À diferença do padrão que conhecemos no século XX, os acordos com os chineses não são feitos com as armas na mão e nem tem, por baixo da mesa, cartas orientando a derrubada de governos
Por Alexandre G. de B. Figueiredo*
“De mar a mar/de tierra a nieve/ todos los hombres te contemplan/China”. Hoje, mais de 60 anos depois de Pablo Neruda redigir esses versos, os olhos do mundo continuam postos sobre a China, com atenção redobrada. Chegando ao centro do tabuleiro geopolítico, a potência asiática recusa a pretensão de hegemonia e continua a se definir como um país em desenvolvimento, o que implica em uma abordagem de relações internacionais que prega o multilateralismo, a paz e a prosperidade para todos.
A Nova Rota da Seda ou Belt and Road Iniciative (Iniciativa Cinturão e Rota), como é mais conhecida internacionalmente, é a materialização dessa visão. Apresentada pelo presidente chinês Xi Jinping, em 2013, trata-se de um imenso projeto de parcerias oferecido pela China com o objetivo de construir a maior rede de infraestrutura para o transporte de mercadorias e pessoas do planeta, além de aprimorar a economia digital. Comporta obras como estradas e ferrovias atravessando toda a Ásia e chegando à Europa Ocidental, aeroportos, portos apoiando redes marítimas, oleodutos, dentre outros. Na definição oficial, ela envolve a coordenação de políticas, conectividade das infraestruturas, fluxo livre de comércio, integração financeira e entendimentos entre os povos. Até o final de 2018, apenas cinco anos após o lançamento da iniciativa, a China já havia assinado acordos com 106 países e 29 organizações internacionais.
Não se trata de um acordo multilateral, embora comporte relações e estabeleça instituições multilaterais, mas sim de acordos bilaterais que a China oferece aos parceiros. De forma sucinta, eles implicam no financiamento chinês para a construção da estrutura necessária para a interligação pretendida. Para tanto, Pequim criou, em 2014, o Fundo da Rota da Seda, com recursos de suas agências estatais e bancos de financiamento do desenvolvimento: um aporte inicial de 40 bilhões de dólares. Em 2017, quando se realizou o primeiro Fórum Internacional da Rota da Seda, novos aportes bilionários foram feitos, indicando tanto o sucesso da iniciativa como a vontade da China para levá-la adiante.
A iniciativa abrange especialmente a Ásia e a Europa, mas não exclui países em desenvolvimento de outras regiões. O que é natural: a China tanto se coloca como uma liderança desse grupo como já vem consolidando suas relações com as regiões desprezadas pelo Norte, como, por exemplo, a África, onde sua presença é cada vez mais relevante. E, não menos importante, com a América Latina, cuja aproximação com os chineses causa temores e fortes reações nos escritórios de Washington.
Há quem fale de um Plano Marshall chinês, dado o imenso volume de recursos, invocando o financiamento norte-americano para a reconstrução de uma Europa Ocidental destruída pela Segunda Guerra. Contudo, e isso é bom lembrar, a Nova Rota da Seda não implica uma contrapartida militar, como foi o caso do Plano Marshall, com sua consequente criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
Pelo contrário, a iniciativa chinesa afirma manter a defesa da aplicação da política dos cinco princípios de convivência pacífica enunciados por Zhou Enlai ainda na década de 1950, quando a República Popular estava em seus primeiros anos: respeito à soberania e à integridade territorial de todos os países; não agressão; não ingerência nos assuntos internos de outros Estados; igualdade entre os países; e benefício mútuo. A esses princípios – posição histórica da China em relações internacionais – se une agora o de “comunidade de destino comum da humanidade”, enfatizado no 19º Congresso do Partido Comunista, em outubro de 2017.
Portanto, mais que uma iniciativa puramente econômica com o objetivo de ampliar as redes de exportação e importação centradas na China, a Nova Rota da Seda pretende-se um projeto contra hegemônico, uma nova proposta para o sistema internacional. Para compreendê-la em todas as suas dimensões, é necessário aproximar-se da experiência histórica da China, particular dentre os Estados contemporâneos, devido a suas raízes milenares.
A começar pela própria referência à rota da seda. Sua versão “original” vem do início da era comum, quando uma rede gigantesca de caminhos, cidades e mercados existiu nas extensões da Ásia desde a China até a Europa. Há registros de comércio de seda, um produto originariamente desenvolvido na China, na Roma do século II. Além de mercadorias, as caravanas levavam e traziam ideias: o budismo, hoje um dos pilares da cultura tradicional chinesa, viajou para o leste pelos caminhos da rota da seda.
Por outro lado, invenções e descobertas chinesas como o papel, o magnetismo, instrumentos agrícolas, estribos, dentre outros chegaram até a Europa pela mesma via. É esse o “espírito da Rota da Seda” invocado por Xi Jinping em seus discursos como fundamento da nova iniciativa: cooperação, abertura, ampliação do conhecimento e benefícios para todos. “O espírito da Rota da Seda se tornou em um grande patrimônio da civilização humana”, disse ele aos 1500 participantes do Fórum de 2017, uma ideia reiterada na recente reunião de abril de 2019.
E o que seria esse “espírito”?
A consolidação de um Estado chinês unificado aconteceu em 221 a.C, pondo fim a um período de séculos de guerras internas, nas quais dezenas de pequenos estados disputavam a hegemonia na região que hoje compreende a China. O rei de Qin, um desses poderes, levou adiante a campanha militar que derrotou os oponentes e consolidou a centralização em um Império. Qin Shi Huangdi, como ele passa se se chamar (“primeiro imperador”), tomou diversas medidas para organizar a administração e proteger seu domínio. Uma delas consistiu na primeira construção da Grande Muralha, a partir de estruturas já existentes. A China, ciente de sua grandeza, procurava a ordem após as guerras internas e deixava o resto do mundo para além de sua muralha.
Já sob a Dinastia Han (206 a.C a 220 d.C), que sucederam a Qin, a China expandiu seus limites para além do Rio Amarelo, conquistando territórios que liberaram a passagem para o centro da Ásia, especialmente o Corredor de Hexi, faixa de terra entre o planalto tibetano e o deserto do Góbi. Já no início do século II, tanto as rotas comerciais estavam abertas como muitos estados da Ásia Central tornaram-se tributários do Imperador. A China agora se abriria e levaria suas realizações para toda a Eurásia. A Rota da Seda atingiu seu apogeu na Dinastia Tang (618-907) e só declinou com a conquista mongol, em 1297. Portanto, durante mais de mil anos, aqueles caminhos estabilizaram o intercâmbio de mercadorias e de visões de mundo.
Hoje, ao buscar a antiga Rota como símbolo e referência de sua proposta mais ambiciosa, a China se apoia na legitimidade histórica para se apresentar ao mundo como a potência que, salvo o período da dominação colonial, sempre foi. Evidentemente, há a vontade política de afirmar que esse retorno a uma condição que foi sua na maior parte da história não deve causar temores. Afinal, como insistem os chineses, a prosperidade da China será, assim como foi, a prosperidade de todos.
Como é natural, mesmo avançando rapidamente a construção dessa Nova Rota da Seda, enfrenta percalços que exigem da China muito de sua tradicional paciência estratégica.
Ao assinar seus acordos, a China se relaciona com países com demandas contraditórias e atravessa áreas de disputas latentes. O relacionamento com a Índia, por exemplo, é extremamente delicado. Ao elencar o Paquistão como aliado preferencial e anunciar acordos para obras de infraestrutura na região da Caxemira, que a Índia reivindica como sua, a China toma posição tácita diante de um conflito que envolve potências nucleares. Esse foi o preço a se pagar para conseguir firma-se na Ásia Central e se contrapor ao enclave militar norte-americano existente no Afeganistão.
Os Estados Unidos, por sua vez, procuram manobrar contra o projeto chinês explorando essas dificuldades e trabalhando no desentendimento entre a Índia e a China. Talvez seja essa a questão mais complexa no cenário na Nova Rota, mas a existência de objetivos estratégicos de longo prazo comuns entre as potências asiáticas pode colaborar para contornar as dificuldades.
Temores quanto ao incremento do poder chinês e o risco de endividamento crônico dos países parceiros também são levantados contra a iniciativa. Há quem lembre que o mundo já devia, em 2018, US$ 5 trilhões à China (6% do PIB mundial) e que, além disso, 7% do PIB dos EUA é propriedade chinesa em títulos do tesouro norte-americano[1]. Porém, salta aos olhos a hipocrisia dos que chutaram a escada para interditá-la aos outros.
À diferença do padrão que conhecemos no século XX, os acordos com os chineses não são feitos com as armas na mão e nem tem, por baixo da mesa, cartas orientando a derrubada de governos. Esse é o grande trunfo que Pequim tem a ostentar contra a guerra de propaganda que acusa sua iniciativa.
“Não há nada mais fluido e suave que a água e, no entanto, nada se iguala a ela para atacar a rudeza”, diz o Dao de Jing. Com suavidade, a água corta as montanhas rígidas. A referência a Laozi é de Xi Jinping que, anunciando o programa chinês para as relações internacionais, encerrou seu discurso no último Congresso do Partido Comunista afirmando que “quando reina o grande Dao, o mundo pertence a todos”. É essa sabedoria milenar que dá o tom para enfrentar os desafios em torno da Nova Rota da Seda com a qual a China pretende interligar o mundo, de mar a mar, de terra a neve.
*Alexandre G. de B. Figueiredo é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP).
[1] https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-ouro-de-pequim.ghtml