Quem tem medo da auto-organização da classe trabalhadora?

Giovanni Battista Piranesi’s (1720–1778), As prisões da imaginação, 1761.
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por TAINÃ GÓIS & HELENA PONTES DOS SANTOS*

Ateando fogo na incomoda estátua de Borba Gato, o movimento Revolução Periférica abriu o debate sobre a classe trabalhadora emergir no debate público

“Por menos que conte a história / não te esqueço meu povo / se Palmares não vive mais / faremos Palmares de novo / Ontem um distinto senhor me disse: /– Filho não pense nessas coisas / (naturalmente mandei-o à merda)” (José Carlos Limeira, Quilombos).

“Bandeirantes, Anhanguera, Raposo, Castelo / São heróis ou algoz? Vai ver o que eles fizeram / Botar o nome desses cara nas estrada é cruel / É o mesmo que Rodovia Hitler em Israel” (Inquérito, Eu só peço a Deus).

Ateando fogo simbolicamente na incomoda estátua de Borba Gato, o movimento Revolução Periférica materializou não apenas uma pauta histórica, mas a performatividade presente em muitos discursos entoados há anos pelos Movimentos Negros.

Neste 24 de julho, o Brasil assistiu a uma ação política que, como reivindica o grupo, serviu para trazer ao debate público as críticas à elevação de monumentos em homenagem a personagens historicamente responsáveis por oprimir pessoas trabalhadoras – escravocratas, industriais, generais, burocratas e estadistas que realizaram, direta ou indiretamente, violências contra os povos indígenas e as populações negras, operárias e operários, lutadoras e lutadores sociais de nossa Améfrica Ladina.

Algumas pessoas, dedicadas a analisar o tema, criticaram a ação, argumentando não ser a melhor forma de alcançar os fins desejados – ou seja, o fim da opressão racial – uma vez que o uso da violência seria incapaz de promover qualquer reconstrução social verdadeiramente democrática após a “destruição” que se impõe por meio da força. Alguns ponderam, ainda, que a exagerada radicalidade da ação dificultaria um real convencimento público sobre a importância da pauta.

Viessem essas colocações do outro lado da barricada da luta de classes, os versos de Limeira dariam conta de responder; não sendo, no entanto, aparentemente paira o desconhecimento de alguns fatos importantes que são necessários que se aponte, uma vez que foram olvidados, com o fito de contribuir com um debate mais completo.

O primeiro é que a ação direta do grupo Revolução Periférica não é, nem de longe, a primeira tentativa de se discutir o direito à memória e verdade em relação à questão racial brasileira. Há anos, intelectuais e militantes negros apontaram, em falas, músicas, artigos e livros, que é urgente repensar esse espaço de afeto e homenagem aos algozes do nosso povo. Infelizmente, pouco conseguiram avançar, enfrentando a marginalização de seus discursos ao ponto de que, ainda hoje, é um lugar comum travar debates sobre a legitimidade de manifestações antirracistas apenas citando pensadores(as) brancos(as).

Se silenciados mesmo nos espaços ditos de esquerda, a proposta de trocar a “violência” pela via democrática institucional é, estruturalmente, ainda mais limitada. Basta lembrar que, hoje, o legislativo conta com a representação de apenas 24,5% de pessoas negras, frente a uma população composta em 56,10% por negros e negras.

Ainda assim, também no parlamento foi tentando colocar o debate de forma “política”. A deputada federal Talíria Petrone, em novembro de 2019, apresentou na Câmara dos Deputados Projeto de Lei nº 5.923/2019, cujo objetivo é a proibição de homenagens por meio da utilização de expressão, figura, desenho ou quaisquer outros signos relacionados à escravidão, bem como a pessoas notoriamente participantes do movimento eugenista brasileiro por pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito público ou privado. Esse projeto, assim como outro apresentado em 27 de novembro de 2020 pela mesma deputada (Projeto de Lei nº 5.296/2020) foram apensados ao Projeto de Lei nº 4.782/2016 e estão aguardando tramitação na Comissão de Cultura da casa legislativa.

É certo que a movimentação para se retirar do espaço de afeto coletivo, que também é o que representa os monumentos nos espaços públicos, não começou em 2020 com a movimentação ocorrida ao norte Global por conta do caso terrível de violência policial que vitimou George Floyd. “Nossos passos vêm de longe” é a palavra de ordem do movimento negro que se reflete aqui também. Contudo, desde o caso de racismo nos EUA, a mídia mundial deu espaço à pauta do racismo estrutural e o quanto essas figuras representavam para a manutenção de tudo como está.

Aproveitando-se desse momento, em São Paulo, a deputada Érica Malunguinho propôs Projeto de Lei nº 404/2020 que versa sobre a proibição de homenagens a escravocratas e também propõe em seu artigo 5º a remoção de monumentos públicos, estátuas e bustos existentes de escravocratas ou eventos históricos ligados a prática escravagista para Museus Estaduais.

Ora, frente à urgência de um debate político e democrático, porque esses projetos de lei não são alvo de manifestação por parte de tantos que se indignam com o ato realizado nos últimos dias?

Socorrendo-se de Lélia Gonzalez – que traz a categoria da denegação seus textos para debater o racismo à brasileira – observa-se que no Brasil segue prevalecendo o “costume” de se negar a existência de um problema real, como negamos o racismo na esperança de que o mesmo suma, seja esquecido ou superado, num passe de mágica, pela via da eficaz da deslegitimação de pessoas contestadoras e que apontem sua existência direta ou indiretamente.

Encontrar mais violência em um ato político que não feriu ninguém do que em anos de escravização, marginalização, precarização e apagamento histórico de todo um povo não seria, por si só, uma violência? O uso do expediente da subaltarnização do ponto de vista negro e da relativização de sua rebeldia histórica, não por outra razão, é denominado pelo movimento negro de epistemicídio – o apagamento, nos discursos políticos reconhecidos como válidos, da opressão massacrante que recai sobre mais da metade de nossa população.

Um dos Movimentos Negros a falar sobre essa questão recentemente foi o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, que no Carnaval de 2019 trouxe em seu samba enredo “História para Ninar Gente Grande” versos que contestam a posição de heróis em nossa sociedade capitalista, colonial, racista e machista: Tem sangue retinto pisado/Atrás do herói emoldurado/Mulheres, tamoios, mulatos/Eu quero um país que não está no retrato. Ao exigir a presença no retrato dos heróis populares – pessoas trabalhadoras, nunca nos esqueçamos – o que se discute é o avesso do mesmo lugar da “história oficial”, a história verídica.

E de onde vem o desconforto, afinal, com a manifestação do oprimido contra uma história que o exclui? Trazendo Clóvis Moura à conversa, cabe lembrar o que ele nos ensina: que contar a história no Brasil só é permitido se dentro das balizas bem delimitadas pelas classes dominantes. A busca pela história verídica, pelo que aconteceu de fato fora das linhas escritas pelas elites, é, negrite-se, uma afronta direta aos interesses das classes dominantes.

E aqui está o grande nó da questão: contestar a história não é a maior audácia cometida pelo grupo a que pertence Galo, mais um negro preso político nesse país.

Já apontou Sílvio Almeida – e os poderosos perceberam – que a motivação dessa prisão não foi a performance, mas o potencial da luta que Galo trava: o problema da questão não mora em uma discussão abstrata sobre o caráter “violento” de colocar fogo em uma estátua de pedra que sabidamente não pegaria fogo, mas em quem acende o fogo.

Com as “modernizações” da Lei nº 13.467/17, que colocou fim às contrapartidas estatais conferidas aos sindicatos para que seguissem presos a lógica da organização limitada por categoria e território, cria-se uma contradição que precisa e vem sendo explorada pelas “novas classes trabalhadoras”: a despeito de um enfraquecimento das lutas clássicas sindicais, abre-se uma janela que permite o experimentar de um primeiro passo para a discussão de uma verdadeira liberdade sindical, como já expôs Souto Maior (2019).

Apesar de todo o desmonte perpetrado pela Contrarreforma ou “Reforma” Trabalhista, o ato da Revolução Periférica mostra que a organização da classe trabalhadora precarizada está aí, é inevitável e, superando a desagregação neoliberal, tem uma constituição como há muito não se vê no Brasil: despida da enrijecedora burocracia e alicerçada na solidariedade de classe, é capaz de realizar ações diretas que, ameaçando a legalidade, trazem um poder disruptivo há muito não visto em nossa esquerda.

Assim como levanta Chico Buarque, em Linha de Montagem, sobre o movimento dos metalúrgicos de 1978 (que, por acaso, também foi criminalizado) não é difícil perceber que passa pela auto-organização das pessoas trabalhadoras precarizadas – sem vínculo reconhecido, sem acesso ao patamar mínimo civilizatório, expostas ao cotidiano violento que é o viver periférico, majoritariamente negras – uma nova fase do movimento de quem vive do trabalho no Brasil, país onde debater classe é debater raça.

É essa encruzilhada que assusta às classes dominantes, e por isso faz parte do que devemos defender e no que precisamos apostar. Longe de engrossar o caldo das falas que deslegitimam a ação direta da classe trabalhadora organizada quando ela tenta emergir no debate público, parece que o papel que cabe àqueles especializados em analisar a história é entender a fala daqueles que o sistema capitalista tenta rebaixar, incendiando ideias fora do lugar e recusando o apagamento.

Saudações e liberdade aos que têm coragem!

*Tainã Góis é doutoranda em Direito pela USP e conselheira de política do grupo Mulheres de São Paulo.

*Helena Pontes dos Santos é mestranda em Direito pela USP.

Referências


MOURA, Clóvis. Atritos entre a História, o Conhecimento e o Poder. Revista Princípios, edição 19, Novembro, 1990.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). p. 69-82. 1988.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis Internacional, Santiago, v.9, p. 133-141, 1988.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. História do direito do trabalho no Brasil: curso de direito do trabalho, volume I, parte II. São Paulo, LTr, 2017.

SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Quem tem medo de mudanças e da liberdade sindical? Disponível em: <https://www.jorgesoutomaior.com/blog/quem-tem-medo-de-mudancas-e-da-liberdade-sindical>.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Celso Frederico Paulo Martins Vladimir Safatle Antônio Sales Rios Neto Walnice Nogueira Galvão André Márcio Neves Soares Juarez Guimarães Ricardo Musse Airton Paschoa José Dirceu Paulo Nogueira Batista Jr Anderson Alves Esteves Leonardo Boff Rodrigo de Faria Fernão Pessoa Ramos Ricardo Antunes Chico Alencar Marcelo Guimarães Lima André Singer Fernando Nogueira da Costa Elias Jabbour Paulo Fernandes Silveira Francisco Fernandes Ladeira Tales Ab'Sáber Ronald León Núñez Bernardo Ricupero Eduardo Borges Vanderlei Tenório José Luís Fiori Caio Bugiato Sergio Amadeu da Silveira Benicio Viero Schmidt Luiz Roberto Alves Berenice Bento Rafael R. Ioris Paulo Capel Narvai Kátia Gerab Baggio Tarso Genro Francisco de Oliveira Barros Júnior Valerio Arcary Gilberto Maringoni Armando Boito Eleonora Albano Bruno Fabricio Alcebino da Silva Atilio A. Boron Renato Dagnino José Machado Moita Neto Marcelo Módolo Lincoln Secco Boaventura de Sousa Santos Igor Felippe Santos Carlos Tautz Daniel Brazil Milton Pinheiro Luiz Carlos Bresser-Pereira João Carlos Salles Slavoj Žižek Luiz Bernardo Pericás Denilson Cordeiro Anselm Jappe Leonardo Avritzer Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Dennis Oliveira Claudio Katz Maria Rita Kehl Fábio Konder Comparato José Geraldo Couto Ricardo Abramovay Lorenzo Vitral Michael Roberts Antonio Martins Tadeu Valadares Luiz Werneck Vianna Remy José Fontana Salem Nasser Jean Marc Von Der Weid Michel Goulart da Silva Henri Acselrad Flávio Aguiar Manchetômetro Ronald Rocha Luiz Renato Martins Heraldo Campos Ladislau Dowbor João Carlos Loebens Paulo Sérgio Pinheiro Thomas Piketty Manuel Domingos Neto Andrés del Río Daniel Afonso da Silva Afrânio Catani Chico Whitaker Julian Rodrigues Érico Andrade Eleutério F. S. Prado Matheus Silveira de Souza Bento Prado Jr. Samuel Kilsztajn Antonino Infranca José Raimundo Trindade Alysson Leandro Mascaro Eugênio Bucci Carla Teixeira Yuri Martins-Fontes Henry Burnett João Paulo Ayub Fonseca Marcos Aurélio da Silva Gerson Almeida Alexandre de Lima Castro Tranjan Luciano Nascimento Alexandre Aragão de Albuquerque Luís Fernando Vitagliano João Lanari Bo Marilia Pacheco Fiorillo Alexandre de Freitas Barbosa Rubens Pinto Lyra Michael Löwy Leonardo Sacramento Gilberto Lopes Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Eduardo Soares Luis Felipe Miguel Marilena Chauí Celso Favaretto Eugênio Trivinho José Costa Júnior Mariarosaria Fabris Andrew Korybko Gabriel Cohn Jorge Luiz Souto Maior Liszt Vieira Lucas Fiaschetti Estevez Sandra Bitencourt João Adolfo Hansen Ricardo Fabbrini Jorge Branco Marcos Silva Bruno Machado Ari Marcelo Solon Leda Maria Paulani Dênis de Moraes Priscila Figueiredo Osvaldo Coggiola Ronaldo Tadeu de Souza José Micaelson Lacerda Morais Marjorie C. Marona João Sette Whitaker Ferreira Plínio de Arruda Sampaio Jr. Flávio R. Kothe Jean Pierre Chauvin Francisco Pereira de Farias Vinício Carrilho Martinez Luiz Marques João Feres Júnior Mário Maestri Daniel Costa Annateresa Fabris Otaviano Helene Eliziário Andrade Marcus Ianoni

NOVAS PUBLICAÇÕES