Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
Considerações sobre a Teoria Monetária Moderna
A dívida pública disparou, desde a crise financeira de 2008, e especialmente durante a pandemia de covid-19. De acordo com o Fundo Monetário Internacional, a relação dívida pública sobre PIB nas economias avançadas aumentou a partir de uma média em cerca de 70% em 2007 para 124% em 2020.
O temor de a crescente dívida pública alimentar futuras crises fiscais foi amortecido, em parte, pelo fato de os encargos financeiros com os títulos de dívida pública estarem baixos desde então. Eles foram mantidos baixos pelo “afrouxamento quantitativo” (QE, nas iniciais em inglês), após as Grandes Depressões de 2008 e de 2020.
Os enormes gastos fiscais foram justificáveis para aliviar os sofrimentos decorrentes desses episódios. Mas os defensores da Teoria Monetária Moderna (TMM) levam essa lógica abstrata para além das circunstâncias locais. São distintas para os Estados Unidos, os demais países avançados e os países atrasados, submetidos ao império do dólar.
Os adeptos da TMM alegam, quando a dívida pública é denominada na própria moeda do país, não há motivo para temer uma crise fiscal, porque não pode ocorrer um calote. Qualquer retirada de estímulo fiscal, dado durante as crises, assim, deve ser gradual.
Enquanto isso, podem ser utilizadas novas emissões de títulos de dívida pública, para custear investimentos em infraestrutura, programas de apoio à renda dos desfavorecidos e outros itens das agendas progressistas. Os economistas pós-keynesianos de países maduros destacam a condição de a taxa de inflação permanecer abaixo da meta do Banco Central lá por volta de 2%.
Eles não analisam a realidade dos países exportadores de commodities. São muito dependentes do incentivo de uma moeda nacional depreciada, mas conforme o ritmo de depreciação cambial surge o risco de a economia sofrer com uma “inflação importada”. Outra leitura, a ortodoxa, é aqui a percepção do risco fiscal provocar o risco cambial. Pressupõe por conta dessa expectativa haver fuga do capital nacional e/ou repatriamento do capital estrangeiro.
Os apoiadores da TMM citam o Japão como a prova prática de seus conceitos. Embora a relação entre dívida e PIB do Japão (incluindo tanto o governo central quanto os governos regionais) esteja acima de 250%, comparativamente aos 160% vigentes nos Estados Unidos, o rendimento de seu bônus governamental de dez anos permaneceu em torno de zero por toda a pandemia de covid-19, bem como sua taxa média de inflação praticamente não ultrapassa o nível de zero há 20 anos. Essas informações foram dadas por Takatoshi Ito, ex-vice-ministro de Finanças japonês, professor sênior do Instituto Nacional de Pós-graduação para estudos de Política em Tóquio (cf. jornal Valor econômico, 30/12/21).
É um caso fora dos padrões ou esdrúxulo. Vale a pena examinar seu insight. Para outros países emular o caso, terão de emitir títulos de dívida pública em moeda nacional, quase todos serem mantidos em carteira por seus habitantes, tanto direta, quanto indiretamente, por meio de instituições financeiras e do Banco Central. Isso diferencia bastante o Japão dos Estados Unidos, cujos bônus do Tesouro são mantidos em reservas por investidores do mundo inteiro. Mas não diferencia tanto do Brasil.
Um entendimento correto dos defensores da TMM é o governo não precisar (e não dever) deixar de honrar sua dívida pública. Se não houver compradores para ela, o Banco Central poderá continuar a colocar os títulos de dívida pública em carteira livre, até usá-los como lastro de operações compromissadas, como é feito no Brasil.
Nessas operações, enxuga a liquidez eventualmente excessiva no mercado interbancário. Ocorreria pelas injeções de dinheiro por conta de execução de gastos orçamentários pelo Tesouro Nacional. Isso não estimularia a inflação, durante uma Grande Depressão deflacionária, como ocorreu em meados de 2020. Os defensores da TMM recomendariam essas emissões de títulos de dívida pública diminuírem o ritmo quando a taxa de inflação ultrapassar sua meta.
As transferências de dinheiro, como a assistência social (repaginada por razão eleitoreira), e outros programas beneficiam as gerações atuais, enquanto o ônus fiscal dos resgates vindouros de títulos de dívida pública incidirá sobre os contribuintes futuros – muitos dos quais talvez ainda nem tenham nascido. Mesmo se os títulos em circulação forem rolados indefinidamente, os pagamentos de juros para o consumo atual, financiado por endividamento, caberão às gerações futuras.
É um estudo de caso extremamente interessante. É possível fazer analogia com um exemplo de Postura Financeira Ponzi: a adotada pela Previdência Social em Regime de Repartição. Neste, as contribuições correntes da população economicamente ativa pagam as pensões da população inativa.
Essa transferência de renda é viável até quando fatores demográficos – o aumento da esperança de vida, a diminuição da taxa de fecundidade, o resultante “envelhecimento” da população –, conjunturais – elevação da taxa de desemprego –, e/ou estruturais –maior grau de informalidade no mercado de trabalho –, provocam crescentes déficits. Aí detona a crise da previdência social.
A validade da TMM depende em parte do crescimento projetado real (corrigido pela inflação) per capita. Se a população está crescendo e as gerações futuras forem mais ricas face às atuais, o “ônus” das emissões atuais de bônus será, de fato, relativamente pequeno. Nesse sentido, as emissões de títulos de dívida pública para financiar consumo, seja dos funcionários, seja dos necessitados, funcionam como sistemas de aposentadoria por Regime de Repartição Simples. Enquanto a economia estiver crescendo a renda (e a arrecadação fiscal em consequência) mais rapidamente em relação aos encargos com juros, esse regime será de contínua rolagem da dívida pública.
Nesse caso, cada geração poderá se limitar a empurrar o ônus para a próxima geração, ad infinitum. Isto até acontecer os citados fatores demográficos, conjunturais e estruturais.
A exemplo de um esquema em pirâmide, fraudulento em ganhos, isso funciona apenas enquanto a base, isto é, novas entradas, continuar se expandindo para sustentar as saídas. O esquema Ponzi envolve a promessa de pagamento de rendimentos anormalmente altos aos investidores à custa do dinheiro pago pelos investidores recrutados, posteriormente, em vez da receita gerada por qualquer negócio real.
Em país com PEA (População Economicamente Ativa) crescente, o governo talvez seja capaz de continuar a aumentar sua dívida pública, assim como manter seu sistema de Previdência Social por Regime de Repartição Simples, ainda por várias décadas. Mas em um país com sua população em idade ativa em queda e sua renda per capita estagnada, esse esquema em breve entrará em colapso. Será o caso do Japão divulgado por Ito.
Os eleitores e políticos japoneses não podem continuar tratando o dinheiro captado por meio de emissões de bônus novos e rolados como uma dádiva providencial eterna. Se o eleitorado quer redistribuição de renda, tem de aceitar a transferência deveria vir dos ricos de hoje (muitos dos quais idosos) – e não das gerações futuras. Se o Sistema de Previdência Social ficou generoso demais, devido às projeções otimistas, deveria ser promovida uma reforma de certos benefícios.
Se for necessário estímulo fiscal, o gasto deve ser direcionado, de maneira mais sensata, para medidas de apoio ao crescimento futuro, como o fomento de investimentos em capital humano e inovação tecnológica. Nesse caso, deve-se fazer uma analogia com os dois tipos de Planos de Capitalização na Previdência Privada Complementar.
Os Planos de Benefícios Definidos caracterizam-se pela fixação do valor dos benefícios a serem pagos, ficando as contribuições – tanto do empregador quanto do empregado – como fator variável: a postura financeira da empresa patrocinadora de plano de benefício definido é especulativa. Um governo não deve adotar essa postura especulativa.
Pelo contrário, a referência deve ser os Planos de Contribuição Definida. Caracterizam-se pela fixação do valor das contribuições, ficando variável o valor dos benefícios futuros. A perspectiva econômica dependerá da capitalização das contribuições (ou, no caso, do bom uso produtivo da dívida pública): a postura financeira da empresa-patrocinadora de plano de contribuição definida é defensiva, assim como se recomenda ser a dos governos prudentes.
Enfim, para um endosso generalizado da TMM e suas implicações em política econômica, é necessária certa cautela ao abaixar de seu nível de abstração para o aqui-e-agora, por exemplo, centro ou periferia? Logo, quando a fase aguda da crise pandêmica passar e se retomar o crescimento da renda, novos governantes fariam bem em abater, gradualmente, o enorme estoque da dívida pública.
*Fernando Nogueira da Costa é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de Dívida Pública e Dívida Social: Pobres no Orçamento, Ricos nos Impostos, disponível para download gratuito em https://fernandonogueiracosta.files.wordpress.com/2022/01/fernando-nogueira-da-costa-divida-publica-e-divida-social.-janeiro-2022.pdf.