Restauração de ecossistemas

Shikanosuke Yagaki, Sem título (rua), 1930–9
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Por HERALDO CAMPOS*

O caso do Aquífero Litorâneo do Estado de São Paulo

“O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que primeiro em água e luz. Depois árvore.” (Manoel de Barros).

A restauração de um aquífero contaminado ou de uma porção dele deve ser entendida no mesmo contexto da restituição de um ecossistema ou de uma população silvestre degradada o mais próximo possível da sua condição original, conforme consta na Lei Federal 9.985/00, artigo 2º, inciso XIV, tratando-se de uma espécie de reparação in natura e in situ, assim como sua recuperação.

Nesse contexto, a restauração de um aquífero contaminado ou de uma porção dele seria a integral e a completa reparação da área contaminada, acontecendo quando as águas subterrâneas voltarem a apresentar os mesmos parâmetros de qualidade química natural do meio aquífero e não contendo contaminações de origem antrópica, decorrentes de uma progressiva deterioração desse meio aquífero que pode se dar, por exemplo, pela expansão urbana, industrial e/ou agrícola que impossibilitam o uso do recurso hídrico subterrâneo pelo dano causado.

Dessa maneira, a restauração do aquífero ou de uma porção dele neste artigo, para o caso do Estado de São Paulo, é aqui entendida quando o reservatório voltar a apresentar os mesmos parâmetros de qualidade química natural com base nos dados publicados no Mapa de Águas Subterrâneas do Estado de São Paulo[1] apresentado na Figura 1.

Figura 1. Mapa de Águas Subterrâneas do Estado de São Paulo.

Para esse entendimento, o exemplo aqui utilizado se refere à qualidade química natural da água subterrânea do Aquífero Litorâneo localizado no Estado de São Paulo que segundo esse estudo citado apresenta as seguintes características: “O Aquífero Litorâneo distribui-se irregularmente ao longo da costa, segmentado pelas rochas do embasamento pré-Cambriano, desde a região de Cananéia, a sul, até a região de Caraguatatuba e Ubatuba, a norte. É constituído por depósitos sedimentares da Planície Litorânea, a qual chega a 70 km de largura, nas grandes planícies do vale do rio Ribeira de Iguape, reduzindo-se a partir de Itanhaém, Santos e Bertioga, em direção ao norte, onde pequenos bolsões isolados, de 300 m de extensão são mais característicos.”

Figura 2. Aquífero Litorâneo. Mapa de Águas subterrâneas do Estado de São Paulo.

 A Figura 2 mostra a delimitação do Aquífero Litorâneo e a qualidade química natural das águas subterrâneas desse reservatório subterrâneo pode assim ser sintetizada: “O ferro total é o elemento químico mais restritivo, apresentando média de 1,39 mg/L. No entanto, este problema pode ser facilmente corrigido por técnicas simples de aeração (DAEE, 1979a). A maioria dos poços apresenta salinidade abaixo do padrão de 1.000 mg/L, sendo maior na região de Santos-Cubatão, onde o cloreto está acima de 250 mg/L, o que indica contaminação pela cunha salina.”

Como nesse exemplo apresentado a água subterrânea pode estar contaminada naturalmente pela cunha salina e, consequentemente, imprópria para consumo humano, mas, devido as suas características químicas naturais, pode favorecer um ambiente adequado para o desenvolvimento de certos crustáceos como o tatuí ou tatuíra (Emerita brasiliensis) e o corrupto (Callichirus major), crustáceos muito comuns encontrados nas faixa de areia das praias do território paulista (Figuras 3 e 4).

Figura 3. Crustáceo tatuí ou tatuíra (Emerita brasiliensis) que vive na faixa de areia de praia em ambiente de água subterrânea salgada não potável. Serviço ecossistêmico prestado pelo Aquífero Litorâneo: regulação biológica.

Figura 4. Crustáceo corrupto (crustáceo cavador Callichirus major) que vive na faixa de areia de praia em ambiente de água subterrânea salgada não potável. Serviço ecossistêmico prestado pelo Aquífero Litorâneo: regulação biológica.

 Assim, considerando-se que um dos serviços ecossistêmicos prestados pelos aquíferos ou reservatórios subterrâneos é a regulação biológica, o Aquífero Litorâneo, nesse exemplo apresentado, pelas suas características químicas naturais (com água subterrânea salgada), pode favorecer o desenvolvimento das tatuíras e dos corruptos.

Em outras palavras, se por acaso ocorra um acidente, como o vazamento de um tanque de combustível de um posto de gasolina numa faixa de areia de praia, com água subterrânea naturalmente imprestável para o consumo humano, o papel do reservatório subterrâneo na regulação biológica, no contexto apresentado, estaria de certo modo garantido e deveria, necessariamente, ser preservado.

No entanto, a retirada do crustáceo corrupto (crustáceo cavador Callichirus major), que vive na subsuperfície da faixa de areia da Praia do Perequê Açu em Ubatuba (SP), foi observada durante a temporada do verão de 2020, durante os meses de janeiro e fevereiro, e também em outras épocas do ano, principalmente quando a maré está baixa, o que facilita a sua captura.

A retirada desse tipo crustáceo, utilizando-se bombas de sucção, geralmente utilizado como isca para peixes, pode causar alterações e consequências ambientais, tanto nessa espécie específica como em outras existentes como, por exemplo, a do crustáceo tatuí ou tatuíra (Emerita brasiliensis). Desse modo, como informação adicional, na faixa de areia das praias do município paulista de Praia Grande a Lei Municipal nº 789 de 1992 proíbe a comercialização ou a utilização de bombas de sucção para a extração desse crustáceo, visando a sua proteção nesse seu habitat natural.

Para finalizar, pelo exposto, se conclui que os parâmetros de qualidade química natural das águas subterrâneas apresentados na base de dados publicados no Mapa de Águas Subterrâneas do Estado de São Paulo robustecem a ideia da importância dos serviços ecossistêmicos prestados pelos reservatórios subterrâneos, sendo que um deles é a regulação biológica.

*Heraldo Campos, geólogo, é pós-doutorado pelo Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos-USP.

 

Referência


DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), IG (Instituto Geológico), IPT (Instituto de Pes­quisas Tecnológicas), CPRM (Serviço Geológi­co do Brasil). 2005. Mapa de Águas Subterrâneas do Estado de São Paulo. São Paulo: DAEE. (3v, mapa e CD-ROM).

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