Por PAULO CESAR DUQUE-ESTRADA*
Trecho do livro que trata da questão “mentira e verdade na política”
“Nunca se mentiu tanto quanto em nossos dias. Nunca se mentiu de forma mais descarada, sistemática e constante.”
Essas palavras, que poderiam se aplicar perfeitamente bem aos dias de hoje, para não dizer ao atual cenário político do país, dão início a um texto publicado pela primeira vez em 1943, de autoria de Alexandre Koyré[i], e que tinha por alvo, como a sua data bem o sugere, a formação dos regimes totalitários da época. No entanto, não apenas nessa frase – que, em si mesma, na força de suas palavras, não deixa de soar como uma constatação e um protesto, um indignado “Basta!” ao que se encontra aí, diante de nós –, mas em todo o texto de Koyré, alguma coisa se desvia, para além do contexto histórico de sua época, e nos atinge com a força de uma extrema atualidade.
Como se encontra patente na frase, o texto trata da mentira, mais especificamente, da mentira na política. Publicado originalmente com o título Réflexions sur le mensonge, e republicado dois anos depois em inglês como The political function of the modern lie[ii], o artigo de Koyré foi retomado por Jacques Derrida em um texto – História da mentira: prolegômenos[iii] – em que se propõe, em linhas gerais, um novo modo de se enfrentar uma problemática “tão antiga quanto o mundo”, para dizer como Koyré; i.e., a mentira e, mais particularmente, a mentira na política.
Tal empreendimento, a que Derrida apenas aponta nesse seu texto, parece mais urgente e necessário do que nunca, em face do atual quadro de profunda crise de representatividade e acelerada deterioração da legitimidade própria às instituições públicas. Como encontrar orientação em um mundo cada vez mais (des)regrado pela incredulidade?; em que a desconfiança em relação a tudo o que se vê, se ouve e se lê através dos meios de comunicação ꟷ fenômeno que se capitaliza a se perder de vista com as redes sociais ꟷ deixa de ser uma simples questão de interesse crítico da parte de alguns intelectuais, para se tornar cada vez mais um dado comum da experiência diária. O problema, com toda a sua gravidade e relevância, é que o obstinado desejo de verdade[iv] não converge para reparar, mas sim prolongar e mesmo acirrar a destrutividade em curso – ontem assim como hoje – da chamada vida social.
Destrutividade entendida aqui em dois sentidos muito precisos: por um lado, destruição de tudo o que lhe for diferente, estrangeiro, de outra ordem; por outro, destruição de si mesma autodestruição. Para dizer de outro modo, a afirmação ou a consolidação de uma verdade única, estável igualmente aplicável a tudo e a todos, constitui sempre – ela sempre constitui também – um golpe violento, uma injustiça, uma força de anulação, abafamento, repressão, dirigida à diversidade, à heterogeneidade, às diferenças nas quais e através das quais tudo se ergue, se tece e acontece. Como observa Derrida[v], tudo e qualquer “Um” – na força performática de seu “auto”, identitário, institucional, lingüístico, nacional, etc. – é, em sua própria verdade, intrinsecamente violento. Comporta e, ao mesmo tempo, se protege contra a diferença para consigo mesmo na qual e através da qual ele se ergue, se estabiliza e se afirma como “Um”. É nesse sentido pelo que falo aqui de destrutividade em curso da vida social.
Seria preciso, então, retomar o tradicional binarismo “verdade/mentira”, e mais particularmente o conceito tradicional, dominante em nossa cultura, de mentira, mas de modo a transformá-lo radicalmente, já que ele “necessita de outro nome, de outra lógica, de outras palavras (…)”[vi].
Não se trata aqui, como equivocadamente se poderia supor, de um dar as costas à verdade, ou do abraçar de uma “vale tudo”. Koyré diagnostica, acusa, rejeita com veemência e sistemática agressão que os regimes totalitários fazem à verdade, destituindo-a de seu valor de universalidade. Derrida, por sua vez, não deixa de ressaltar o seu acordo: “Repito e insisto, para evitar qualquer mal-entendido: o que diz aqui Koyré parece-me verdadeiro, justo, necessário. Devemos antes de tudo subscrevê-lo”[vii].
Vejamos o que diz Koyré: “Ora, as filosofias oficiais dos regimes totalitários proclamam de modo unânime que a concepção da verdade objetiva, uma para todos, não faz sentido algum e o critério da “Verdade” não é seu valor universal (…), mas antes sua conformidade com o espírito da raça, da nação ou da classe, sua utilidade racial, nacional ou social. Prolongando e levando até o fim as teorias biologistas, pragmatistas, ativistas da verdade (…), as filosofias oficiais dos regimes totalitários negam o valor próprio do pensamento, o qual para eles não é luz, mas uma arma; a sua meta, a sua função, dizem, não é a de nos revelar o real, ou seja, aquilo que é, mas a de nos ajudar a modificá-lo, a transformá-lo, guiando-nos em direção àquilo que não é. Para tanto, como já foi reconhecido há muito tempo, o mito é freqüentemente preferível à ciência, e a retórica que se dirige às paixões, preferível à demonstração que se dirige à inteligência”.[viii]
Derrida não apenas manifesta o seu acordo quanto ao diagnóstico – no âmbito dos regimes totalitários – de uma deliberada perversão tanto da verdade em seu valor universal quanto do pensamento como uma arma a serviço de interesses, de uma estratégia ou programação previamente estabelecida. Além disso, reconhece a atualidade no que diz Koyré, uma vez que o alvo de sua denúncia não se limita ao contexto dos regimes totalitários: “o que ele diagnostica sobre as práticas totalitárias de então (…) poderia se estender amplamente a certas práticas atuais de supostas democracias, na era de certa hegemonia capitalístico-tecnológica da mídia”[ix]. É preciso, portanto, e talvez hoje mais do que nunca, em um tempo fortemente ditado pela teletecnociência, manter, como diz, uma permanente vigília quanto a tais perigos.
No entanto, há aqui uma limitação que se deve tentar ultrapassar. Tudo bem que Koyré rejeite o biologismo, o racismo ou o nacionalismo que, como percebe nas filosofias oficiais do totalitarismo, pretendem tomar o lugar do universalismo da verdade. Mas, nesse mesmo gesto, ao rejeitar também o que entende por “pragmatismo” e “ativismo” – numa palavra, o caráter performativo – da verdade que, do mesmo modo, em detrimento do seu valor universal, constituíram o sinal ou sintoma de um engajamento com o que não é, e não com a objetivação ou com a relevância do que é, Koyré – a exemplo de uma longa tradição da metafísica ocidental, incluindo Hannah Arendt – impede que se opere um importante, urgente e necessário deslocamento.
[Cabe aqui um breve parêntesis, a fim de justificar o procedimento que adoto neste presente texto; voltando inteiramente a atenção para uma seção em que Derrida desenvolve uma leitura de Koyré, no interior de um texto maior dedicado a Hannah Arendt. São duas as razões para isso, que enuncio aqui reproduzindo o que se lê e sintetizando o argumento apresentado por Derrida. Em primeiro lugar: “Não sei se Hannah Arendt leu ou teve conhecimento de um artigo escrito por Alexandre Koyré, mas deve-se à verdade dizer que as teses arendtianas que acabamos de citar estão exatamente na mesma linha de pensamento desse autor[x]. Em segundo lugar, como veremos mais adiante, Koyré levanta uma questão importante – “o que Arendt não faz” – para a reflexão proposta por Derrida, para além da problemática da verdade/mentira na política. Fechando o parêntesis.]
A suspeita de Koyré parte de um pressuposto inabalável quanto à configuração do campo da verdade. Este diria respeito exclusivamente à ordem da objetividade, ou dos enunciados verdadeiros acerca de fatos, ou ainda da adequação de enunciados ou de “estados mentais” em relação às coisas a que se referem. Fica, de antemão, excluído tudo o que ultrapassar ou não se enquadrar em tal – prévia e inabalável – determinação da verdade. Aqui também não há espaço para considerações e análises de enunciados performativos, ou seja, aqueles que, no domínio da linguagem, não se referem a estado de coisas, não sendo, portanto, verdadeiros ou falsos (como ordens, perguntas, saudações, promessas, etc.).
Numa palavra, sintetiza Derrida, a suspeita de Koyré “atingiria qualquer problemática que delimitasse, questionasse ou a fortiori desconstruísse a autoridade da verdade como objetividade ou até mesmo como revelação (aletheia)”[xi]. Assim, que a verdade diga respeito essencialmente à objetivação, exposição, demonstração, apresentação, aparição, revelação, ou desnudamento de algo verdadeiro; que este último seja inseparável da luz, como o que vem à luz, como o que brilha para todos na reunião ou na ordem – no “Um” homogêneo e autoidêntico – do grupal, do coletivo, do comunitário, da pólis[xii], enfim, que o campo da política seja radicalmente ditado pela lógica da fenomenalidade, eis o que deve ser delimitado, posto em questão, desconstruído.
Mas por que razão se deve questionar, delimitar e mesmo desconstruir a autoridade da verdade nos termos em que, através da tradição, ela se nos tornou familiar; precisamente, como objetividade ou revelação? E por que razão se deve questionar o fenomenalismo da política?
A resposta é simples – e nisso estaria de acordo uma grande variedade de pensadores que, guardadas as respectivas diferenças, foram sensibilizados pelos textos de Marx, Nietzsche e Freud: “a verdade, da mesma forma que a realidade, não é um objeto dado antecipadamente, sobre o qual se trataria apenas de refletir adequadamente”[xiii]. Isso significa duas coisas: por um lado, é sempre através de linguagens ativas e interpretativas, portanto, performáticas, que a verdade e também a realidade se instituem; assim, por outro lado, justo por não ser algo natural ou imutável, por não ser jamais “um objeto dado antecipadamente”, é preciso sempre questionar, problematizar – por meio de linguagens, por sua vez, sempre e necessariamente performativas –, o que quer que se queira passar por “algo”, por um fenômeno ou objeto já constituído, dado em si mesmo.
Caso contrário, sem essa problematização – “de tipo pragmático-desconstrutivo” –, notadamente “no campo da coisa pública, política ou retórico-tecnólogico da mídia”, recai-se, inevitavelmente, em uma ou outra forma de dogmatismo acerca do “o que é”. Uma problematização desse tipo requer, portanto, que se rompa com o binarismo – tradicional, opositivo – entre verdade (o que é) e mentira (o intencional fazer passar o que não é pelo que é).
E o pensamento aqui se desloca. Se, efetivamente, é a intenção “que define a veracidade ou a mentira na ordem do dizer, do ato de dizer”, independentemente “da verdade ou da falsidade do conteúdo, daquilo que é dito” [xiv], então nunca se pode, a rigor, provar que se trata de mentira quando alguém afirma “eu me enganei, mas não quis enganar ninguém, sou de boa-fé”; ou ainda, “eu disse isso, mas não é o que queria dizer; de boa-fé, em meu foro íntimo, essa não era minha intenção, houve mal-entendido”[xv]. É preciso, portanto, passar do binarismo “verdade/mentira” para o âmbito da veracidade, mesmo quando o que se diz é mentira. Tal é o deslocamento – da verdade/mentira para a veracidade – que então se pretende.
Evidentemente, existe aqui um risco, e a questão que se apresenta é esta: como romper com a verdade como objetividade ou revelação?; como romper com a lógica da demonstração, do “fazer mostrar”, do aparecimento, no campo político, sem que, com isso, se recaia naquilo que Koyré tão acertadamente denuncia?
Mais uma vez, o que Koyré denuncia não diz respeito apenas aos regimes totalitários de um passado mais ou menos recente, mas também à própria época atual, democrática, da “civilização de massas”: “A mentira moderna ꟷ nisto reside sua qualidade distintiva – é fabricado em massa e é endereçado à massa”[xvi]. Um novo dispositivo, moderno, de produção de mentira a partir dos regimes totalitários teria então se desdobrado [até os dias de hoje, poderíamos dizer em acréscimo ao texto de Koyré]: “Dissimular o que se é e simular o que não se é… Isto implica, obviamente: não dizer – jamais – o que se pensa e se crê e também: dizer – sempre – o contrário”[xvii].
Embora Koyré não siga pelo caminho de um deslocamento para além do binarismo verdade/mentira, ele antecipa em seu texto dois aspectos significativos que contribuem para uma reflexão naquele sentido. Derrida os pontua do seguinte modo: “Primeiro, ele sugere “que os regimes totalitários e os que a eles se assemelham de uma forma ou de outra nunca se arriscaram para além da distinção entre verdade e mentira – distinção oposicional e tradicional – por terem dela uma necessidade vital, pois é dentro dela que mentem (…)”[xviii]. O que ocorre é que eles apenas invertem tal dicotomia, fundando-se na “primazia da mentira”.
Como diz Koyré: “a distinção entre a verdade e a mentira; o imaginário e o real; permanece perfeitamente válida mesmo no interior das concepções e dos regimes totalitários. Apenas seu lugar e seu papel é que estão de algum modo, invertidos: os regimes totalitários estão fundados sobre a primazia da mentira[xix].
Isso, aliás, é tão certo ontem quanto hoje. Basta lembrar, por exemplo, a “raiva de ter sido enganado”, apontada ou denunciada por George Grosz, que levou Hitler ao poder prometendo a erradicação da mentira[xx], ou a célebre declaração “Odeio a mentira”, do marechal Pétain. Na esteira do que diz Koyré, Derrida observa que “quanto mais (…) uma máquina política mente, mais ela faz do amor à verdade uma palavra de ordem de sua retórica”.
Segundo, diante dessa radical transformação da mentira, em que, deixando de se limitar a um acontecimento factual, como o resultado de um determinado ato movido intencionalmente por má-fé, ela se torna um processo, passando a ser produzida para todos; diante dessa transformação, mesmo sem desenvolvê-la, Koyré levanta a questão – “o que Arendt não faz” – sobre “se ainda se tem o direito de falar aqui da ‘mentira’”[xxi]. Para Koyré, certamente que sim, mas, para Derrida, essa questão aponta para uma possibilidade de se dar um passo adiante.
Novamente, é preciso evitar aqui um potencial equívoco. Ao se pretender levar adiante uma reflexão para além do binarismo “verdade/mentira”, não se está propondo, com isso, o celebrar de uma absolutização da mentira, ou o desenvolvedor de um pensamento do simulacro, ao estilo de Baudrillard; em ambos os casos, uma lógica do ocultamento já se encontra pressuposta. Segue quanto a isso, e para encerrar, uma breve observação.
Em relação ao risco já referido: como romper com a lógica da demonstração, de um “fazer mostrar” ou do aparecimento, no campo político, sem que com isso se recaia naquilo que Koyré tão acertadamente suspeita e denuncia? Mais uma vez, não se deve, jamais, apagar essa suspeita. Porém, o risco sempre ocorre, e querer evitá-lo significa optar por permanecer na estabilidade – no “Um” – do mesmo lugar em que já nos encontramos; sujeitos à força “do que é”, para usar um termo de Koyré. Em contraste a esse “lugar”, o assumir de uma responsabilidade ética, jurídica ou política significa, antes de tudo, assumir tal risco; expor-se, a um só tempo, à ameaça e à chance. Significa, em outras palavras, assumir a performatividade estrutural, intrínseca ao que se nos apresenta como “o que é”, bem como a performatividade de todo tipo de relação – compreensão, análise, interpretação, reflexão, rememoração, problematização, etc. – que temos com “o que – ‘supostamente’ – é”. De outro modo, ao insistirmos em permanecer no registro do “o que é”, “estaríamos apenas assistindo ao desdobramento irresponsável de uma máquina programática”[xxii]; programada para determinar e operar sobre o que se tem por conhecido ou conhecível.
Assim, contrariamente à prova ou à demonstração[xxiii], “é uma problemática do testemunho, diz Derrida, que me parece aqui necessária (…)”[xxiv]. Isso significa, para concluir muito rapidamente, que o universal, valor por excelência da verdade, não é uma essência, uma estrutura demonstrável ou revelável. Certamente, no universal, o que vale para mim, insubstituivelmente, na singularidade única do meu testemunho a respeito de alguma coisa com a qual eu me relaciono, vale para todos. Isso quer dizer que a substituição do singular pelo universal (estrutura primeira de acolhimento ou hospitalidade) já aconteceu; a substituição já “está em curso, já operou, cada um pode dizer, para si e de si, a mesma coisa”[xxv]. Sempre que alguém fala, qualquer que seja o seu “lugar” de fala, já é, no ato de falar, simultaneamente ultrapassado (mas, se poderia dizer também, e paradoxalmente, acolhido), na singularidade do seu testemunho, pela generalidade da linguagem; uma generalidade que é de ordem estrutural, universal, transcendental ou ontológica.
Nisso, que se repete sem fim, nesse paradoxo de uma concomitante substituição do insubstituível (ou, para dizer em outros termos, de uma acolhida que, necessariamente, perde o que acolhe), o universal se constitui como um processo infinito de universalização, de uma veracidade que se dissemina, que não cessa de se enviar, na efetividade de casa ato singular que, desde sempre, também já se perde pelo acolhimento do universal que, não obstante, a veracidade de cada ato demanda e mobiliza; transferindo-se interminavelmente, no tempo e no espaço, desenraizando-se, estendendo-se, deslocando-se, rompendo consigo mesma, para além de toda situação particular, lingüística, territorial, étnica, cultural, etc.
Nesse outro registro, que não o da demonstração ou da revelação, mas do testemunho, antecipa-se outra possibilidade ético-política: a de se resistir e fazer frente às construções político-fantasmáticas que, “pela força ou pela manha”, querem, a todo instante, nos obrigar a crer e compartilhar. Como se já estivessem aí, dadas conhecidas e conhecíveis, enfim, poderíamos dizer definitivamente “acolhidas” na universalidade dos discursos. Nada de niilismo, relativismo ou “vale tudo”. Aqui está em jogo outra ordem de crença, de compartilhamento e de promessa.
*Paulo Cesar Duque-Estrada é professor do Departamento de filosofia da PUC-Rio.
Referência
Paulo Cesar Duque-Estrada. Estudos ético-políticos sobre Derrida. Rio de Janeiro, Mauad X, 2020, 120 págs.
Notas
[i] Alexandre Koyré (1882-1964). Filósofo de origem russa. Estudou sob a orientação de Husserl em Göttingen, Alemanha. Foi professor da École Pratique des Hautes Études em Paris. Durante a Segunda Guerra Mundial morou em Nova York, onde ensinou na New School for Social Research. Foi professor visitante de várias outras instituições importantes, como Harvard, Yale, University of Chicago, Johns Hopkins. Autor de vários livros é conhecido principalmente no campo da filosofia da ciência.
[ii] O texto de 1943 foi publicado em Nova York, na revista Renaissance. O texto em inglês foi publicado na revista Contemporary Jewish Record. O artigo foi republicado na França, em 1993, pelo Collège International de Philosophie, com o título La fonction politique du mensonge moderne. Trad. Andreia Bieri. A função política da mentira moderna. Anamorfose: Revista de Estudos Modernos, v.3, n.1, 2015.
[iii] Texto de uma apresentação feita em 1993 na New School for Social Research por ocasião de uma serie de palestras em homenagem a Hannah Arendt. Publicação brasileira em Estudos Avançados, São Paulo, v.10, n.27, maio/ago. 1996.
[iv] Deveríamos dizer – ao invés de “desejo de verdade” – “valor da veracidade”, uma vez que o oposto da mentira não é a verdade, mas sim a veracidade. “Na sua figura prevalente e reconhecida por todos, a mentira não é um fato ou um estado, é um ato intencional, um mentir – não existe a mentira, há este dizer, ou este querer-dizer que se chama mentir: mentir seria dirigir a outrem (…) um ou mais de um enunciado, uma série de enunciados (constativos ou performativos) cujo mentiroso sabe, em consciência, em consciência explícita, temática, atual, que eles formam asserções total ou parcialmente falsas (…)”. Por outro lado, pode-se dizer o falso, julgando-se, “de boa fé”, que se está correto; tal não seria mentir, mas sim errar. É, pois, a intenção “que define a veracidade ou a mentira na ordem do dizer, do ato de dizer”, independentemente “da verdade ou da falsidade do conteúdo, daquilo que é dito. A mentira depende do dizer e do querer-dizer, não do dito.” Citando Agostinho, “… não se mente ao enunciar uma asserção falsa que cremos verdadeira e (…) antes mente-se ao enunciar uma asserção verdadeira que cremos falsa. Pois é pela intenção (ex animi sui) que se deve julgar a modalidade dos atos”. É nessa perspectiva que Derrida questiona, em Arendt, tanto a ideia de uma história da mentira quanto a argumentação de que, nessa história, com a expansão da propaganda ao nível governamental e a manipulação moderna dos fatos, a mentira teria sofrido uma mutação, tornando-se “completa e definitiva”, como produção sistemática de um mentir aos outros e a si mesmo no campo político. Aqui trataremos tangencialmente dessa questão, e nos voltaremos diretamente para aquela – tradicional, metafísica – da verdade, já que, na avaliação de Derrida, ela parece ainda constituir o horizonte último da argumentação de Arendt: “O que deveria, provavelmente, ser suspeitado com alguma inquietude nesta noção de mentira absoluta, é aquilo que ela supõe ainda de saber absoluto nem elemento que permanece o da consciência em si reflexiva (…). Se a mentira absoluta tem de se exercer em consciência e no seu conceito, ela corre o risco de continuar sendo a outra face do saber absoluto”. É assim que Derrida propõe deslocar e complicar o “si” da argumentação da Arendt, “numa ipseidade mais originária do que o ego (individual ou coletivo), uma ipseidade de encraves, uma ipseidade divisível ou clivada. Cf. Derrida, Jacques. História da mentira: prolegômenos. Op. cit.
[v] Derrida, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 2001.
[vi] Derrida, Jacques. História da mentira: prolegômenos. Op. cit., 25.
[vii] Ibidem.
[viii] Koyré, Alexandre. A função política da mentira moderna. Op. cit., p. 74.
[ix] Ibidem, p.16.
[x] Derrida, Jacques. História da mentira: prolegômenos. Op. cit., p.15.
[xi] Ibidem, p.16.
[xii] Por suas enormes e avassaladoras implicações econômicas, ético-políticas, diplomáticas, jurídicas, militares, tecnocientíficas, impossíveis de serem tratadas aqui, o slogan “American first”, de Donald Trump, à parte o seu caráter patético e caricato, constitui talvez a figura recente mais perturbadora, o tremor mais potente e ameaçador, do que está sendo tratado aqui.
[xiii] Derrida, Jacques. História da mentira: prolegômenos. Op. cit., p.16.
[xiv] Ver n. 259.
[xv] Derrida, Jacques. História da mentira: prolegômenos. Op. cit., p.2.
[xvi] Koyré, Alexandre. A função política da mentira moderna. Op. cit., p.73.
[xvii] Ibidem, p.80.
[xviii] Derrida, Jacques. História da mentira: prolegômenos. Op. cit., p.17.
[xix] Koyré, Alexandre. A função política da mentira moderna. Op. cit., p.74.
[xx] Guerreiro, Antônio. A mentira como vocação. Opinião/Pública, 25 de setembro de 2015.
[xxi] “Seria possível concluir – e às vezes se conclui – que os regimes totalitários estão para além da verdade e da mentira”. Koyré, Alexandre. A função política da mentira moderna. Op. cit., p.74.
[xxii] Derrida, Jacques. História da mentira: prolegômenos. Op. cit., p.16.
[xxiii] Não se trata de rejeitar o valor e mesmo a exigência de prova e demonstração, mas sim perceber a sua limitação ao domínio da verdade como revelação ou adequação ao “o que é”, ou seja, à verdade abstraída de toda dimensão performática, ou, na linguagem de Koyré, do que há de “pragmatismo” e “ativismo” como elementos exteriores, estranhos à própria verdade. É interessante notar, quanto a isso, o que diz o historiador Federico Finchelstein, ao ser indagado: “Políticos inspirados pelo fascismo mentem mais que outros políticos?” Em sua resposta, fazendo ecoar a argumentação de Koyré, Finchelstein responde: “Sim, políticos fascistas tender a mentir mais, mas não se trata somente de mentir mais. Eles acreditam em suas próprias mentiras. E, mesmo que vejam que essas mentiras não correspondam à realidade, acreditam que essas mentiras estão a serviço de uma verdade, que é a verdade do líder e da ideologia. Uma verdade enraizada na fé e no mito, em vez de na observação empírica”. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-talvez-nunca-ser%C3%A1-o-fascista-que-gostaria-de-ser/a-53868854>. Aqui também, sem anular a verdade da resposta de Finchelstein, uma questão segue represada: se “não se trata somente de mentir mais”, se os políticos fascistas “acreditam em suas próprias mentiras”, se acreditam que eles estejam “a serviço de uma verdade”, que é “a verdade do líder e da ideologia”, então se trata de algo mais complexo, não se reduzindo ao simples diagnóstico de uma mentira. É preciso um refinamento crítico que, de um modo incontornável, terá que passar pela problematização do próprio paradigma da verdade como adequação ou revelação – e também, por extensão, do fenomenalismo do campo político – para se avançar no enfrentamento das ameaças e desafios, cada vez mais urgentes, do obscurantismo, do fanatismo, do dogmatismo, do autoritarismo, do reacionarismo, do fundamentalismo, do falocentrismo, do racismo, etc.
[xxiv] Ibidem.
[xxv] Derrida, Jacques. O monolinguismo do outro. Porto: Campo das Letras, 2001.