Haendel em gospel

Imagem: Elyeser Szturm
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por Walnice Nogueira Galvão*

O gospel é o canto religioso que predomina nas igrejas protestantes negras dos Estados Unidos. Como o jazz, criado pelos escravos, vem das profundezas da alma oprimida que no canto encontra liberação.

O último concerto da temporada 2018 da Osesp foi espetacular: nada menos que o Messias de Haendel transcrito para gospel.

A maestrina da Osesp, Marin Alsop, encomendou a realização a Bob Christianson e Gary Anderson, que fizeram os arranjos orquestrais, instrumentais e vocais. Mantiveram as melodias, que permanecem reconhecíveis, mas alteraram profundamente a harmonização e os ritmos, acrescentando outras dimensões e desabrochando num suíngue irresistível.

A massa coral era impressionante: o Coro da Osesp somado ao Coro Acadêmico, ultrapassando a centena de vozes. Os solistas, que vieram de fora – tenor, soprano e contralto – eram especialistas em gospel e jazz, pois os malabarismos vocais não são os mesmos do canto lírico. Quem já ouviu gospel sabe o que é esse canto religioso inspirado, que predomina nas igrejas protestantes negras dos Estados Unidos. Como o jazz, criado pelos escravos, vem das profundezas da alma oprimida que no canto encontra liberação.

A rainha do gospel, Mahalia Jackson, reinou a vida inteira sobre os fiéis e os fãs, tendo soltado sua poderosa voz em ocasiões que calaram fundo: na posse de John Kennedy; na marcha sobre Washington em prol dos direitos civis de seu povo, quando Martin Luther King proferiu o célebre discurso “I have a dream”; e no funeral deste líder.

O gospel, embora com resultados diferentes, é aparentado ao blues, que é um canto de banzo, de tristeza, de nostalgia. Já o gospel é cheio do Espírito, cheio de energia, da gente que encontra júbilo na expressão de sua dor. Nessas igrejas, a vibração crescente do canto, que vai se apoderando de todos os crentes, logo leva à dança, mesmo em recinto sagrado, fazendo lembrar Davi, rei e poeta, que cantava e dançava os salmos de sua lavra diante do altar do Altíssimo.

Não fossem o canto e a dança um canal de expressão privilegiado, induzindo ao transe e ao êxtase, comuns aos rituais de todos os povos, inclusive no Brasil – seja nos cultos sagrados dos orixás, seja nas formas profanas como a batucada, a escola de samba e o carnaval.

O Messias em gospelcontagiou os presentes, traduzindo-se em outra forma de participação que não a estática e contemplativa determinada pela etiqueta em concertos de música clássica. Na ocasião, a participação exigiu, a partir da incitação dos cantores, que se batessem palmas ritmadas e que se prorrompessem em aplausos (coisa inaudita!) ao fim de cada sequência. Tal comportamento é de bom-tom em ópera, a cada ária especialmente bem executada, ou em balé para saudar a perfeição de um pas-de-deux. Mas não em concerto sinfônico, onde é considerado gafe aplaudir antes do fim.

Do jazz, não faltou o scat singing, que Ella Fitzgerald ou Louis Armstrong eram capazes de improvisar a perder de vista (ou de ouvido). Também foram enxertados alguns solos instrumentais: de piano, de saxofone, de trompete. Mas o mais sensacional foi o de bateria, que se prolongou por vários minutos, os demais instrumentos em silêncio, lembrando os históricos solos do baterista Gene Krupa e de tantos outros. Ou, mais próximo de nós, daquele que há pouco nos deixou, o grande Naná Vasconcelos, oito vezes eleito o maior percussionista do mundo pela Down Beat e detentor de oito Grammys.

O único problema foi que na Sala São Paulo não há visibilidade a partir da plateia. Embora a bateria se localizasse logo na segunda fileira, portanto bem perto, o belo solo foi só ouvido, ninguém conseguiu ver nada da perícia do executante. Da plateia dava para ver os integrantes da massa coral, de pé no palco, a olhar o baterista encantados.

Afora a participação entusiasmada do público, houve embrião de dança na ginga, na expressão corporal e nos gestos dos cantores solistas. Tudo isso criou a expectativa de que a qualquer momento o Espírito visitaria o conclave através de seus fiéis, como nas igrejas protestantes negras onde o gospel integra a liturgia. Ou então, como no candomblé, o santo baixaria…

E foi por pouco, porque a convergência de todos esses elementos com a música belíssima de Haendel era de arrebatar.

*Walnice Nogueira Galvão é Professora Emérita da FFLCH-USP.

Veja neste link todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

__________________
  • A colonização da filosofiamar estacas 14/11/2024 Por ÉRICO ANDRADE: A filosofia que não reconhece o terreno onde pisa corrobora o alcance colonial dos seus conceitos
  • A massificação do audiovisualcinema central 11/11/2024 Por MICHEL GOULART DA SILVA: O cinema é uma arte que possui uma base industrial, cujo desenvolvimento de produção e distribuição associa-se à dinâmica econômica internacional e sua expansão por meio das relações capitalistas
  • O entretenimento como religiãomóveis antigos máquina de escrever televisão 18/11/2024 Por EUGÊNIO BUCCI: Quando fala a língua do rádio, da TV ou da Internet, uma agremiação mística se converte à cosmogonia barata do rádio, da televisão e da internet
  • Ainda estou aqui — habeas corpus de Rubens Paivacultura ainda estou aqui 2 12/11/2024 Por RICARDO EVANDRO S. MARTINS: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Os concursos na USPMúsica Arquitetura 17/11/2024 Por LINCOLN SECCO: A judicialização de concursos públicos de docentes na USP não é uma novidade, mas tende a crescer por uma série de razões que deveriam preocupar a comunidade universitária
  • A execução extrajudicial de Sílvio Almeidaqueima de livros 11/11/2024 Por MÁRIO MAESTRI: A denúncia foi patrocinada por uma ONG de raiz estadunidense, o que é paradoxal, devido à autoridade e status oficial e público da ministra da Igualdade Racial
  • O porto de Chancayporto de chankay 14/11/2024 Por ZHOU QING: Quanto maior o ritmo das relações econômicas e comerciais da China com a América Latina e quanto maior a escala dos projetos dessas relações, maiores as preocupações e a vigilância dos EUA
  • A falácia das “metodologias ativas”sala de aula 23/10/2024 Por MÁRCIO ALESSANDRO DE OLIVEIRA: A pedagogia moderna, que é totalitária, não questiona nada, e trata com desdém e crueldade quem a questiona. Por isso mesmo deve ser combatida
  • Ainda estou aquicultura ainda estou aqui 09/11/2024 Por ERIK CHICONELLI GOMES: Comentário sobre o filme dirigido por Walter Salles
  • Antonio Candido, anotações subliminaresantonio candido 16/11/2024 Por VINÍCIUS MADUREIRA MAIA: Comentários sobre os mais de setenta cadernos de notas feitos por Antonio Candido

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES