Por RICARDO FABBRINI*
As fotografias de Saggese não são registros da floresta amazônica que em regime encomiástico louvaria seu esplendor ou foto-jornalismo ecológico
As fotografias de Antonio Saggese articulam novos modos de pensar e produzir uma imagem, opondo-se à imagem hegemônica na sociedade do espetáculo ou da hipervisibilidade do presente. Seu desafio é contrapor à estonteante cadeia das imagens, na qual cada clichê meramente conduz até o próximo – o que nos remete à ideia de “Tela total” de Jean Baudrillard – uma imagem que detenha algum enigma, que indicie algum segredo, mistério ou recuo suscitando no observador um olhar mais moroso, detido, senão apreensivo.[i]
Suas fotografias são imagens de exceção que visam a devolver a visão ao olho saturado, cegado, pelo excesso de imagens vazias, ainda que intensíssimas do ponto de vista sensorial, da mass-mídia ou da rede digital, reagindo, assim, à dita “iconomania contemporânea”.[ii] O desafio do observador de suas fotografias é “o que há para ver nessa dada imagem”; e não “o que se verá na próxima imagem”.[iii]
Na trajetória de Saggese é recorrente a rasura do clichê na busca de imagens enigmas, desde a série “Mecânica”, de 1988. Nessa série, vemos oficinas mecânicas, borracharias ou marcenarias, nas quais junto às ferramentas como alicates, serrotes e polias, repousam antigos calendários ou folhinhas estampando pinups da revista Playboy – tudo imerso em poeira ou serragem. São fotografias de imagens estereotipadas do corpo feminino – como as da publicidade, cinema ou televisão – que é figurado como bonecas de plástico, em cor de cera, sem qualquer viço ou traço de vida vivida, como fetiche ou simulacro, enfim. Dispostas nas paredes das oficinas essas imagens clichês surgem aqui, na foto de Saggese, descentralizadas, desbotadas ou rasgadas – como nas decollages de Jacques Villegé – em tonalidade azulada ou terrosa indiciando melancolia.
Essa rasura da figuração estereotipada do corpo feminino nas mass-mídia, ou dos modos de produção de um saber ou de uma verdade sobre o corpo, que são na realidade simulacros de uma prática libertadora, é visível também na série Espirito de corpo, de 1970 a 1990, em Negativo PB, na qual regiões do corpo são figuradas como paisagem terrestre. Na geografia parcial do corpo em repouso, cujas formas côncavas ou convexas aludem a vales e colinas – evocando sem epigonismo, o pictorialismo de Edward Weston ou Helfried Strauss – desabam os clichês. Nessas imagens o corpo não é glamourizado pelo photoshop, nem estampado como pornografia, no sentido da banalização do corpo e da mercantilização do prazer, mas ungido pela beleza inquietante, vinculada ao erotismo e à sedução, ao sagrado e ao segredo.
Saggese afirmou reiteradas vezes que o aparelho fotográfico baseado na convergência entre sensor eletrônico e processamento por computador permite a qualquer pessoa, sem habilidade ou saber prévios, captar em instantes inúmeras imagens, fixas ou em movimento, com alta resolução, pelo simples gesto de acionar um botão. É por meio desse gesto automático, como nos atuais selfies compulsivos, que cada fotografia assim obtida reafirma a sintaxe convencional das imagens que circulam nas telas do computador, vídeo, televisão, ou celular. Saggese não busca uma imagem de resistência recorrendo a câmaras analógicas low-tech, mas, ao contrário, utiliza câmeras digitais de altíssima sensibilidade, modificadas para captar o infravermelho, com lentes de grande luminosidade, e com sensores que alteram a profundidade; posteriormente, essas imagens assim produzidas são por ele modificadas no computador, na expectativa que dessa intervenção técnica resultem potencialidades artísticas impossíveis de serem obtidas nas películas fotoquímicas.
Desse modo, Saggese não converte seu domínio técnico de novas lentes, câmeras e programas de computação – que integram o Aparelho como “processo codificador da caixa preta”, na caracterização de Vilém Flusser – em fetichismo da técnica.[iv] Não explora o efeitismo fácil, ilustrativo, utilitário, digestivo, das imagens técnicas que realizam o que já está inscrito previamente no programa da câmara digital, mas “brinca com ele”, senão contra ele, como veremos, visando a produzir uma imagem inaudita que surpreenda o observador. Se na sociedade do espetáculo, o que se ostenta é o valor de exibição da imagem, aquilo que é feito na intenção de produzi-la – no culto ao aparelho –; diferentemente, nas fotografias de Saggese que reagem às intervenções meramente decorativas, à saturação de esteticismo, o que se vê é uma imagem incompatível com o projeto de sua exibição.
Vejamos as séries de fotografias Hiléia e Yg. A série Hiléia é resultado das viagens de Saggese, entre 2014 e 2016, a igarapés, furos e igapós, no Pará. Nessas viagens, com equipamento leve, Saggese adentrou sorrateiramente à mata, que não é mais virgem, como atestam as paliçadas e embarcações, visíveis em suas fotografias, para flagrar a mirabilia que comparece por si mesma, exigindo, no entanto, para ser apreendida, disposição prévia por parte do fotógrafo. Não se tratava, assim, de produzir o acaso – ou de tomá-lo como acaso objetivo enquanto estranho encontro entre duas séries de eventos simultaneamente similares e independentes, ardilosamente arquitetado pela Natureza, como queriam os surrealistas – mas de dedicar simplesmente uma atenção redobrada a tudo o que se encontra fora de uma expectativa provável – como procederá também, como se verá, no vídeo urbano Noir. Saggese coloca-se, em suma, em meio à mata, em estado de receptividade integral – análogo à atenção flutuante – para apreender as poderosas forças atmosféricas ocultas nas coisas, senão nos lugares, ou em seus próprios termos certeiros, próximo aqui aos arqueiros, para colher “a fortuna, que premia os insistentes”.
“Hiléia”, do grego hylé, é “lugar de floresta”. Hylé é “tudo que é tocante à madeira”, e por extensão “material de construção”, mas é também causa – se recorrermos a Aristóteles – “como aquilo que algo se faz e se apresenta”, como ensina Leon Kossovitch, que amalgama da seguinte forma, as duas acepções: “Floresta de madeira com que se produz alguma coisa, matéria como massa copada e tudo quanto aqui e ali raleia, sem desertificá-la, porém”, indiciando a presença do homem.[v] Nas imagens de Hiléia não temos as convenções das artes figurativas da fotografia naturalista ou da pintura de paisagem, tais como linha do horizonte, pontos de fuga, foco de luz, perspectiva aérea ou atmosférica, que garantiriam o modulado, os volumes, a proporção entre as figuras; enfim, a cena ilusionista.
Nessas imagens, a composição, entendida como unidade na multiplicidade de elementos, ou ainda, como arranjo sintagmático que subordina, organicamente, as partes ao todo (na chave da hipotaxe) é substituída pela justaposição de elementos heterogêneos (na chave da parataxe).
A singularidade da série Hiléia está no efeito gráfico, de calcografia, ponta-seca ou bico-de-pena, dessas fotografias. Nessas imagens fotográficas não há sfumato, degradé ou meios-tons de negruras, produzindo modelado ou ilusão de volume, mas hachuras e superfícies quase chapadas. No computador, Saggese realça algumas linhas ou mesmo áreas, tornando-as luminescentes, e rebaixa outras, obscurecendo-as, de tal modo que o efeito final é a intensificação do contraste preto e branco. Entre as alterações que impedem o trompe-l´oeil, o efeito de ilusão ou verossimilhança naturalista próprio às ditas vistas de paisagem, temos, em dada imagem dessa série, um tratamento digital que acentuando a escuridão das águas torna a cena inverossímil em virtude do clarão do céu, embaralhando dia e noite, à René Magritte.
E mais: as tomadas muito próximas ou muito fechadas da floresta bem como o detalhamento digital ulterior de suas folhas, troncos e nuvens, também impedem o “efeito de real”, ou seja, que se tome a imagem fotográfica como mundo duplicado que continuaria para além da moldura. Destituída a perspectiva, o observador, em outros termos, não projeta mais, ilusoriamente, a imagem para fora do quadro. O abandono da profundidade impedindo que a imagem seja prolongada ao contracampo (ao extraquadro), alerta para a materialidade da fotografia, enquanto construto de linguagem, evidenciando, consequentemente, outra cena até então invisível ou reprimida, a do próprio trabalho do fotógrafo, – a de que tais imagens foram resultado de uma seleção de procedimentos intencionalmente escolhidos.
Na série Yg (termo tupi-guarani que designa água) Saggese enveredou por igarapés e igapós na floresta amazônica. Embrenhou-se na mata por rios de águas claras e, sobretudo, escuras, porque de baixa profundidade, recorrendo nesses casos a canoas (igarapés: “caminho de canoa”; ygara:canoa; apé:caminho). São fotografias de vegetação ribeirinha, constituída tanto por arbustos, vitórias régias, cipós e musgos, plantas comuns nas áreas alagadiças, quanto por árvores como seringueiras, buritis e sumaúmas. Em diversas imagens de Yg temos efeito gráfico semelhante ao de Hileia. Suas imagens também foram digitalmente alteradas por Saggese que salpicou polens de luz pela superfície da fotografia. Em algumas dessas imagens ele modificou mais do que pontos, áreas, tornando, por exemplo, o reflexo no espelho d´água, um brilho de pura prata, ofuscando assim a linha divisória entre rio e céu. No entanto, há também nessa série, imagens em tonalidades acastanhadas ou púrpuras nas quais o efeito pictórico prevalece sobre o efeito linear, a mancha triunfa sobre a linha, atenuando o caráter gráfico de Hiléia.
Nesses casos temos uma efetuação análoga a da série Pittoresco, exposta em 2015, que remetia ao sentimento do sublime romântico, como o de Edmund Burke do final do século XVIII. Seu intento, nessas obras, é atribuir às imagens técnicas da natureza o poder de produzir no observador um efeito de espanto ou assombro, que não resultam dos registros edulcorados da natureza que circulam ininterruptamente na mídia ou rede digital, como nos portais turísticos ou ecológicos. Nessas imagens de Saggese, ao contrário, tudo é posto a rodopiar de modo que o observador, como que tomado por uma paixão escópica (ou pela loucura do olhar), é arrastado por um torvelinho de formas, luzes e sombras. Se a associação com o dito romantismo já foi aludida a propósito de Pittoresco, é porque nas imagens dessa série figurava-se o negrume das nuvens anunciando tormenta, ou a alvura da espuma das ondas rebentando nas rochas, de tal modo que frente a elas o observador viveria algo análogo a um sentimento de espera ou de suspensão (“Ocorrerá algo?”), que se aproximaria da noção de “assombro” de Burke, entendido como “a paixão causada pelo grandioso e o sublime na natureza”; ou ainda, nos próprios termos do autor, como “aquele estado de alma na qual todos os movimentos são sustados porque o espírito sente-se tão pleno de seu objeto que não pode admitir nenhum outro nem, consequentemente raciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção”. [vi]
É importante salientar, no entanto, que as formas brumosas dessas fotografias – como a “fumaça que se mistura ao ar empoeirado quando atinge certa altura” como descrevia Leonardo da Vinci no Tratado da pintura; os nenúfares de Claude Monet; os sfumatos de Odilon Redon; as vaporizações de J.M.W. Turner; e na linha pictorialista da fotografia, as nuvens de Alfred Stieglitz – levam ao apagamento do referente (do objeto como um dado lugar na floresta) colocando assim a imagem “além das qualidades inerentes do referente”, de tal modo que a floresta não seria mais observada “pelo seu aspecto exterior, mas segundo as regras do belo pitoresco”, na expressão do autor e pintor oitocentista William Gilpin.
Para Saggese o referente desloca-se, na fruição dessas imagens, do mundo dito real ou existente, para outras imagens, não apenas as referidas acima, certamente, mas também às gravuras japonesas do mundo flutuante de Hiroshigue, Hokusai, ou Utamaro (Ukyo-ê); às pinturas de luz branco nácar de Armando Reverón; ou às aquarelas do “Atlas pitoresco dos céus” de Hércules Florence, entre outras referências caras ao fotógrafo.
No trabalho de “pós-produção”, de alteração dos códigos dos pixels visando a introduzir, por exemplo, variações tonais, Saggese coloca em suspeição o próprio caráter de representação (ou até mesmo indicial) da fotografia. Isto porque as imagens digitais conferem visibilidade ao que é imperceptível nos “modos de representação tradicionais” dos filmes fotossensíveis, como mostrou Antonio Fatorelli.[vii] Face essa manipulação digital esmerada na produção da imagem – desse pictorialismo de pixels distinto do pictorialismo da fotografia que emulava a pintura – e sua impressão posterior em borrifos de tinta sobre papel de gravura ou outros materiais, o observador não pode detectar as modificações, e, por conseguinte, se o que ele vê na imagem é representação da floresta, ou seja, se “Isso foi!” efetivamente testemunhado por Saggese, ou não.[viii]
As fotografias de Saggese não são assim registros da floresta amazônica que em regime encomiástico louvaria seu esplendor, ou fotojornalismo ecológico que denunciaria a dilapidação criminosa dos recursos naturais, mas imagens técnicas produzidas por aparelhos (câmeras, lentes e computadores) que suspendem as convenções da fotografia de paisagem, gênero herdado da história da pintura. Saggese, no entanto, não se limita a realizar automaticamente as potencialidades já inscritas nos programas desses aparelhos, como dizíamos. Não os utiliza instrumentalmente para produzir mais fotografias, mas os manipula, “brinca com ele”; “joga contra ele” não se deixando ser por ele dominado. Dessa manipulação – como a alteração de uma imagem obtida por uma câmera digital a partir de outro programa de computador visando a produzir linhas luminescentes ou áreas sombrias – que explora regiões desconhecidas dos aparelhos decorrem “imagens jamais vistas”.
Saggese age conceitualmente porque tecnicamente; o que significa dizer que sua intenção artística precisa ser primeiramente traduzida em conceito (na linguagem do aparelho) para então ser transcodificada em imagem artística pela impressão em papel. Cada fotografia seria assim o resultado de uma relação conflituosa entre “colaboração e combate” entre o fotógrafo e o aparelho, nos termos de Flusser. De tal modo que frente a sua fotografia o observador pode indagar se foi o aparelho que se apropriou da intenção do fotógrafo desviando-a para os propósitos nele programados, ou se foi o fotógrafo que se apropriou da intenção do aparelho submetendo-a a sua própria intenção artística. Se no caso das imagens clichês o aparelho desvia os propósitos do fotógrafo para seus fins programados, reforçando-os, nas imagens enigmas a intenção artística do fotógrafo prevalece sobre o intento codificador do aparelho. Não é negando o progresso técnico e seu automatismo crescente, mas apropriando-se dele que Saggese recupera o poder sobre os aparelhos.
Saggese não busca a especificidade da fotografia, mas os contágios recíprocos entre diferentes linguagens, como a pintura, gravura, ou cinema. “É matéria dos fotógrafos – diz ele – o repertório compartilhado das artes plásticas linhas, planos e texturas”. Em suas séries de florestas temos, assim, cipoais de linhas e respingos como nas pinturas abstratas de Mark Tobey ou Wols. Não há como evitar a analogia, aqui, entre caligrafia e vegetação, arvoredo e escritura, leitura visual e caminho; pois se trata de uma emaranhada caligrafia, ou mais precisamente de um matagal de traços – de um tracejado vegetal. “O universo da floresta é, afinal, um símile dos “textos de difícil tradução”, como afirmava Octavio Paz. O desafio do observador passa a ser assim o de abrir caminho em meio a essa algaravia, essa silva de varia lección. Não há em algumas imagens de Hileia e Ig figuras que se destaquem do fundo, área privilegiada que atraia prioritariamente o olhar. Face essas fotografias o olho do observador, feito nômade, singra a deriva pela superfície da imagem, em busca, nunca satisfeita, de uma figura que, operando como porto seguro (ou “ponto inerte”), permita a ele ancorar-se. A travessia de Saggese pela floresta tem como correlato, assim, o olhar à deriva do observador – destacando-se que para o homo viator, il viaggio é la metafora della vita.
As obras de Saggese solicitam do observador, portanto, um olhar que se processa no decurso do tempo, permitindo-lhe ater-se aos detalhes (nas fotografias) e às pequenas mudanças (no vídeo). Essa percepção das nuances em suas imagens, que requer a espera e a lentidão, o ralenti ou o adiamento, pode parecer fantasiosa em um mundo regido pela performance, pelo desempenho eficaz que se manifesta, por exemplo, no imediato reconhecimento de uma logomarca. É justamente, no entanto, na percepção marcada pela demora, pelas hesitações, pela perda de tempo e pelo tempo perdido, pela paciência em desvelar o segredo de uma imagem enigma, uma face nela que apenas se deixa entrever, que temos a negação da temporalidade da produção de clichês ou mercadorias (da voracidade e da pressa), e, consequentemente, do “hedonismo ansioso”, como quer Lipovetsky, que é próprio ao capitalismo financeiro – que põe em xeque toda visão de longo prazo em favor da circulação acelerada de capitais em escala global.[ix]
E ainda: Se do ponto de vista da produção da imagem, o código digital – como afirma Mark Hansen – criou uma nova “modalidade de participação corporal substancialmente diferente daquela requerida pela experiência estética modernista” (com as imagens analógicas ou fotossensíveis); do ponto de vista da recepção, a impossibilidade de identificação das singularidades técnicas e processuais das imagens digitais, como as que vimos, também requer outra participação do observador, que já foi tida como “consciência afetiva”.[x]
Em Noir, a noite na metrópole, de 2015, Saggese estende o “momento decisivo” na fotografia de Henri Cartier Bresson, à duração de planos-sequências em vídeo. Situando-se entre a imagem estática e a imagem dinâmica, sua “fotografia cinética”, como a denomina, remete ao intento do cinema puro de Hans Richter ou Viking Eggeling, nos anos 1920; ao cinema estrutural de Michael Snow ou Ernie Gehr ou, ainda, a vídeo arte de Andy Warhol ou Bil Viola, nos anos 1960 e 1970, que, cada qual ao seu modo, visava pela dilatação do instante, possibilitar a cristalização do tempo, enquanto duração, na imagem. Seu intento em Noir foi estender o instante decisivo tornando-o imagem-tempo (ou duração), e, na mesma operação, aproximar a imagem-movimento da imobilidade do fotograma, problematizando, desse modo, os regimes temporais da “forma fotografia” e da “forma cinema”.[xi]
Se por um lado temos um procedimento fílmico que aspira à imobilidade da fotografia; por outro lado, temos a imagem fixa da fotografia visando à mobilidade da imagem fílmica. Diferentemente da fotografia estática, a fotografia cinética de Saggese assim como a imagem cinematográfica, impõem dada temporalidade à observação. No cinema industrial, ou de entretenimento, marcado pela aceleração da montagem, no entanto, há uma secção do tempo, que reduz cada plano sequência a poucos segundos, enquanto na fotografia cinética o movimento não resulta da montagem, da colisão de planos, mas do deslocamento de pessoas e veículos no interior de cada plano, o qual é apreendido em tempo estendido.
Se em uma exposição ou livro de fotografias temos apenas as imagens que foram pinçadas das “provas de contato” – as quais reúnem todas as fotos de um dado filme permitindo assim conhecer o processo de trabalho do fotógrafo – o que vemos nos clipes de Noir são planos de dez a cem segundos dispostos em dada sequência, a partir de horas de filmagem, haja vista que, na estimativa de Saggese, apenas um a cada duzentos clipes colhidos, integrou a edição final. Frente à pergunta: “o que as imagens de Saggese esperam de nós?”, pode-se responder, também aqui, que é a tékhne da demora: a percepção ciosa e morosa, ou seja, o tempo necessário para que “na observação dessas imagens comece a nascer tudo o que nela acontece”.[xii]
Esse vídeo de captação silenciosa dos ritmos dos carros, ciclistas, skates, patins; do lazer nos parques, do vaguear noturno do sem-teto, inscreve-se, sem mimetismo, em uma linhagem de filmes de referência sobre a cidade, tais como: a Manhattan de Paul Strand, de 1921; a Rien que les heures, de Alberto Cavalcanti, de 1926; a Sinfonia da Metrópole de Walter Rutttmann e, particularmente a São Paulo, Sinfonia das Metrópoles de Adalberto Kemeny e Rudolfo Lustig, ambos de 1927. Noir que pode evocar também a Paranóia de Roberto Piva e a Noite vazia de Hugo Koury, é uma justaposição de blocos de tempos independentes, uma vez que eles não integram uma narrativa. Sua edição limitou-se ao corte que inicia ou encerra cada plano e à sua disposição em determinada sequência. A câmera é sempre fixa, sem travellings, assim como fixo também é o foco que não recorre aos efeitos zoom. As oscilações da imagem em alguns planos decorrem tão somente das trepidações do tripé ou da respiração do fotógrafo.
Em todas as obras vistas, há a mesma busca de uma imagem com a capacidade de nos atingir, de nos incitar, com sua “beleza intensa e inquietante”, na expressão de Jean Galard, que a contrapõe à “beleza exagerada” que “atrai, mas não fere ou incita”, da sociedade do espetáculo.[xiii] Daí decorreu seu interesse pelo valor de culto da fotografia que é visível na série “Mecânica” que figura, como vimos, a relação entre “a presença mágica do pôster e o mecânico que lá trabalha”; nas fotos depositadas por familiares junto a lápides mortuárias ou jazigos; ou ainda na série Ex-votos, de 1995, voltada às salas de milagres de Igrejas, nas quais o ofertante deposita uma foto em busca da concessão de uma graça. Nesses casos interessava a Saggese o valor de culto atribuído à fotografia pelos ofertantes que tomam a foto como imagem mágica, como presença muda, como tumulto silencioso que seria capaz de conceder-lhes o que a vida lhes furtou.
Saggese, como vimos, não busca a especificidade da fotografia – “a questão essencialista, de natureza ontológica, própria ao modernismo” – de André Bazin a Roland Barthes – mas as suas relações com as artes plásticas, o cinema, e as novas tecnologias da informática.[xiv] Sua busca não é assim do purismo da forma ou da autonomia do específico fotográfico, mas das possibilidades abertas pelo hibridismo da fotografia com outras artes. Seu desafio, sobretudo, é pensar por meio de suas fotografias as consequências da ausência da indicialidade na imagem digital; porque se a inscrição analógica pressupunha contato físico (luz fixada em superfície fotossensível); a imagem digital, como se sabe, é codificação de procedimentos matemáticos ou abstratos, que dispensa, portanto, “o contato entre mundo e imagem, entre máquina e referência” – “o modo corrente do indicial”.[xv]
Em síntese: mesmo que se admita que no tempo presente nada mais pareça estar em conflito, o que significa dizer que a derrocada “não deixa de fazer estragos nos corpos e nos espíritos de cada um”, como já alertou Didi-Huberman, não se deve supor o esgotamento das formas, ainda possíveis, de resistência. Dito de outro modo: na “imanência do mundo histórico” onde “o inimigo não para de vencer” a imagem enigma, de beleza inquietante de Saggese opera como índice de sobrevivências. Não é preciso, todavia, atribuir a suas imagens que operam como contraimagens, um valor de redenção ou salvação até porque, como ressaltou o próprio Didi-Huberman a destruição, ainda que contínua, “nunca é absoluta”.
Investindo nas possibilidades inéditas de metamorfoses abertas pelas novas técnicas e suportes, como os digitais, as fotografias e vídeos de Saggese são, assim, belas imagens pensativas, imagens que forçam sensivelmente o pensamento (porque nelas não há ponto que não nos mire, inquirindo-nos) interrompendo toda organização performativa, toda convenção ou contexto dominável pelo convencionalismo da máquina geradora de imagens da mídia digital e de massa que é sempre tautológica, porque resultado da permutabilidade de imagens clichês.
*Ricardo Fabbrini é professor do Departamento de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de A arte depois das vanguardas (Unicamp).
Versão parcialmente modificada do artigo publicado originalmente no livro YG/ Fotografias de Antonio Saggese. São Paulo, Editora Madalena, 2017.
Notas
[i] Jean Baudrillard; Tela total, mito-ironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 2005.
[ii] Hans Belting; A verdadeira imagem. Porto: Dafne Editora, 2011.
[iii] Gilles Deleuze; Cinema 1: A imagem-movimento. São Paulo: Brasiliense, 1ª. edição, 1985.
[iv] Vilém Flusser, Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
[v] Leon Kossovitch; “Saggese na Amazônia”; In Antonio Saggese; Hiléia. São Paulo: Editora Madalena, 1ª. edição, 2016.
[vi] Edmund Burke; Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Campinas: Editorial da Unicamp, 2ª. edição, 2013.
[vii] Fatorelli, A. Fotografia contemporânea: entre o cinema, o vídeo e as novas mídias. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2013.
[viii] Roland Barthes; A câmara clara. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
[ix] Gilles Lipovetsky e Charles Sebastien. Os tempos hipermodernos. 1ª edição. São Paulo: Barcarolla, 2004
[x] Mark B. N. Hansen, New philosophy for new media. Cambridge: MIT Press, 2004.
[xi] Antonio Fatorelli, op. cit., p.67
[xii] Abas Kiarostami apud Antonio Fatorelli, op. cit., p. 127
[xiii] Jean Galard;. Beleza exorbitante: reflexões sobre o abuso estético. 1ª. edição. São Paulo: Editora Fap-Unifesp, 2012.
[xiv] Arlindo Machado; A ilusão especular: uma teoria da fotografia. São Paulo: Gustavo Gilli, 2005.
[xv] Antonio Fatorelli; op. cit., p.67.