Meio-dia

Janet Ledger, Midland Landscape
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Por FLÁVIO VALENTIM DE OLIVEIRA *

Comentário sobre o livro recém-lançado de Henry Burnett

Meio-dia é nome do novo livro do filósofo, músico e compositor Henry Burnett. A obra é uma minima memoriam cujo título – assim como o seu autor – é multifacetado e pode levar o leitor tanto a uma das metáforas mais bonitas da filosofia nietzschiana: o meio-dia, o momento da sombra mais breve ou da hora sem sombras, ou a famosa estrofe da canção popular de Caetano Veloso: “luz do sol, que a folha traga e traduz”, estrofe preciosa tanto para os vegetais quanto para os poetas e cancioneiros.

Henry Burnett (para quem conhece os seus livros e as suas canções) tem amplo domínio do mundo filosófico e musical de Nietzsche e Caetano Veloso. Contudo, Meio-dia, logo em sua primeira peça intitulada Tia Lucy fala de um sol, talvez menos conhecido, do meio-dia amazônico, especificamente o de Belém. Do sol sufocante, opressivo e histórico, histórico porque já derreteu muitas maquiagens e delírios europeus na Amazônia e, talvez, tenha derretido o sonho da velha tia Lucy Burnett, senhora escocesa, culta e distinta que, de alguma forma, entendeu (decepcionada) que elegância na Escócia e no Brasil não são a mesma coisa.

Na verdade, ostentação seria um termo mais propício a nós brasileiros, um gesto que dispensa a elegância: isso se faz notar na própria crítica que o narrador faz ao pai, o homem que “ostentava uma arrogância burguesa incompatível com seus parcos vencimentos” (Tia Lucy, p. 17). De todo modo, a aristocracia é afrodisíaca e seduziu para sempre o menino Burnett. O que pouco se entende, talvez, é que um dos gestos mais aristocráticos – revelados pela própria tia Lucy – consiste no gesto de salvar livros.

Sua doação de livros ao sobrinho e a pergunta: “Você é ambicioso?” não podem ser desconectada no texto, pois, o que é “bastardo” (era assim que o sobrinho era visto anteriormente pela tia austera) pode ser, muitas vezes, aquilo que seduz e redime a nobreza. Aliás, não é essa uma das grandes lições dadas por um dos grandes mestres da reminiscência? Não foi o próprio Proust que descreveu o secreto gosto e a curiosidade dos nobres pelos burburinhos que vem dos serviçais no interior das cozinhas? Serviçais que aparecem na contação de vantagens eróticas infanto-juvenis do narrador: “Babás, empregadas, mulheres imprecisas” (Jogos infantis, p. 37), no teste dos primeiros passos com o dom juanismo, inclusive o dom juanismo com o próprio corpo, com a própria memória, pois não há memória sem safadeza, memória com “o tempo de abrir e fechar a toalha” (idem).

Das reminiscências infantis, emerge ainda a casa de “muro de madeira e algodão no quintal” (Cenário um pouco depois, p. 27). Tempo em que o algodão era plantado por avós e mães para uso da medicina caseira ou para casos urgentes de moleques que usavam o algodão do quintal quando furavam o pé ou estancavam joelhos ralados (tudo isso escondido das mães). Melancolia de uma cidade, memórias de algodão, que traz a leveza e a ferida ao mesmo tempo e, até mesmo a artificial Cidade Nova de Ananindeua, que de nova não tinha nada, fez desaparecer os quintais, os pés de algodão e fez crescer a farmacologia em cada esquina.

O leitor, com isso, irá perceber que uma lembrança muito peculiar “é a ausência de uma casa” (A casa, p. 31). Esse vazio aparente na infância pode revelar na vida adulta vantagens para outras formas de vida, outras formas de habitar ou mudar de cidade(s), como por exemplo, comparar o som da chuva “em telhados alheios”, comparar o cheiro da chuva de São Paulo e de Belém (Chuva de noite, São Paulo, p. 33). Com a ausência de casa e a ausência de pai seria, portanto, natural procurar abrigo na igreja. Mas o nosso narrador já era um caso perdido. Dali aprendeu a “catequese do gozo” (do encontro com “irmãs lindas” que não queriam mais ser puras) e a formação de um “ateu-ecumênico” (Take 3, p. 41).

O livro de Burnett é ainda suavemente político. Fala já de um tempo em que as igrejas aprenderam a ter gozo por planilhas; fala do modo como o capitalismo humilha os patriarcas: seja do pai bon vivant que adorava jantares refinados e comia “pão e água” (Pai, p. 105); do velho sábio que precisa se recadastrar no banco porque “seu dinheiro está bloqueado” (vida seca, p. 71) ou do amigo músico que precisa compor suas canções, sem dinheiro, na calçada, música de festa “pela mão de quem nunca festeja” (Take 10, p. 72). Fala da gentileza, esse ato micropolítico, como por exemplo, o duplo beijo na testa de Frau Fisher, a senhora alemã, cujo inquilino não mais lhe dirigia a palavra (por que insistimos na ideia de que as alemãs e os alemães não são ternos?). Do desejo de contemplar o belo rosto de uma mulher turca e hesitar por causa da rispidez do homem turco: o dom Juan castrado por crenças políticas e sexuais que apenas diz: “pude ver seu rosto no reflexo do vidro de uma loja de chá” (Berlim, p. 82).

A obra sempre se lança a uma constante reflexão sobre os não lugares, das coisas que nascem bastardas, pode ser uma pessoa ou uma cidade, como é o caso de Lisboa, com suas “pessoas velhas e ternas”, que “vive seu clima solar e calmo, vivo e triste, ambíguo” diante da pergunta: “pertences à Europa”? (Lisboa? p. 93). O tema da ausência da casa torna-se então algo tão obsessivo que, em determinados momentos, precisa de um exorcismo estético, vai se desdobrando em pequenos contos, como é o caso de Silêncios (p. 92), onde se habita e transa, “onde não se divisa o real do desespero dos afogados” (idem). Em outro momento, a suposta casa se transforma em pesadelo, como no conto A casa tomada de Julio Cortázar, em que os habitantes vão sendo expulsos lentamente, onde não se pode “nunca mais passar pelo jardim, chegar ao outro lado da rua” (Medo, p. 84).

O livro é ainda um pequeno memorial musical. Pode-se dizer que alguém pode abandonar os seus sonhos, mas, talvez, nunca desista de cantar no seu dia-a-dia. No caso de Burnett, ele escreve, pensa e canta. Burnett não tem lembranças de uma Odisseia sequer, não obstante, se não tem um Odisseu, não significa que não tenha um rapsodo que compõe no “fracasso do inaudito” (Penúltimo take, p. 113). Por falar em rapsodo, certa vez, o famoso cantor norte americano Tony Bennett declarou, em entrevista, que ficava impressionado com a limpidez da voz de João Gilberto (um dos pais espirituais de Burnett). João Gilberto silenciou, talvez, porque já havia percebido que num futuro próximo uma outra voz, mais grosseira e sem violão, o haveria de suplantar. Luto musical e político que não deixou de afetar o narrador: “Seu silêncio diante do país que você ajudou a imaginar, e do qual nada resta” (João Gilberto, p. 104).

O livro ainda brinda o leitor com duas cenas kafkianas muito comoventes. O que dizer de Linguagem e Take 16? Em São Paulo, Burnett ouve o “mais duro elogio de toda vida” (Take 16, p. 99). Elogio dito por Celso Favaretto, no qual o próprio narrador, ainda nas cordas, tenta assimilar o golpe: “eu não tinha nenhuma chance na música, mas que deveria continuar fazendo, apesar disso” (idem). Assim como os pequenos personagens kafkianos, sem esperanças, mas que não desistem de imaginar portas para entrar e sair, Burnett não sabe muito bem sobre os seus ouvintes, como uma mensagem enviada numa garrafa, não desiste de cantar. O que dizer da lição dada por sua filha? A filha (atualmente, uma parceira musical do compositor) que está aprendendo a falar, que inventa bichos e palavras, “como se eles existissem pra ela como ela existe pra mim” (Linguagem, p. 98), uma legítima Odradek (personagem kafkiana semelhante a um carretel que corria e falava sem se importar com o seu sentido) que também sabe cantar.

Por fim, o livro de Burnett suscita para todos nós a seguinte questão: o que é, afinal, ser anacrônico? Seria Burnett o “anacrônico do Norte” (Take 15, p. 95) num país em que se sente nostalgia de ditaduras e num mundo que até então achava que pragas eram coisas medievais? Prefiro dizer que Meio-dia é extemporâneo, onde nada é aparente. Não é à toa que o livro traz em sua epígrafe uma citação de Walter Benjamin, o filósofo que trouxe a teoria da monadologia leibniziana para a história. Se para Leibniz, cada fragmento da substância é uma parte infinita, um espelho do universo, um cartão postal é uma parte infinita de um passado que ainda brilha para nós, o brilho de uma cidade perdida. Meio-dia é belissimamente assim: uma mônada e um cartão postal.

*Flávio Valentim de Oliveira é professor de filosofia. Autor, entre outros livros, de Escravos, selvagens e loucos: estudos sobre a figura da animalidade no pensamento de Nietzsche e Foucault (Ed. Dialética).

 

Referência


Henry Burnett. Meio-dia. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2021.

 

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