Ministério Público: guardião da democracia brasileira?

Imagem Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

No Brasil, as ações de promotores e procuradores são guiadas mais por convicções individuais do que por demandas e necessidades da população

Por Fábio Kerche e Rafael Viegas*

Instituições moldam comportamentos, possuem certa estabilidade no tempo e estruturam regras formais e informais conhecidas e compartilhadas por seus membros. Instituições possuem instrumentos para incentivar certos comportamentos e desestimular outros, diminuindo a chance do acaso, garantindo certa previsibilidade, independente de quem ocupe os cargos na instituição. No tipo ideal das instituições, a opinião de seus integrantes seria secundária, já que estes se submeteriam a procedimentos e prioridades decididas pela chefia ou pelos políticos.

No mundo real, entretanto, a relação das instituições com seus membros não é tão previsível e harmoniosa. Inevitavelmente existe tensão entre interesses individuais e da direção, além de divergências com atores externos. Para que haja um alinhamento, são necessários incentivos na carreira, sanções para os desvios e mecanismos para monitoramento das atividades.

O Ministério Público no Brasil, pós Constituição de 1988, seria de tal monta livre desses incentivos institucionais que é quase o caso de pensarmos numa “não-instituição”. Prioridades e estratégias do MP, aparentemente, são dadas pelos próprios promotores e procuradores, moldadas por fatores externos à organização, como origens de classe, faculdades de direito e por outros mecanismos não formais.

Nessa perspectiva, o livro de Julita Lemgruber, Ludmila Ribeiro, Leonarda Musumeci e Thais Duarte, Ministério Público: guardião da democracia brasileira? (Fortaleza, CESec) que apresenta uma pesquisa quantitativa e qualificativa junto aos integrantes do MP, ganha importância porque a opinião dos promotores e procuradores é relativamente mais relevante do que em outras organizações estatais estruturadas hierarquicamente.

Com a nova Constituição, promotores e procuradores “passaram a ter como balizas apenas “a lei e a consciência”, tendendo as ações a guiar-se mais por convicções individuais, pela experiência adquirida em certas áreas de trabalho e pelas opções feitas durante a vida profissional do que primariamente pelas demandas e necessidades da população assistida ou por uma padronização institucional assegurada por regulamentação específica” (p. 27).

A instituição pouco hierárquica apresenta como resultado de suas práticas alta fragmentariedade, ao ponto de colocar em dúvida a noção de unidade institucional. O estágio em que o membro do MP se encontra na carreira profissional e as diferenças de perfis, inclinações ideológicas, posições políticas e expectativas individuais, foram fatores identificados como, aparentemente, decisivos para se entender as diferenças nas prioridades e nos estilos de atuação dos membros do MP. A autonomia aos agentes teria resultado num “cheque em branco” a ser “preenchido de acordo com inclinações e posicionamentos ideológicos ou idiossincráticos dos membros da instituição” (p. 14).

Dos 12.326 promotores e procuradores, a pesquisa recebeu 899 questionários preenchidos apropriadamente. Dos que responderam, a origem social com perfil “elitizado” prevaleceu. “Embora isso não seja necessariamente um empecilho à atuação em prol dos menos favorecidos, pode influir na definição dos interesses prioritários e na percepção da maioria dos promotores e procuradores acerca do seu papel na sociedade” (p. 16). Prioridades não seriam escolhidas pela instituição, por seus líderes ou por políticos eleitos, diga-se de passagem, mas selecionadas de forma individual pelo próprio promotor.

O combate à corrupção, por exemplo, é apontado por 62% como prioridade e a defesa de direitos sociais para idosos, pessoas com deficiência e relativos a gênero não passam de 10%. A maioria quer ser como Deltan Dallagnol, o procurador da Operação Lava-Jato, mesmo que a Constituição não priorize o combate à corrupção em detrimento de outras áreas ou que não haja uma decisão da sociedade nesse sentido. Como o número de promotores e procuradores é escasso, assim como o tempo, escolher um tema como prioritário significa abrir mão de outros.

As autoras poderiam ter explorado mais como a estrutura da carreira poderia criar algum tipo de política institucional decidida pelas instâncias superiores do MP. Afinal, boa parte dos promotores e procuradores, principalmente lotados em posições sensíveis, como nos órgãos do MP incumbidos do controle externo da atividade policial e combate à corrupção, não é titular, mas designada.

Essa designação funcionaria como um estímulo para se seguir uma política institucional? Outro ponto que seria passível de reflexão é se a constante migração de promotores e procuradores para ocupar cargos no Executivo estimularia um alinhamento ao governo. A autopercepção dos agentes, típicas em pesquisas de survey, pode ter escondido a potencialidade desses instrumentos.

O livro, ao manter uma tradição de ouvir a opinião de promotores e procuradores iniciada nos anos 1990 no IDESP, atualiza a visão dos membros do MP, contribuindo para mapear semelhanças e diferenças na opinião desses atores. Em uma instituição tão frouxa do ponto de vista de regras e hierarquia, e, principalmente, pouco transparente, a opinião passa a ser uma ferramenta de análise importante. O livro é peça importante para os estudiosos do Sistema de Justiça no Brasil.

*Fábio Kerche é pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa.

*Rafael Viegas é pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Sociologia Brasileira da UFPR.

Artigo publicado originalmente no site Jornal de Resenhas.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michael Roberts Liszt Vieira Tales Ab'Sáber Luiz Eduardo Soares Celso Favaretto Ricardo Fabbrini Ricardo Abramovay Alexandre de Lima Castro Tranjan Eleutério F. S. Prado Luiz Bernardo Pericás Denilson Cordeiro Marcelo Guimarães Lima Bento Prado Jr. Rodrigo de Faria Boaventura de Sousa Santos Ronaldo Tadeu de Souza Renato Dagnino Érico Andrade Maria Rita Kehl José Raimundo Trindade José Luís Fiori André Singer Lincoln Secco Luiz Renato Martins Celso Frederico Tadeu Valadares Leda Maria Paulani Eugênio Bucci Paulo Fernandes Silveira Slavoj Žižek Fábio Konder Comparato Mariarosaria Fabris Gabriel Cohn Matheus Silveira de Souza Dênis de Moraes João Carlos Loebens Lucas Fiaschetti Estevez Walnice Nogueira Galvão Eliziário Andrade José Costa Júnior João Feres Júnior Fernão Pessoa Ramos Alysson Leandro Mascaro Milton Pinheiro Berenice Bento Alexandre Aragão de Albuquerque Sergio Amadeu da Silveira Antônio Sales Rios Neto Dennis Oliveira Flávio R. Kothe André Márcio Neves Soares Jean Pierre Chauvin Marcos Silva Kátia Gerab Baggio José Geraldo Couto Michel Goulart da Silva Juarez Guimarães Alexandre de Oliveira Torres Carrasco José Dirceu Thomas Piketty Jean Marc Von Der Weid Francisco Fernandes Ladeira Bernardo Ricupero Salem Nasser Bruno Machado Otaviano Helene Marcus Ianoni Vanderlei Tenório Luciano Nascimento Eduardo Borges Heraldo Campos Everaldo de Oliveira Andrade Leonardo Sacramento Luiz Carlos Bresser-Pereira Chico Alencar Sandra Bitencourt Daniel Costa Vladimir Safatle Marilena Chauí Rubens Pinto Lyra Andrés del Río Annateresa Fabris Eleonora Albano Paulo Nogueira Batista Jr Ricardo Musse Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Freitas Barbosa Ladislau Dowbor João Sette Whitaker Ferreira Jorge Branco Flávio Aguiar Bruno Fabricio Alcebino da Silva Ronald León Núñez Marcos Aurélio da Silva Manchetômetro Claudio Katz Samuel Kilsztajn Daniel Brazil Eugênio Trivinho Valerio Arcary Mário Maestri Caio Bugiato Vinício Carrilho Martinez Marjorie C. Marona Michael Löwy Afrânio Catani Marilia Pacheco Fiorillo Tarso Genro Daniel Afonso da Silva Atilio A. Boron Lorenzo Vitral Leonardo Boff Osvaldo Coggiola Henri Acselrad Leonardo Avritzer Fernando Nogueira da Costa Gilberto Lopes Marcelo Módolo João Carlos Salles Paulo Martins Luiz Marques Benicio Viero Schmidt Airton Paschoa Igor Felippe Santos Luiz Roberto Alves Francisco Pereira de Farias Luis Felipe Miguel Yuri Martins-Fontes Andrew Korybko Luís Fernando Vitagliano Paulo Capel Narvai Remy José Fontana João Adolfo Hansen Ricardo Antunes Ronald Rocha Plínio de Arruda Sampaio Jr. Priscila Figueiredo Elias Jabbour Anderson Alves Esteves Ari Marcelo Solon Paulo Sérgio Pinheiro Armando Boito Julian Rodrigues Carla Teixeira José Micaelson Lacerda Morais Luiz Werneck Vianna Antonino Infranca Antonio Martins Manuel Domingos Neto Chico Whitaker João Lanari Bo Francisco de Oliveira Barros Júnior Gerson Almeida Rafael R. Ioris Henry Burnett Anselm Jappe José Machado Moita Neto Carlos Tautz Gilberto Maringoni João Paulo Ayub Fonseca

NOVAS PUBLICAÇÕES