Por RONALDO TADEU DE SOUZA*
A falsificação da história a serviço da classe dominante branca brasileira
Leandro Narloch escreveu nos últimos dias um artigo para a Folha de São Paulo em que sustenta os benefícios do processo de escravização, uma das formas do capitalismo se por na matéria histórica, para os negros brasileiros. Particularmente, para as mulheres negras, que de certa maneira, conseguiram uma mobilidade social em relação a seu grupo social-racial. Quero comentar apenas três pontos do denso, sugestivo e original ensaio de Narloch. Desde já é preciso dizer e reconhecer; as qualidades literárias do historiador são notáveis – escrita fina, erudição incomum, prosa elegante, texto sinuoso no melhor sentido. Narloch sem dúvida é um dos representantes últimos do ensaísmo histórico-cultural e dos costumes; Michel de Montaigne e Vico subscreveriam esse seu herdeiro inconteste.
Entretanto, mesmo os grandes cometem “equívocos”. E no caso em questão um equívoco intencionado por uma mente consciente de si e que expressa claramente a posição de quem o enuncia. Em primeiro lugar, Leandro Narloch é um sicofanta que presta serviços para a classe dominante branca brasileira. Ganhou notoriedade, e ainda hoje a mantém, com a reorganização da suja, inescrupulosa, vil, covarde, assassina, podre, asquerosa, doentia, mesquinha, canalha e infame direita brasileira. Essa que quis (e quer) que seus cidadãos, a maioria escura, fossem lançados ao trabalho frente a um vírus mortal como o é o Covid-19 e a pandemia que desencadeou, e que agora ela própria impõem aos que não mais servem a seus interesses mesquinho de acúmulo do capital: não mais do que um profundo precipício, com esperanças mínimas de sair dele. Seus serviços foram e são muito bem utilizados, pelos mesmos que “defendem” o extermínio da juventude preta, que “querem” a manutenção do trabalho doméstico de mulheres negras, que “buscam” a exploração violenta e cruel da força de trabalho dos braços negros, que “desejam” que passemos horas e horas, em filas de açougues a recolher pelancas e ossos –como se animais fossem. Narloch é desses “bobos” da corte “pagos” para prestar “distrações” enquanto as estruturas de classe se movem, com o esmagamento diário de milhões de pessoas, e particularmente pessoas de cor e pele preta. Não é de se lamentar, as coisas são o que são e devem ser nomeadas – Leandro Narloch é um funcionário (branco e racista) do capital e cumpre com sua escrita o papel histórico destinado a ele; até o dia em que dermos vida e existência ao Estado de exceção verdadeiro (Walter Benjamin).
Em segundo lugar, o texto em questão é uma peça talhada para tentar a (re)reorganização do grupo político ao qual Narloch presta serviços. Com um projeto de país que no seu núcleo está o esmagamento dos subalternos, seja pela retirada de direitos, os poucos que foram conquistados no suor e muito sangue (“nada” foi entregue pela elite branca dominante ou por qualquer acordo consensual na história do Brasil), seja por arranjos econômicos predatórios, seja pela humilhação moral, seja pela prática da violência policial cotidiana (sem a qual o projeto não é possível de ser efetivado), sendo que essas circunstâncias se agravaram fortemente coma pandemia do coronavírus, era mais do que natural que houvessem mobilizações dos setores mais afetados por esse estado de coisas. A consequência é um desgaste quase que ininterrupto “do” presidente de Narloch e do grupo e conjunto de ideais que eles representam. Conservadorismo intransigente, racismo violento em toda a linha, livre mercado selvagem só para os mais aptos, moralismo cínico e nacionalismo tacanho – são elementos constitutivos da direita branca brasileira que passaram a serem postos em questionamento a partir de meados de 2020, e tenderão a continuar. E aqui pouco importa se há ou não um delineamento racional-consciente do processo. O que Narloch quer com sua peça é lançar, “novamente”, a teia sedutora para aqueles e aquelas que não estão mais convictos de suas “tolices” racistas. E que lançaram o país na fome, no desespero, no desemprego crônico e na falta de horizontes mínimos de uma sociedade “descente”. Ora, qual o sentido de comentar que sinhás se tornavam partes da elite brasileira no século XXI? O que isso quer dizer no âmbito da luta histórica de negros e negras contra a reprodução cruel daquilo que Florestan Fernandes chamou de sociedade escravagista? Qual a importância desse tipo de argumentação para milhares de mulheres negras que estão nas ruas trabalhando diuturnamente para alimentar suas famílias e que se indignam com a força de transformação de um país que sempre destinou planejadamente a elas a pobreza, a falta de reconhecimento, as cadeias e cemitérios para seus esposos e rebentos? Narloch com seu texto é receoso dos braços dessas mulheres a empunhar a bandeira da emancipação social, por isso quer lançar uma poeira em nossos olhos – não conseguirá. Quer reequilibrar a balança que não pende mais totalmente para a classe branca dominante ao qual presta seus serviços de escriba.
Em terceiro lugar, as afirmações textuais de Leandro Narloch são destituídas de qualquer lógica de interpretação histórica e social. Aqui ele não está sozinho: como bem sabemos. Mesmo não sendo historiador profissional, o que pouco nos importa, Narloch segue certas tendências da historiografia contemporânea, claro que ao estilo narlochiano de fazer as coisas. Com efeito; é a busca de tomar o grão de areia pelo conjunto imanente das relações sociais; por outras palavras, é transformar – superficialmente – um aspecto unilateral de certas formas sociais em categorias dominantes[*](Marx). Não se trata de explicar toda a sociedade por uma de suas partes; trata-se isto sim, de adequar a unidade do diverso (“as determinações da existência”[†]) a um dos pontos de contradição do desenvolvimento histórico. E no caso do Brasil essa formulação é ainda mais problemática – dadas as características da nossa matéria social (escravista e dependente). O fato mesmo de a escravidão ser um mecanismo de produção em que um de seus elementos de formação estar atrelado à sua conformação físico-natural, ou seja, ter uma função produtiva inerentemente associada à sua disposição orgânico-corpórea possibilitava às dispensas ocasionais de alguns daqueles e daquelas uma vez que não eram mais fisicamente necessários para trabalho violentamente braçal. (Não havia ainda as condições sociais e históricas para o quantum de trabalho, mínimo que seja, socialmente exigido para a força de trabalho; além da frágil evolução da técnica que dificultava o relativo daquela.) Assim, e, portanto, era evidente que os que não mais tinham seu corpo, e força física plenamente aptos para os serviços físico-corpóreo-braçal do capital (escravocrata) tinham que sobreviver de alguma forma uma vez postos na rua. Daí que em um contexto já de circulação de moedas no início do capitalismo comercial-industrial brasileiro, poder ser, contraditória e aleatoriamente, mobilizado para a sobrevivência, mesmo para os lançados violentamente à própria sorte. O que Narloch e seu grupo precisam responder é se o grão de areia se transformou numa estrutura social reproduzida ao longo da história brasileira. É claro que, eventualmente, a resposta é a reafirmação daquilo que se tem de explicar, a saber, que a “cultura do capitalismo” cria as condições para a riqueza individual, que a escravidão teve algum benefício para certos negros mais capazes. Bastava ser o mais apto, o mais disciplinado, o mais racional etc. e etc. A consciência da classe dominante branca alhures e, sobretudo aqui, nunca foi afeita à dialética dizia o velho George Lukács lá no História e Consciência de classe – seu horizonte histórico era e ainda é limitado a seus interesses de classe expressados pelos Narlochs. De nossa parte; que pena que o texto de Narloch só foi escrito em 2021. Agora é um pouco tarde – pois queira ele ou não, as não-sinhás da Bahia, se é que existiram as sinhás contada por ele, desejam um dia por abaixo o sistema, sociedade e elite branca que o direitista e racista Narloch é “pago” para defender.
*Ronaldo Tadeu de Souza é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP.
Notas
[*] Ver sobre isso Karl Marx. Introdução à Crítica da Economia Política. São Paulo, Abril Cultural, 1974, p. 122 a 127.
[†] Cf. Ibidem.