Por TADEU VALADARES*
Considerações sobre as origens e as causas do conflito europeu
No oitavo dia da guerra em andamento na Ucrânia, arrisco uma contribuição ao debate que está sendo travado a respeito, no Brasil e no mundo, sobretudo por historiadores, estrategistas, economistas políticos, estudiosos de geopolítica e de política internacional, mas também jornalistas, militantes de partidos e de movimentos sociais, além de simples cidadãos, o que é o meu caso.
Neste comentário, necessariamente de caráter geral, busco pelas origens da questão e exploro de início o que, a meu ver, é seu contexto mais amplo e mais arriscado. Ao final, teço algumas considerações sobre o que está sendo gestado na Ucrânia, uma nova etapa na história da política internacional pensada com o nome de Nova Guerra Fria.
Em outras palavras, desde que Vladimir Putin anunciou em 24 de fevereiro sua decisão de recorrer a uma operação militar especial contra Kiev, vista como indispensável à segurança da Rússia diante de uma negociação que, ao amparo do segundo protocolo de Minsk, não revelava avanços, e ainda mais imprescindível diante de um cenário estratégico-nuclear catastrófico para Moscou – o estacionamento de mísseis nucleares americanos na Ucrânia –, ingressamos noutra etapa do relacionamento entre, de um lado, os EUA, a EU e a OTAN e, de outro, a Rússia. Oito dias atrás consumou-se a passagem de uma guerra civil de baixa intensidade na região fronteiriça entre Rússia e Ucrânia para conflito militar entre dois países fortemente armados, e com isso se abriu a possibilidade de que se instaure no curto prazo uma grande guerra europeia.
A eclosão do conflito militar que opõe Moscou a Kiev vai além do bilateral, ao ensejar a criação de um cenário outro e bem mais grave, algo até pouco considerado tema descartável, a possibilidade da transformação da guerra em curso em guerra europeia, o que teoricamente implicaria o uso de todo o leque de armamentos convencionais de que dispõem a OTAN e a Rússia. Esse cenário, catastrófico em si mesmo, infelizmente não esgota a capacidade destrutiva inscrita como germe na guerra russo-ucraniana. Caso essa guerra grande, como dizem os paraguaios ao se referirem ao que chamamos Guerra do Paraguai, venha a ocorrer, sua própria dinâmica pode levar os beligerantes à utilização de armas nucleares táticas. Por sua vez, esse eventual salto mortal poderia instaurar o que Herman Khan teorizou em seu livro On Thermonuclear War, lançado em 1960, dois anos antes da crise dos mísseis em Cuba.
Tal ascensão apocalíptica do conflito atual ao último dos limites, o nuclear, tranquilizemo-nos, é altamente improvável. Mas esse cenário extremo, preocupemo-nos, de forma alguma está descartado. Tanto assim que voltou a ser objeto de atenção dos especialistas. Nesse registro, dia 8 de fevereiro último, em artigo publicado por The Nation sob o título “A Ucrânia e a Ameaça de Guerra Nuclear”, Ira Helfand, até ano passado presidente da “Médicos Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear”, organização premiada com o Nobel da Paz de 1985 chamou a atenção para os seguintes pontos: (i) de acordo com cálculos do governo dos Estados Unidos, a guerra na Ucrânia poderá resultar na morte de 25 mil a 50 mil civis; de 5mil a 25 mil militares ucranianos; e de 3 mil a 10 mil militares russos; (ii) o conflito produziria uma onda de refugiados que pode variar entre 1 milhão e 5 milhões de pessoas. Ontem já passamos do limiar de 1 milhão; (iii) se a OTAN se envolver diretamente no choque entre Moscou e Kiev, pela primeira vez, desde o término da Guerra Fria, estarão frente a frente, com ânimo bélico, 4 potências nucleares (Estados Unidos, Reino Unido e França, por um lado, a Rússia por outro) e todo os demais 27 integrantes da OTAN; (iv) as 4 potências nucleares, afirmou o dr. Helfand, sem entrar em detalhes quanto a estar considerando de fato a totalidade dos arsenais nucleares dos quatro, dispõem dos seguintes armamentos: Reino Unido – 120 armas nucleares; França – 280; Estados Unidos: 1650 armas nucleares estratégicas, e 100 nucleares táticas já instaladas em 5 países da Europa (Bélgica, Alemanha, Itália, Holanda e Turquia); Rússia: 1900 armas nucleares táticas e 1600 estratégicas.
As mais poderosas armas nucleares russas variam, em termos de potência, entre 500 e 800 kilotons. As dos Estados Unidos, se considerarmos apenas as instaladas em submarinos, têm 455 kilotons de potência. Para efeitos de comparação, a potência das bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki era de 16 kilotons…
Para se ter uma ideia mais concreta dos riscos inseridos numa eventual escalada desse tipo, leve-se em conta que bomba de 100 kilotons, pouco mais de seis vezes a potência das lançadas contra o Japão, se lançada sobre Moscou mataria 250 mil pessoas e deixaria um saldo de feridos da ordem de 1 milhão de pessoas. Bomba com essa mesma potência, em alcançando Washington, mataria 170 mil pessoas e feriria 400 mil.
Muito pior ainda: se 300 dessas armas estratégicas fossem lançadas contra os Estados Unidos, 78 milhões morreriam nos primeiros 30 minutos. O restante da população em sua vasta maioria morreria de fome, dos efeitos da radiação e de doenças epidêmicas. Numa guerra nuclear generalizada, Rússia, Canadá e toda a Europa sofreriam o mesmo destino.
Em termos planetários, todos seríamos afetados em especial pelo inverno nuclear. As temperaturas seriam similares às da Idade do Gelo. Ou seja, uma guerra desse tipo significaria o término da problemática civilização que conhecemos, e muito provavelmente reduziria a quase nada a espécie ‘sapiens’. Isso é o que está no limite em jogo, sempre que potências nucleares ameaçam se confrontar militarmente.
Por último, não olvidar: a passagem da etapa de guerra convencional para a nuclear pode ocorrer por vontade dos beligerantes, mas também por puro acidente.
Deixemos esse círculo extremo, verdadeiro pesadelo, e passemos ao que levou a Rússia a proceder como procedeu e está procedendo.
Se nos limitarmos aos registros geopolítico e geoestratégico e a todas as suas limitações, o que em última instância levou à eclosão da guerra russo-ucraniana não é misterioso. Basta olhar com atenção, sobrepondo-os, mapas que indicam a expansão da OTAN a Leste e a localização de bases militares no território controlado, em matéria de defesa e de ataque, pela Organização.
Para bem entendermos essa expansão, cabe lembrar que a OTAN, criada em 1947, originariamente foi integrada por 12 membros: Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Itália, Portugal, Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica, Islândia e Luxemburgo. Em 1952, ingresso de Grécia e Turquia, primeria expansão. A segunda expansão ocorre em 1955, Alemanha Ocidental. A terceira, em 1982, Espanha. Esse foi o ciclo expansivo da OTAN ao longo da Guerra Fria.
Mas depois de terminada a Guerra Fria, e como resultado dos entendimentos alcançados por Estados Unidos, Reino Unido, França e Alemanha Ocidental, por um lado, e a URSS, num primeiro momento, mais a Rússia como sua sucessora, dissolvida a União Soviética, os ocidentais, e muito especialmente a Alemanha Ocidental alcançaram seus objetivos: a reunificação alemã e a permanência da Alemanha reconstituída na OTAN. Isso, todavia, teve como moeda de troca a promessa dos 4 ocidentais de que não haveria qualquer expansão ulterior a Leste.
James Baker e Hans-Dietrich Gensher garantiam a Moscou, junto com seus colegas britânico e francês, que assim seria. O que ocorreu foi o inverso. Os Estados Unidos, sob Clinton, e a OTAN exploraram com realismo de curto prazo a fragilidade tanto da União Soviética quanto da sucessora Federação Russa para dar início a um segundo ciclo expansionista, movimento até hoje inconcluso.
Em 1999, ingresso de Polônia, Hungria e República Checa, a despeito dos protestos da Rússia debilitada; em 2004: Bullgária, Estônia, Látvia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia, de novo sob protestos dos russos, igualmente ignorados. O processo levou a novos estados-membros: em 2009: Albânia e Croácia; 2017: Montenegro; 2020, Macedônia do Norte. Em março do ano passado, a aliança militar recebeu os pedidos de adesão apresentados por Bosnia e Herzegovina, Geórgia e Ucrânia.
Tal como nos casos anteriores, o pretendido ingresso da Geórgia e da Ucrânia foi considerado inaceitável pela Rússia. Mas já não se tratava da Rússia dos anos 90, sim pela Rússia de agora, país extraordinariamente poderoso no registro militar convencional e nuclear. Moscou marcou sua posição: inadmissível outra vez ceder à ‘húbris’ expansionista porque nisso incorrer ameaçaria gravemente sua segurança e a condenaria em tempo longo a abandonar seu projeto de grande potência de novo em ascensão, tal como projetado por Putin. Ceder equivaleria a aceitar como destino s converter numa potência afinal negligenciável, fadada a ocupar posição subordinada “vis-à-vis” o campo ocidental.
Esboçado esse quadro que por vezes é colocado nas sombras ou tratado em surdina, passemos ao período decisivo das relações entre a Rússia e a Ucrânia. Passemos ao que efetivamente impulsou aquilo que Putin, exercendo a arte do eufemismo em seu grau máximo, chamou ‘operação militar especial’.
Para isso devemos ter em mente o que é a Ucrânia real, não as Ucrânias imaginárias, essas que, num registro que tem muito de fabuloso, se apresentam como diametralmente opostas uma à outra, uma sendo cultivada pelos Estados Unidos, União Europeia e OTAN; a outra por Moscou. Batalha entre as duas por corações e mentes.
Em vez disso, contemplamos a Ucrânia como país problemático, estruturalmente instável, profundamente dividido no plano interno e incapaz de elaborar estratégias de política internacional relativamente consensuais ou relativamente aceitáveis pela sociedade marcada por antagonismos. Tal é a Ucrânia, sustento, resultante da independência alcançada em 1991.
Desde então, o país viveu sucessivas crises, dinâmica que se intensificou sobremaneira com o golpe de estado de 2014, quase que de imediato conducente à guerra civil dita de baixa intensidade, que só na região do Donbass vitimou mais de 14 mil pessoas até o mês passado. Essa primeira etapa da Ucrânia independente se encerrou em fevereiro passado, quando Putin reconheceu a independência das duas repúblicas do Donbass e deu início às operações militares.
De fato, em sua fase mais recente, o processo tem origem imediata no final de 2013. Num país dividido internamente em termos linguísticos, marcado por nacionalismos e ideologias contrapostos, e com uma sociedade caracterizada, em termos culturais, étnicos e religiosos por convivência difícil, o então presidente Yakunovich tomou uma decisão que, talvez bem fundada em termos lógicos, históricos e geopolíticos, afinal se revelou desastrada.
Havendo recebido de Putin uma proposta que considerou a melhor nas circunstâncias, decidiu abandonar as negociações que mantinha com a União Europeia e se comprometeu com o estabelecimento de fortes laços com Moscou e a Comunidade de Estados Independentes liderada pela Rússia.
A nação ucraniana se biparte. Um dos lados rejeita a decisão presidencial; o outro a enaltece. Mas a direita nacionalista, particularmente seu segmento neonazista que tem como ícone principal Stepan Bandera, se insurgiu. Com o apoio da OTAN, dos Estados Unidos e da União Europeia, atuou com extrema violência, alcançado derrubar o presidente em março de 2014, e obrigando Yukanovich a fugir para a Rússia.
A extrema direita nacionalista neonazista e as demais franjas da direita ucraniana tomaram o poder em seguida adotaram medidas discriminatórias contra minorias, proibições e restrições tanto de caráter linguístico quanto cultural. A violência bárbara das organizações paramilitares se desencadeou por todo o país, mas foi particularmente intensa na região do Donbass.
O mais, todos sabemos: Moscou, em reação ao que estava acontecendo, anexou a Crimeia, cuja população, cerca de 2 milhões de pessoas, era composta, em 2001, por 58% de russos, seguidos de duas minorias, a ucraniana e a tártara. A anexação da Crimeia, onde se localiza a base de Sebastopol, garantiu a capacidade de a marinha russa operar no Mar Negro. Havendo sido evidente violação das regras do direito internacional público, o feito foi justificado internamente à Rússia como necessidade imperiosa. A anexação foi objeto de plebiscito em que 96.8% da população a ela se mostrou favorável.
Moscou também apoiou de imediato a resistência dos russo-ucranianos do Donbass às ações militares de Kiev. Embora sempre negando haver enviado militares para a região, Moscou chegou a falar em voluntários. Objetivamente, a população foi salva da violência nazifascista das milícias incorporadas, com autonomia operacional, às forças armadas da Ucrânia. O apoio russo a Donetsk – cidade com 1 milhão de habitantes – e a Luhansk – com 400 mil -foi decisivo. A Rússia, entretanto, não reconheceu as duas entidades como estados independentes, o que só veio a acontecer três dias antes de iniciada a entrada de tropas russas na Ucrânia.
No plano político-diplomático, todos os esforços para superar a crise desencadeada pelo golpe de 2014 e para sustar a guerra civil no Donbass fracassaram. O teoricamente mais promissor, consignado nos 12 pontos que constituem o essencial do segundo protocolo de Minsk (2015), não avançou diante da recusa da Kiev em operacionalizá-lo.
Esse, em linhas gerais, o processo cujo esgotamento levou à concentração de grande número de efetivos russos na fronteira da Rússia com a Ucrânia Oriental, movimentação iniciada no segundo semestre do ano passado. Hoje, a OTAN calcula que os efetivos alcançaram 200 mil soldados. Desde o dia 24 de fevereiro passado parte desses contingentes passou a operar na Ucrânia, a partir da própria Rússia e também da fronteira entre Bielorrússia e Ucrânia.
No oitavo dia da guerra, o desenlace ainda não está definido, nem se pode estimar com segurança o prazo em que ocorrerá. Entretanto, dada a disparidade das forças em presença, de todo improvável que resulte em vitória militar de Kiev. Portanto, muito provável que a Rússia venha a alcançar, total ou parcialmente, seus principais objetivos declarados: a substituição do governo ucraniano por um que lhe seja favorável; a desmilitarização do país e sua ‘desnazificação’.
O preço a ser pago pela Rússia será altíssimo, tanto em termos econômico-financeiros e comerciais quanto no referido à imagem internacional do país. Para fazer Moscou pagar esses custos, os EUA, a OTAN e a União Europeia está totalmente mobilizados. Com eles, a grande mídia global, quase que inteiramente pautada pela dos Estados Unidos e da União Europeia.
No longo prazo, o mais desgastante será o efeito do conjunto de sanções impostas ao governo de Moscou. A Rússia, entretanto, parece estar relativamente preparada para as sanções que se acumulam. Resta saber até quando Moscou conseguirá manter o fôlego diante de sanções tão fortes quanto as impostas ao Irã e à Venezuela.
Mas analiticamente cabe distinguir: enquanto que as sanções adotadas e talvez ainda por adotar alcançarão seu objetivo imediato – debilitar a economia russa e, com isso, minar o apoio interno de que desfruta Putin – apenas no prazo médio ou longo, contado em muitos meses ou em alguns anos, o objetivo russo imediato – vencer a guerra e neutralizar a Ucrânia como cabeça de ponte da OTAN – será provavelmente atingido em algumas semanas ou, no máximo, em um ou dois meses mais.
No plano exclusivamente bilateral-militar, os riscos maiores para a Rússia na realidade começarão a se manifestar com força apenas depois de obtida a vitória. Moscou tem condições para vencer a guerra, mas poderá perder a paz. Mudado o governo de Kiev, Putin talvez se veja imerso em um atoleiro ucraniano que a todos fará recordar o acontecido no Afeganistão com a União Soviética e, depois, com os Estados Unidos e seus aliados.
Completando o quadro, há que sublinhar a essencialidade de que se reveste, ainda mais depois de 24 de fevereiro, a aliança sino-russa sacramentada durante a recente visita de Putin a Pequim. Então se evidenciou a inusitada convergência de ambos os governos, exaustivamente registrada na longa declaração conjunta emitida 20 dias antes do início da guerra russo-ucraniana.
O documento aponta para profunda reformulação da ordem global imperante com ajustes secundários desde o término da Segunda Guerra. De fato, a declaração a seu modo sinaliza o esgotamento aparentemente irreversível do sistema estruturado desde Bretton Woods, da criação das Nações Unidas, do início da Guerra Fria e da criação da OTAN. Nessa ordem, apesar da existência do campo socialista burocrático na Europa, e do peso da China então comunista na Ásia, o multilateralismo desempenhou um papel de certa forma acessório, enquanto que o bipolarismo predominava ostensivamente. Ainda assim, a articulação entre o multilateralismo professado nas Nações Unidas e o bipolarismo dito Leste-Oeste permitiu se criasse, no contexto da Guerra Fria, opções interessantes para o Terceiro Mundo.
Mas a despeito dessas janelas de oportunidade, bem exploradas pelo grupo dos países Não Alinhados e pelos países que saíram do jugo colonial, o papel principal, quase-hegemônico, coube aos Estados Unidos. Tal situação foi notavelmente reforçada depois da dissolução da União Soviética, o que permitiu aos Estados Unidos o exercício, por breve período, de unilateralismo que não encontrava antagonistas de peso. Todavia, iniciado o século XXI, tanto a ordem internacional vigente há quase 80 anos quanto seu ‘hegemon’ começaram a dar sinais cada vez mais explícitos de esgotamento.
No plano bilateral, a declaração sino-russa de fevereiro passado confere clara perspectiva operacional ao gigantesco projeto de parceria-aliança entre Moscou e Pequim. A agenda é de amplo espectro e continuará em expansão porque isso é de interesse vital para ambos os países, especialmente a partir de agora.
Caso articulemos os dois níveis da declaração, o bilateral e o global, não é irrealista conceber que essa reviravolta nas relações entre duas grandes potências, uma asiática e a outra, euroasiática com territórios enormes e contíguos, venha a impulsar um multilateralismo de tipo novo, junto com alguma multipolaridade, ambos a serem ainda mais bem definidos e conceptualizados. Nesse movimento que apenas começa, um pano de fundo especial: a importância em muito acrescida da Ásia no mundo da segund metade do século 21 se tornará ainda mais explícita.
Se, por um lado, os rumos de longo prazo do relacionamento sino-russo parecem firmemente estabelecidos, a coisa é outra quando se pensa no tempo curto da conjuntura. Parte do sucesso da nova parceria-aliança dependerá em boa parte do vetor final que definirá o alcance, para além do imediato, da operação lançada pela Rússia contra a Ucrânia.
Visto nessa moldura, o sucesso da convergência estratégica entre Moscou e Pequim passou a ficar vinculado ao êxito russo ao final da audaciosa operação que colocou em cheque a estratégia dos Estados Unidos, da OTAN e da União Europeia no teatro europeu. O êxito russo ou sua frustração ao término desse movimento de grande envergadura que colocou em chegue toda a estratégia do ‘campo ocidental’ dependerá também do engenho e arte com que o governo de Moscou, vitorioso, tentará reorganizar a Ucrânia.
Essa reorganização, se bem-sucedida, idealmente permitirá, num prazo razoável, oposto ao longo, a retirada do grosso das tropas russas. Esse cenário hipotético, que vejo como demasiado idealizado e excessivamente favorável à Rússia, talvez chegue a incluir novas perdas territoriais ucranianas, uma delas a inteira região do Donbass, mais outras que, eventualmente, Putin estime indispensáveis como reforço da segurança da Federação Russa.
Será viável chover tanto maná sobre a Rússia, quando o inteiro espaço europeu vive, desde ao menos 2008, uma dinâmica em que a polarização predomina, processo que chegou nos últimos dias a seu temporário ponto máximo?
Conclusão provisória: se pensamos em termos de longo prazo, tudo indica que as relações entre Moscou e Pequim estão muito bem encaminhadas e tendem a se fortalecer cada vez mais. Por outro lado, o choque sofrido pelos Estados Unidos, a OTAN e a União Europeia foi de tal ordem que a reação está a sendo a que vemos todos os dias: impor à Rússia um estado de guerra total, econômico-financeiro e comercial. Apenas a dimensão militar foi, até agora, evitada…
No intervalo de poucas semanas, um outro processo emergiu na Europa, ele também de longo prazo, e com caráter estruturalmente contraposto à parceria-aliança sino-russa. Uma Nova Guerra Fria ganhou definitivamente corpo. “Definitivamente”, enquanto dure. Esse novo tempo de embate deixou de ser um fantasma que rondava a Europa desde o início do século XXI, desde o começo da expansão da OTAN a leste. A Nova Guerra Fria, doravante instalada com toda clareza na Europa, se estenderá por prazo geracional ou mais do que isso. A primeira se prolongou por 44 anos.
Com a cristalização dessa fatura exposta, tenho para mim que tanto a OTAN quanto a União Europeia, tanto a Alemanha quanto a França, não apenas a Rússia, serão fragilizadas, ainda que de maneiras desiguais, diferentes, descombinadas. A França e a Alemanha porque infrutiferamente tentam a cada tanto ser potências relativamente autônomas ‘vis-à-vis’ os Estados Unidos, tendem a ter seus respectivos perfis em muito rebaixados. Com isso, e por paradoxal que possa parecer, os Estados Unidos em descenso voltarão a se tornar, como o foram durante a anterior Guerra Fria, os verdadeiros e incontestes senhores da OTAN, o poder imperial absolutamente dominante na Europa da União Europeia. Mas nem por isso a decadência sua será necessariamente revertida. Mais provável, o contrário. A dinâmica da Nova Guerra Fria pode vir a acelerar o declínio americano à medida que, na outra ponta, o polo sino-russo, em sua extensão máxima euroasiático, se afirme mais e mais.
Não sem razão George Kennan, o renomado estrategista americano, criador do conceito e da doutrina do containment, e ferrenho defensor dos interesses geopolíticos e geoestratégicos da república imperial já em 1997 alertava: “(…) expandir a OTAN será o mais catastrófico dos erros da politica americana ao longo de toda a era iniciada com o pós-guerra”.
O erro foi cometido por Clinton, o erro foi catastrófico tal como indicado por Kennan, a fatura colossal foi apresentada mês passado pela Rússia. Viveremos, todos, as consequências.
*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.