A guerra do Afeganistão

Imagem: Ali Yasser Arwand
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Por GILBERTO LOPES*

“Que diabos estou fazendo aqui?”, perguntava-se um jovem soldado nova-iorquino

É sexta-feira 13 de agosto e, no final da semana, ficou claro que todas as previsões se estreitaram. Os talibãs avançavam rapidamente sobre Cabul, que via o cerco se fechando, que a capital afegã estava ficando sem ar.

As potências ocidentais preparavam-se para a queda de Cabul depois que os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e o Canadá anunciaram o envio de tropas para o país a fim de assegurar a evacuação de seus cidadãos. “É difícil exagerar uma tragédia em que milhares de pessoas perderam a vida, milhões se tornaram refugiados e bilhões de dólares evaporaram apenas para que o Afeganistão acabasse exatamente no mesmo lugar em que estava há 20 anos”, diz a Foreign Policy, na introdução de uma enorme cobertura intitulada “O Ocidente prepara-se para a queda de Cabul”.

Não faltaram apelos para um retorno urgente das tropas. “Biden deveria rever sua decisão de abandonar o Afeganistão”, pedia John Allen, presidente do Brookings Institution, um centro de pensamento conservador em Washington, enquanto se fechava o cerco a Cabul. General da reserva do corpo de marines, ex-comandante das forças norte-americanas no Afeganistão, Allen sugeriu a Biden que definisse algumas “linhas vermelhas”, limites que, caso atravessados pelos talibãs, implicariam uma nova invasão dos EUA. “Não se deve permitir que os talibãs entrem em Cabul”, disse Allen. No final, foram os líderes talibãs que ordenaram às suas tropas que permanecessem nos arredores da cidade. “Queremos evitar um derramamento de sangue, destruição, saques. Instruímos nossas forças a permanecerem às portas de Cabul”, disse Suhail Shaheen, porta-voz dos talibãs, à BBC.

Biden tinha decidido acabar com a guerra mais longa da história dos Estados Unidos. “Foi uma decisão correta”, disse Allen, “mas as consequências deveriam ter sido previstas e agora deve agir de maneira rápida e decisiva se quiser evitar a catástrofe iminente que se desenrola diante dos nossos olhos”.

O primeiro-ministro Boris Johnson tinha abordado a questão no Parlamento, dizendo que “nunca haverá um bommomento para deixar o Afeganistão”. Ben Wallace, secretário de defesa britânico – o principal parceiro dos Estados Unidos no Afeganistão – disse na semana passada que a Grã-Bretanha estava tão horrorizada com a decisão dos Estados Unidos de se retirar completamente do país que consultou seus parceiros da OTAN se estavam dispostos a reunir uma força capaz de sustentar o governo afegão, sem o envolvimento dos Estados Unidos. Algo que, como se viu, a OTAN não estava em condições de fazer.

20 anos das torres gêmeas

O próximo mês marca os 20 anos do ataque às torres gêmeas em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001. A administração Bush decidiu então procurar os autores onde se acreditava que teriam procurado refúgio. Uma coalizão liderada pelos Estados Unidos invadiu o Afeganistão em outubro, expulsou os talibãs do poder e obrigou o líder da Al-Qaeda, Osama Bin Laden, a asilar-se no vizinho Paquistão.

Há dez anos, em 2 de maio de 2011, Bin Laden foi morto na cidade paquistanesa de Abbottabad, numa operação das forças de segurança norte-americanas, na administração Obama. Transmitida ao vivo, a operação assumiu características espetaculares. Numa sala de reuniões, Obama e seus assessores mais próximos, incluindo sua secretária de estado, Hilary Clinton, assistiam ao avanço do comando sobre a casa onde Bin Laden vivia. Parecia o fim de uma era.

Dez anos depois, a história parece longe de terminar, mesmo que a guerra, que começou há 20 anos, tenha acabado, como disse Mohammad Naeem, um porta-voz do talibã, à rede Al Jazeera. “Conseguimos o que queríamos: liberdade para nosso país e independência para nosso povo. Não permitiremos que utilizem nosso território para atacar alguém; não queremos prejudicar os outros”, disse Naeem.

Biden, por sua vez, um veterano dos anos Obama, vive seu próprio momento na tumultuosa história do Afeganistão, “uma tragédia longamente preparada”, disse o comentarista do The Washington Post, Ishaan Tharoor. Sessenta mil membros das forças de segurança afegãs, e o dobro de civis, morreram nesta guerra, além de outros 2.500 soldados norte-americanos, 450 britânicos e centenas de outras nacionalidades. Mais de 20.000 pessoas ficaram feridas. Com um custo financeiro impossível de estimar com exatidão, que alguns calculam em mais de dois trilhões de dólares.

Que diabos estou fazendo aqui?

“A guerra mais dispendiosa da história serviu para alguma coisa?”, perguntou o especialista em segurança da BBC, Frank Gardner. Gardner é o autor de um artigo publicado em 30 de abril, quando a decisão de retirar as tropas norte-americanas (e asde seus aliados) já estava em curso. Esteve várias vezes no Afeganistão nas áreas sob controle das tropas estadunidenses, britânicas e dos Emirados Árabes Unidos, assegura.

Sua nota termina com uma recordação. “Comemos bife de chorizo texano – trazido diretamente da base aérea estadunidense em Ramstein, na Alemanha – numa base de artilharia do exército norte-americano, a cerca de 6 km da fronteira com o Paquistão (antes que os talibãs disparassem uma bateria de foguetes contra essa base). Na sequência, um soldado de 19 anos do estado de Nova Iorque pegou uma guitarra e começou a cantar: ‘Que diabos estou fazendo aqui? Eu não pertenço a este lugar’”.

Gardner também assinala que, de acordo com o grupo de pesquisa Action on Armed Violence (Ação contra a violência armada), em 2020 houve mais afegãos mortos por dispositivos explosivos do que em qualquer outra parte do mundo. A frase leva-nos a outro cenário, o descrito pelo escritor e cineasta Atiq Rahimi, um afegão que vive atualmente em Paris. É autor de romances premiados, tais como “A pedra da paciência”, que ganhou nada menos que o Goncourt, e também de filmes, como “Terra e cinzas”, que nos introduz neste mundo afegão[i].

A câmera fixa, focando uma estrada poeirenta do deserto, conta a história, num ritmo lento e sem esperança, de um ancião, Dastagir, à procura de seu filho, Morad, trabalhador numa mina não muito longe. Ele leva seu neto, Yassin, filho de Morad. Diz-lhe que toda a família foi morta num ataqueao povoado de Abqol, encravado nas montanhas a cerca de 200 km a sudoeste de Cabul.

– É  verdade que Abqol foi bombardeado?
– Muitas pessoas morreram?
– Em Abqol? Não resta nada, o povoado foi destruído.

“Terra e Cinzas” aproxima aqueles que não conhecemos o Afeganistão de sua paisagem e de seu povo. De sua tragédia. Mas também dos personagens notáveis que contam a história.

Qual guerra?

Que diabos poderia um jovem nova-iorquino de 19 anos fazer aqui? Matar quem? Ganhar qual guerra? “Não fomos ao Afeganistão para construir um país. Tínhamos dois objetivos limitados: enviar Osama Bin Laden para os portões do inferno e eliminar a ameaça de que pudessem lançar, a partir do Afeganistão, outro ataque terrorista contra os Estados Unidos”, disse o presidente Joe Biden numa conferência recente.

Num longo artigo na edição de setembro/outubro da Foreign Affairs, Nelly Lahoud, estudiosa da ideologia da Al-Qaeda e do Estado Islâmico, analisa a origem do ataque às torres gêmeas, os objetivos de Bin Laden e de sua organização, com base numa série de documentos capturados pelas forças norte-americanas na residência de Bin Laden, especialmente notas manuscritas num caderno de 220 páginas, com transcrições de conversas com seus familiares mais próximos, dois meses antes de sua morte. “Documentos que permitem uma aproximação incomparável da mente de Bin Laden”, diz o autor.

Os Abbottabad papers incluem também as notas manuscritas de Bin Laden de 2002, onde se pode ver “a origem da ideia do 11 de setembro”. Duas semanas após o ataque, numa breve declaração, Bin Laden tinha prometido que “nenhum norte-americano, nem ninguém que lá vivesse, poderia desfrutar de segurança até que a segurança se tornasse realidade para nós que vivemos na Palestina, nem antes que os exércitos de infiéis abandonassem a terra de Maomé”.

Mas, de acordo com Lahoud, Bin Laden nunca pensou que os Estados Unidos responderiam ao ataque às torres gêmeas com a guerra e a invasão do Afeganistão. Ao contrário, pensava que o atentado desencadearia protestos populares, como na Guerra do Vietnã, exigindo a retirada dos Estados Unidos dos países islâmicos. Isso não aconteceu, e o presidente Bush despertou o apoio dos norte-americanos ao que chamou de sua “guerra contra o terror”. Então, quando todas as previsões já admitiam a iminente queda de Cabul, o cenário – para Lahoud – era de “um sucesso catastrófico” para Bin Laden, frase com a qual  intitula seu artigo.

Os ecos de Saigon

Com os avanços da semana passada, os talibãs tinham tomado o controle de 17 das 34 capitais das províncias do Afeganistão, incluindo as duas principais cidades depois da capital, Kandahar e Herat, avançando rapidamente para Cabul e cercando a cidade. Com o desmoronamento do exército afegão, multiplicaram-se as análises sobre as consequências da derrota dos aliados e do retorno do Talibã ao poder em Cabul.

“A decisão de Biden de deixar o Afeganistão, mesmo contra os conselhos de líderes políticos e de especialistas, é profundamente preocupante devido à falta de planejamento sobre uma questão política tão importante, e com consequências a longo prazo”, disse o presidente da Brookings Institution. O resultado dessa política é “um verdadeiro desastre não só para o Afeganistão, mas também para a administração e para os valores que diz defender”, acrescentou ele.

Allen não acreditava nas possibilidades das negociações que o governo afegão e os talibãs realizavam em Doha, a capital do Qatar, quando um triunfo militar parecia possível. “A administração Biden está tentando desesperadamente reunir diferentes atores regionais, desde os vizinhos do Afeganistão à União Europeia, Rússia e China, para apresentar uma frente unida aos emissários talibãs no Qatar”, disse Ishaan Tharoor ao The Washington Post. “Mas as exigências dos militantes só aumentam, enquanto os ecos de Saigon, em 1975, soam cada vez mais em Cabul em 2021”, disse ele.

Do ponto de vista de Allen, é irônico que os Estados Unidos cedam terreno aos chineses no Afeganistão, que ocuparão o espaço deixado no país pela retirada norte-americana e consolidariam uma aliança com o Paquistão, ajudando a isolar seus rivais indianos. A retirada também contribuiu para criar maiores atritos entre Washington e Londres, na opinião de Patrick Wintour, editor diplomático do jornal inglês The Guardian. Uma questão que ele considera “potencialmente perigosa” caso se confirmem as advertências dos britânicos sobre um possível recrudescimento do terrorismo e um massivo movimento migratório para a Europa, que o Talibã afirma querer evitar.

Situação sombria

O fim da guerra estava mais próximo do que alguns analistas imaginavam, tão somente na semana passada. As promessas do governo de Cabul de recuperar o território capturado pelos talibãs “soam cada vez mais vazias”. “A situação parece certamente sombria para o governo afegão”, dizia uma análise de Jonathan Beale, correspondente de defesa da BBC, publicada em 12 de agosto. “Inúmeros generais estadunidenses e britânicos disseram uma e outra vez que criaram um exército afegão poderoso e capaz. Promessas que hoje parecem bastante vazias”, acrescentou ele.

Diante da evidência de que as tentativas de evitar a derrubada final do governo afegão nas negociações de Doha pareciam condenadas ao fracasso, o presidente do Conselho Superior para a Reconciliação Nacional do Afeganistão, Abdullah Abdullah, apelou ao Conselho de Segurança da ONU para que encontrasse uma alternativa, sem que o governo afegão seja capaz de deter a ofensiva talibã com seus próprios recursos.

O secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, revelou que os membros da Organização se reuniram na última sexta-feira para trocar impressões sobre a situação no Afeganistão. “Nosso objetivo é apoiar o governo afegão e as forças de segurança tanto quanto possível”, disse ele. Stoltenberg disse que manteriam uma presença diplomática em Cabul, mas que um governo do Talibã, resultante da ocupação militar de Cabul, não seria reconhecido pela “comunidade internacional”, uma referência que parece estar limitada aos membros da OTAN e a alguns de seus aliados.

Com a queda do governo e o presidente Ashraf Ghani deixando o país; com a bandeira arriada em sua embaixada, os Estados Unidos organizaram a evacuação de todo seu pessoal diplomático em Cabul. Estando os talibãs sentados no palácio do governo, seus porta-vozes asseguravam que não haverá vingança contra os funcionários do governo anterior, nem contra seus serviços de segurança, e que a “vida, a propriedade e a honra” de todos seriam respeitadas.

Os talibãs afirmam que não querem viver isolados, que querem manter canais de comunicação com governos estrangeiros, que a forma de governo que estabelecerão ficará clara em breve. Uma nova história começa…

*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor de Crisis política del mundo moderno (Uruk).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Nota


[i]    O filme pode ser visto aqui: https://archive.org/details/445f867.

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