A divisão do trabalho reacionário

Imagem: Ciro Saurius
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Por HENRI ACSELRAD*

Uma adesão convicta ao projeto neoliberal implica a proteção de poucos grandes interesses e a desproteção das maiorias

Após a eleição presidencial de 2018, falou-se, com frequência, na possível contradição, no interior do governo federal, entre, por um lado, o programa ultraliberal do capital financeiro, capitaneado por um economista formado na Escola de Chicago, e, por outro, um suposto nacionalismo autoritário sustentado por militares que ganharam presença numérica na máquina governamental. Com o espetáculo mercadológico da eleição para a presidência da Câmara e do Senado, neste início de 2021, ficou clara a ausência de contradição e mesmo a convergência de forças na promoção de um trabalho reacionário: por um lado, forças que pretendem aprofundar as condições de exploração dos trabalhadores e, por outro, as que pressionam pela expropriação de territórios indígenas e tradicionais para favorecer a expansão do projeto agromineral. Ou seja, um projeto que busca aumentar a lucratividade dos negócios, ao mesmo tempo, pela elevação dos ganhos por unidade de trabalho empregada e pela extensão das áreas exploradas, notadamente pela ocupação de terras públicas. Ambos os blocos de forças convergem na desmontagem de direitos, configurando um liberal-autoritarismo que favorece o grande negócio privado e expõe, sem inibição, as estruturas não-democráticas subjacentes às instituições formais da democracia; um projeto em que o Estado se mostra forte contra os despossuídos e servil para com os poderosos[i].

A configuração desta articulação entre liberalismo e autoritarismo era já antevista por analistas que acreditavam haver uma continuidade lógica entre neoliberalismo e neoconservadorismo. A filósofa política Wendy Brown, por exemplo, sustentava, na primeira década dos anos 2000, que a economia neoliberal e a política neoconservadora deveriam ser entendidas como as duas faces de uma mesma moeda, ambos os processos convergindo na captura da população para os interesses das grandes corporações[ii].

O casamento entre neoliberalismo e neoconservadorismo estaria, assim, fundamentando modos de ação através dos quais os aparatos formais da soberania popular poderiam parecer intactos, enquanto governos autoritários e poder das corporações, sob o manto de uma alegada racionalidade mercantil, se combinariam para esvaziar de qualquer conteúdo a ideia de democratização da política. A pretensão de abandonar a vida política às leis do mercado penetrou o Estado, justificando medidas indiferentes à pobreza, ao desenraizamento social, à discriminação racial e à destruição do meio ambiente e à saúde coletiva. Tornou-se explícita a recusa de tudo o que possa evocar solidariedade entre pessoas, entre povos e gerações. Aqueles sujeitos que, na retórica neoliberal, são apresentados como incapazes de competir, por não se terem mostrado suficientemente empreendedores, são, para o neoconservadorismo, inferiores. Na lógica deste liberalismo autoritário, não se justificaria, para os supostos “perdedores” na ordem competitiva, a adoção de políticas de combate à desigualdade ou de proteção à saúde. A eles restaria aceitar trabalhar nas condições que lhes são ofertadas, desprovidos de direitos e de proteção social – ou mesmo de máscaras antipandemia – condições supostas nas quais o “mercado” se mostraria inclinado a acolhê-los. Assim é que, compassivo com relação aos que dizem sofrer a “horrível condição de ser patrão”, o presidente eleito advertiu os trabalhadores de que, caso não abrissem mão de seus direitos na medida requerida “pelo mercado”, não obteriam emprego[iii]

A portaria do Ministério do Trabalho que, em 2017, tentou, sem sucesso, legalizar o trabalho escravo, não deveria, por exemplo, ser entendida em separado do projeto empresarial mais amplo de aplicar, no seio do mercado de trabalho formal, uma reforma trabalhista que buscasse tornar mais estritas as normas disciplinares impostas não só aos escravizados pela dívida, mas aos trabalhadores em geral. Não por acaso representantes do agronegócio alegaram, na ocasião daquela iniciativa, que “as novas condições políticas” – leia-se, aquelas geradas pela armadilha parlamentar destituinte de 2016 – autorizavam a legalização do trabalho em condições degradantes[iv]. Nas condições vigentes a partir de então, não se trataria tanto de um retorno às formas tradicionais de imobilização do trabalho – dispositivos de fixação da mão-de-obra em espaços isolados e de pouca visibilidade pública – mas da emissão de um sinal pedagógico das possiblidades de se impor maior penibilidade e precarização do trabalho ao conjunto dos trabalhadores. As falas governamentais, que, em meados de 2019, começaram a evocar a necessidade de uma nova reforma trabalhista o confirmaram.

O recente caso húngaro – que em muitos aspectos inspira o liberal-autoritarismo brasileiro – é típico do repertório dúplice de regulação hoje disponível: o governo autoritário e racista combate a imigração e, ao mesmo tempo, propõe leis trabalhistas que – na perspectiva do movimento local de protesto contra a (des)regulação das horas extras – legalizam o trabalho em condições análogas à escravidão[v]. Em condições neoliberais “normais” de um mercado idealizadamente aberto, a entrada de imigrantes permitiria o exercício de uma pressão das forças do mercado pela redução dos rendimentos e dos direitos dos trabalhadores húngaros. Mas o governo autoritário e xenófobo de Orbán optou por impor, pelo confronto, a destruição de direitos, prescindindo da concorrência de trabalhadores imigrantes, autorizada pela União Europeia. Tanto “o mercado” como as medidas diretamente autoritárias que retiram direitos aos mais desprotegidos são mecanismos a que o poder pode recorrer – de forma combinada ou não – para ajustar as relações de trabalho aos requisitos das corporações.

No caso brasileiro, com seu modelo de desenvolvimento neoxtrativista fortemente dependente do controle empresarial sobre a terra e seus recursos, as reformas liberais favoreceram, por exemplo, o exercício de uma chantagem de localização dos investimentos – pela promessa de emprego e receitas públicas – destinada a obter o consentimento dos trabalhadores e moradores de áreas afetadas por grandes projetos predatórios de investimento. Se não aceitassem as condições sociais e ambientalmente danosas impostas pelos projetos agrominerários, os investimentos seriam dirigidos para outro lugar mais desregulado e desorganizado. Alegava-se, por outro lado, que quilombolas, indígenas e pequenos produtores rurais – cujas terras situam-se com grande frequência em localidades ambicionadas pelos complexos agroquímico e mineral – não sobreviveriam à concorrência dos negócios empresariais tidos por mais racionais e competitivos. Com o liberalismo autoritário, o discurso racista incrustado no próprio Estado pretende afirmar a inferioridade intrínseca destes sujeitos e de suas formas produtivas: “nada têm a oferecer ao Estado e ao mercado”, não devendo ser objeto de nenhum “assistanato” ou “coitadismo” e outras expressões catadas no repertório das ideologias escravistas e coloniais[vi].

As reformas liberais iniciadas nos anos 1980 visaram, em todos os países, corroer a solidariedade internacional entre trabalhadores. A liberdade de movimento adquirida pelos capitais através do planeta foi operada de modo a estimular os trabalhadores de todo mundo a se desunir, concorrendo entre si através da queda dos salários, da redução dos direitos trabalhistas, da precarização das condições ambientais de trabalho e moradia. A relocalização da produção em áreas menos reguladas onde vigoram menos direitos explicaria tanto a destruição de empregos nos países onde os capitais são mais regulados, como também, por exemplo, a ausência, em plena pandemia, da produção de máscaras cirúrgicas em certos países europeus. Isto poderia, por certo, explicar a adesão de uma parcela dos trabalhadores europeus a políticas xenófobas, em nome da suposta proteção de postos de trabalho que foram extintos em razão da fuga de capitais para áreas menos reguladas.

As lutas por redistribuição de renda e obtenção de direitos tiveram, assim, de se haver com golpes deste tipo, desferidos através das “deslocalizações” dos empreendimentos – que acionam a chamada “chantagem locacional dos investimentos” – bem como dos “reajustamentos produtivos”, que propugnam tecnologias que geram relativamente menos empregos. Mas paralelamente, nas periferias do capitalismo, as lutas identitárias e por reconhecimento de direitos territoriais vieram se intensificando e legitimando cada vez mais amplamente suas justificações. Eis, por exemplo, o que disseram representantes de povos e comunidades tradicionais na V Conferência Geraizeira, realizada em Minas Gerais em 2018: “Muitos discutem hoje o mundo do bem viver. Nós, comunidades tradicionais, temos isso nas mãos. O que vale não é o amor ao dinheiro; o que vale somos nós, que impedimos que os rios sequem e podemos dormir de janela aberta, discutindo nossa organização social”.[vii]

O liberalismo autoritário não tem escondido sua disposição a constranger estas lutas, que colocam em causa todo o sentido dos modos dominantes de produção e consumo. E isto ele o faz através do exercício do racismo explicito, no terreno ideológico, ou, no campo legal, pela interrupção das demarcações de terras indígenas, pela subtração de terras e recursos aos grupos étnicos não dominantes, pela liberalização dos processos de licenciamento ambiental de modo a incorporar territórios quilombolas e indígenas ao agronegócio e à mineração.

O esforço político aplicado a destruir direitos e afirmar desigualdades tem sido, assim, atravessado por um novo tipo de divisão do trabalho reacionário: por um lado, o exercício de formas de violência discriminatória e, por outro, os mecanismos de uma suposta racionalidade mercantil politicamente construída. Ao projeto ultraliberal caberia reorganizar a concorrência interna ao campo dos capitais, o que inclui a própria gestão “mercantil” da relação salarial (vide discurso do Ministro da Economia anunciando o fim do que entende por “privilégios dos sindicatos”[viii]), enquanto ao conservadorismo autoritário caberia preparar o terreno para a expansão do mercado nas áreas ocupadas por grupos étnicos e tradicionais. Recorre-se, para tanto, a estratégias ditas de “não-mercado”[ix], a saber, aquelas que buscam manipular a agenda das políticas governamentais, dentro ou fora do Congresso, “fazendo com que as escolhas de políticas sejam influenciadas pelo setor privado” [x], na perspectiva, no caso, da ampliação do controle direto de grandes corporações sobre territórios e recursos.

Após a crise financeira de 2008, Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve dos EUA, admitiu ter errado “por acreditar que o juízo dos banqueiros em defesa de seus próprios interesses era a melhor proteção possível para todos”[xi] Uma adesão convicta ao projeto neoliberal implica a proteção de poucos grandes interesses e a desproteção das maiorias. Em sua versão autoritária, este projeto encarna o que o psicanalista Dany Dufour chamou de “desinibição pulsional” pela qual os poderosos autoexibem, sem constrangimento, sua bandeira perversa – que não considera a existência dos outros e não a quer considerar – que tem na avidez privada o princípio do interesse geral[xii].

*Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).

Notas


[i] A noção de liberalismo autoritário foi formulada no debate jurídico-político da Alemanha pré-hitleriana, pelo jurista Hermann Heller, como o regime em que “o Estado não pratica abstinência nas políticas de subvenção aos grandes bancos, às grandes empresas industriais e às grandes explorações agrícolas, mas promove um desmantelamento autoritário da política social”; H. Heller “Autoritarer Liberalismus”, Die Neue Bundschau, vol. 44, 1933, pp. 289-298 apud G. Chamayou, La Société ingouvernable – une généalogie du libéralisme autoritaire, La Fabrique, Paris, 2018, p. 230.

[ii] Wendy Brown, Les Habits neufs de la politique mondiale – néo-libéralisme et néo-conservatisme, Les Prairies Ordinaires, Paris, 2007.

[iii] É difícil ser patrão, Folha de SP, 4/12/2018.

[iv] ‘Só temos a comemorar’, diz Blairo sobre regras para fiscalizar trabalho escravo, O Globo, 17/10/2017.

[v] Milhares protestam contra premiê Orbán e lei de hora extra na Hungria, Folha de SP, 5/1/2019.

[vi] Nos anos 1920, um explorador estadunidense do sertão brasileiro assim dizia das populações caboclas do Mato Grosso: “… é fácil viver nestas plagas ubertosas porque as raças mestiças tão comuns aqui herdaram os hábitos inertes e descuidados de seus antepassados índios e africanos: apenas alguns têm ambição de erguer-se da vida animal (…); para o Estado são verdadeiro zero, quase nada trazem ao mercado e ainda menos levam para casa; vivem ao deus dará, satisfeitos porque têm provisões para um dia e palhoça que os abrigue. Hão de morrer à medida que da terra se forem apossando gentes mais industriosas. Pois que morram – é o único serviço que podem prestar ao país”. Herbert H. Smith, Do Rio de Janeiro a Cuyaba: notas de um naturalista, Cia. Melhoramentos de São Paulo, 1922, p. 43. Disponível em https://www.biodiversitylibrary.org/item/86867#page/7/mode/1up

[vii] Dayrell, C.A., De Nativos e de caboclos: reconfiguração do poder de representação de comunidades que lutam pelo lugar, Tese Doutoramento, PPGDS, UNIMONTES, Montes Claros, 2019. p. 392

[viii] Vida dos sindicatos não vai ser ‘como antigamente’, diz Guedes, O Globo, 07/02/2019.

[ix] Segundo o discurso managerial, as estratégias de “não-mercado” são aquelas pelas quais “as empresas buscam afetar os meios político e social”, gerenciando “suas interações institucionais, sociais e políticas de modo a aumentar sistematicamente e racionalmente as suas capacidades de criar e captar valor”; Rufin, C.  Parada, P.  Serra, E. O Paradoxo das estratégias multidomésticas num mundo global: testemunho das estratégias de “não-mercado” nos países em desenvolvimento, Revista Brasileira de Gestão de Negócios Vol. 10, n. 26, p. 63-85, jan./mar. 2008, p. 63-85.

[x] Sethi, S. Prakash, “Corporate political activism”, California Management Review, spring 1982, vol. 24, n.3, p. 32

[xi] Pierre-Antoine Delhommais, Alan Greenspan fait part de son “grand désarroi”, Le Monde, 25/10/2008.

[xii] Dany-Robert Dufour, La cité perverse – Libéralisme et pornographie, Denoel, Paris, 2009.

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