Por EUGÊNIO BUCCI*
Na pandemia tivemos mais acumulação, mais concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se firmaram como estrelas
No dia 3 de janeiro de 2022, a Apple se tornou a primeira empresa da história a alcançar o preço de US$ 3 trilhões. A cifra equivale, em números aproximados, ao dobro do PIB brasileiro. É dinheiro – e é dinheiro que não para de crescer. Em um intervalo de 16 meses, o valor da Apple subiu 50%, passando de US$ 2 trilhões para US$ 3 trilhões. A escalada não deixa mais dúvidas sobre o fato de que o centro do capitalismo está nas chamadas big techs, as gigantes de alta tecnologia que têm uma incomparável capacidade de inovação.
Em julho do ano passado, as cinco maiores big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook, que foi renomeada recentemente como Meta) bateram, juntas, o preço de US$ 9,3 trilhões. Agora, valem mais.
Durante a pandemia, com as medidas sanitárias de isolamento, as cinco foram às alturas. Eram as companhias mais preparadas para lucrar com o que se começou a chamar de “trabalho remoto”, e também com o e-commerce, com o e-governe com o home office. Suas ferramentas se tornaram imprescindíveis.
Em abril de 2020, havia 4,5 bilhões de habitantes do planeta, em 110 países, vivendo (ou tentando sobreviver) em regime de lockdown. Entrávamos numa era de virtualidades que não conhecíamos: escolas, mesmo as recalcitrantes, tiveram de se render ao expediente das aulas a distância; escritórios de advocacia de qualquer lugarejo adotaram o home office; serviços públicos começaram a ser oferecidos online e os movimentos da sociedade civil se canalizaram para as plataformas digitais – e tome abaixo-assinados eletrônicos.
Começava ali um período estranho, com trabalhadores trabalhando sem comparecer ao local de trabalho, cidadãos exercendo seus direitos sem estar lá, missas pelo YouTube e namoros pelo WhatsApp. A economia se adaptou muito bem, obrigado. Não veio catástrofe nenhuma nos ditos “mercados”. O que veio, isto sim, foi mais acumulação, mais concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se firmaram como estrelas no capitalismo da ausência.
Estamos vivendo uma mutação social das mais intrigantes. Na Revolução Industrial do século XIX, falava-se em “força de trabalho”. Era essa “força” que o operariado vendia nas linhas de montagem. A “força de trabalho” era uma energia física que tinha como combustível o sangue humano. Com ela, os proletários moviam engrenagens, enroscavam parafusos, empurravam carcaças, pacotes e carrinhos abarrotados de carvão. Hoje, a velha “força de trabalho” parece ter ficado de escanteio. O capital não liga mais para ela, ou, ao menos, não liga tanto. Máquinas robotizadas fazem o serviço, colhem a cana, soldam peças na fuselagem dos automóveis, operam os telemarketings da vida e da morte.
Agora, o interesse do capital tem foco em outros atributos da gente. Não requisita mais a força física, mas o olhar, a imaginação, a atenção, o desejo. Esses atributos já não têm tanto a ver com o corpo, com os músculos e com o esqueleto que nos sustenta, mas com a máquina psíquica. O capitalismo da ausência – com as big techs na vanguarda – desenvolveu fórmulas para explorar as nossas mais recônditas fantasias. Eis porque, com as multidões confinadas, a economia não parou.
O modo de produção em que estamos embarcados consegue extrair valor – a distância – de corpos em estado semivegetativo, prostrados atrás de uma tela eletrônica. Só o que é convocado a entrar em atividade, nos corpos dormentes, é o olhar e as pontas dos dedos. O capitalismo se higienizou. Nunca a ausência física do explorado foi uma solução tão lucrativa.
Mas o grande trunfo das big techs não está no home office, que, aliás, já virou carne de vaca (ou, no caso brasileiro, virou osso de vaca). Hoje, todo mundo diz que trabalha remotamente, inclusive quem não trabalha. O maior diferencial dos grandes conglomerados, como Apple e suas assemelhadas, todas monopolistas globais em seus ramos (ou troncos) de atuação, foi a transformação do consumo em trabalho. No modelo de negócio das gigantes da tecnologia, consumir é trabalhar.
O tal do “usuário”, enquanto pensa usufruir de funcionalidades gratuitas, enquanto imagina se divertir, está trabalhando de graça. É o “usuário” quem “posta” os “conteúdos”, é o “usuário” que, sem saber, fornece de graça todos os seus dados pessoais (que depois serão vendidos a peso de ouro para os anunciantes), é o “usuário” que, com seu olhar, também gratuito, costura as significações e assimila os conteúdos das marcas e das mercadorias. O pobre “usuário” é ao mesmo tempo a mão de obra e a matéria-prima que saem de graça. Depois, no fim da linha, é ele, o “usuário”, que vai ser comercializado. A isso se resume o melhor negócio de toda a história da humanidade.
Se você quiser, pode tentar ser otimista. Pode falar dos prodígios curativos da telemedicina e do conforto de jogar na Mega-Sena sem sair de casa. Nada contra. Apenas leve em conta que a sua ausência vem preenchendo grandes lacunas, quer dizer, vem abarrotando de dinheiro virtual muitas burras digitais.
*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, em 13 de janeiro de 2022.