasceu do ventre da revolução política foi derrotada. Talvez surpreenda a caracterização de revolução social, mas toda revolução é uma luta em processo, uma disputa, uma aposta em que reina a incerteza.
Na história não se pode explicar o que aconteceu considerando somente o desfecho. Isso é anacrônico. É uma ilusão de ótica do relógio da história. O fim de um processo não o explica. Na verdade, o contrário é mais verdadeiro. O futuro não decifra o passado. Revoluções não podem ser analisadas somente pelo desenlace final.
Estes explicam, facilmente, mais sobre a contrarrevolução, do que sobre a revolução. As liberdades democráticas nasceram do ventre da revolução, quando tudo parecia possível. Mas o regime democrático semipresidencialista hoje existente em Portugal não surgiu do processo de lutas aberto no 25 de abril de 1974. Ele veio à luz depois de um autogolpe da cúpula das Forças Armadas organizado pelo Grupo dos Nove em 25 de novembro de 1975.
A reação triunfou depois das eleições presidenciais de 1976. Foi necessário recorrer aos métodos da contrarrevolução em novembro de 1975 para restabelecer a ordem hierárquica nos quartéis e dissolver o MFA. O MFA que fez o 25 de abril foi dissolvido. É verdade que a reação com táticas democráticas dispensou uma quartelada com métodos genocidas, como tinha acontecido em Santiago do Chile em 1973. Não foi acidental, contudo, que o primeiro presidente eleito fosse Ramalho Eanes, o general do 25 de novembro.
Nessa primeira eleição presidencial, no dia 25 de abril de 1976, Otelo foi candidato contra Ramalho Eanes. Eu estava lá, mas não podia votar porque não sou, formalmente, cidadão português. Na hora solene da morte deve prevalecer a gratidão, o reconhecimento, a justiça, e Otelo foi grande.
Tinha que ser com emoção. Adeus, Otelo.
*Valério Arcary é professor aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de O encontro da revolução com a história (Xamã).