Meritocracia de laços

Imagem: Nikita Nikitin
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Por CÉSAR LOCATELLI*

Origens e reconfigurações do espaço dos economistas no Brasil

O que determina a ascensão de economistas a posições de poder e prestígio no Brasil? Seus méritos e conhecimentos? Suas diferentes dotações de capitais sociais, econômicos, culturais, simbólicos, políticos etc.? Seus laços sociais com outros economistas? Suas ligações com instituições e governos alienígenas? Suas confluências de interesses com detentores de poder?

Para entender tais processos, Elisa Klüger, em sua extensa pesquisa para construção de sua tese de doutorado, Meritocracia de laços: gênese e reconfigurações do espaço dos economistas no Brasil, começou por investigar os laços familiares dos economistas que chegaram a altos cargos da administração pública, de instituições públicas e privadas, com influência nos rumos das políticas adotadas no país. Pesquisou as ligações construídas nos anos de graduação e pós-graduação e no trabalho, especialmente em universidades, centros de pesquisa e no setor público.

Para compor a narrativa histórica, ela mesclou os dados obtidos em cerca de 50 entrevistas com outros disponíveis em fontes secundárias como biografias, dicionários histórico-biográficos, DVDs comemorativos etc. Avisa: “Na narrativa, são enfatizadas a origem social dos economistas, a formação de vínculos entre eles – sendo destacadas as similaridades e contrastes entre indivíduos e grupos, no que concerne às suas propriedades sociais e às suas visões de mundo –, o surgimento e as transformações das instituições do espaço dos economistas e a teia de conexões internacionais em que os agentes e instituições estão imersos”.

Seu foco localiza-se no período que se inicia em 1930 e vai até o início dos anos 2000. Esses mais de 70 anos são divididos em quatro “movimentos”, como ela denomina. O Primeiro Movimento, que vai de 1930 os anos 1960, ocupa-se da instituição das primeiras escolas de economia e dos primeiros órgãos públicos de gestão econômica do país. O Segundo Movimento, que vai até 1979, apresenta a união de um grupo de “especialistas” no comando da economia do governo militar e a formação de grupos críticos. A formação da oposição que viria a comandar a economia na Nova República é descrita no Terceiro Movimento, que vai até a primeira eleição direta para presidente. No Quarto Movimento, 1990 a 2003, a perspectiva é invertida: a narrativa é construída a partir das inflexões e continuidades na gestão do BNDES.

Além dos quatro capítulos, que tratam dos quatro Movimentos, há um capítulo de Abertura e um Intermezzo, entre o Primeiro e o Segundo Movimentos. Pelo papel decisivo que teve a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) na busca de um pensamento econômico “autóctone”, a ela e a seus integrantes é dedicado o capítulo de Abertura. O Intermezzo, por outro lado, concentra-se no encontro, no Chile, de economistas e outros cientistas sociais, exilados pela ditadura, que viriam a ocupar postos chave nos anos seguintes no Brasil.

Busca-se, a seguir, realizar um sobrevoo panorâmico e destacar fragmentos

 

Abertura: “Em busca de um pensamento autóctone: batalhas diplomáticas por uma Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL) e as rotas de ingresso do pensamento cepalino no Brasil (1948-1964)”

O propósito do capitulo – analisar as condições sociais em torno da formação da Cepal, bem como as vias que possibilitaram que o pensamento ali produzido fosse disseminado no Brasil – concretizou-se na “Rede de Abertura”, representada pela figura ao final.

Nota-se, perfeitamente que a Cepal – Comissão Econômica para a América Latina (atual Comissão Econômica para a América Latina o Caribe) – e Celso Furtado, este em posição coincidente com a fronteira entre o Brasil e o exterior, figuram como centros da Rede de Abertura. A partir deles irradiam as relações com pessoas e instituições.

A observação do entrelace começa com os membros da família chilena Santa Cruz. O pedido ao Conselho Econômico e Social da ONU, para que fosse instalada uma comissão voltada para o desenvolvimento América Latina, foi feito por Hernán Santa Cruz. A CEPAL – foi instituída em 1948. Os EUA não só foram contrários, mas não pouparam esforços para descontinuar os trabalhos da instituição nos anos seguintes.

Que laços sociais tinha a família que conquistou 15 votos, entre 18, favoráveis à criação da Comissão? O estudo permite constatar que “aqueles que propuseram e defenderam na ONU a criação da Comissão, os Santa Cruz, tinham conexões com indivíduos largamente dotados de trunfos políticos. Eram descendentes de presidentes e famílias centrais da elite chilena, tendo precoce familiaridade com o poder e extensa rede de contatos no mundo político. Acumulavam a tradicional formação em direito e o cosmopolitismo requerido para que se fizessem ouvir internacionalmente, tornando-se interlocutores de burocratas, cientistas e políticos dos países centrais”.

Além de Raúl Prebisch, primeiro diretor da Cepal, Alfonso Santa Cruz, seu primo Aníbal Pinto Santa Cruz, Celso Furtado, Cleantho de Paiva, Miguel Osório de Almeida, Víctor Urquidi, Juan Noyola e Regino Boti formaram o grupo nascido entre 1915 e 1925 que iria se integrar à Cepal. Sobre eles, constata a autora, “a origem social privilegiada e o vasto conjunto de trunfos econômicos, culturais e simbólicos dos quadros que criaram e consagraram a CEPAL permitiam que transitassem nacional e internacionalmente e que tomassem iniciativas até mesmo sem o imediato respaldo de seus governos, já que eram pessoas com autoridade e prestígio próprios”.

“Prebisch relata que, primeiramente como subsecretário da Fazenda e depois como dirigente do Banco Central, tentou prescrever remédios ortodoxos para abrandar os efeitos deletérios que atingiam a economia argentina na esteira da crise de 1929. Mediante o fracasso desse receituário, acabou por adotar terapias econômicas heréticas: desvalorizar o câmbio, elevar tarifas de importação e dar incentivos para que a indústria se expandisse. Ele conta que o sucesso do comportamento heterodoxo levou-o ao abandono da crença no livre mercado, o que, juntamente com a percepção da condição subordinada de seu país no cenário internacional, deu início à sua reconversão teórica e à sua produção voltada ao entendimento das especificidades da inserção latino-americana no cenário internacional”

Aqueles nascidos em torno do ano de 1935 também não apresentavam “menor segurança social e disponibilidade de capitais culturais”. Eram Osvaldo Sunkel, Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa e Antônio Barros de Castro.

O capital social e cultural de Celso Furtado não fica atrás: “estudou na Europa, viajou numerosas vezes pelos EUA e trabalhou no Brasil e no Chile, tendo vínculos com as várias localidades em consideração no espaço. Nascido em 1920, situa-se também em ponto intermediário no espectro geracional em consideração”.

A Assessoria Econômica de Getúlio Vargas, outro polo aglutinador dos primeiros economistas brasileiros, foi criada logo no início do seu segundo governo para agilizar as tarefas e dar continuidade ao planejamento da industrialização. Montada por Rômulo de Almeida, a Assessoria contou com Cleantho de Paiva Leite, Jesus Soares Pereira e Ignácio Mourão Rangel.

“Ignácio de Mourão Rangel era maranhense, natural da cidade de Mirador. A família Rangel possuía um engenho e o pai, o avô e o bisavô de Ignácio eram magistrados de província. Mudou-se para São Luís para cursar o ginasial e, seguindo o curso da família, ingressou na Faculdade de Direito do Maranhão. Na juventude, Rangel foi militante da Aliança Nacional Libertadora e do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Participou de movimentos e greves operários e estudantis, e inclusive de ensaios de guerrilha, razão pela qual foi preso aos 21 anos. (…) Sobre sua entrada na Assessoria Vargas, Rangel relata: Fui chamado por Getúlio Vargas para um fim específico: redigir uma lei sobre o babaçu. Fui, então, trabalhar na redação da tal lei e me integrei à equipe, depois não houve mais meio de eu me descolar dela. Fizemos boas amizades, Rômulo [de] Almeida, Jesus Soares Pereira, pessoas assim, e são amizades que ficaram para o resto da vida e que me enriqueceram enormemente”.

 

Primeiro Movimento: “Política externa Brasil-Estados Unidos e a gênese dos especialistas em economia no Brasil (1931-1966)”

Processa-se, durante o período em tela, ao menos duas importantes mudanças no espaço dos economistas. A primeira é a implantação de várias escolas de economia e instituições de governo voltadas à condução da economia do país.

A segunda diferenciação é que logo de início adeptos de diferentes correntes de pensamento econômico cooperavam entre si. “No princípio do Movimento, predominava a tendência à cooperação de todos aqueles engajados na valorização do saber econômico e na missão de transformá-lo em instrumento fundamental de racionalização das práticas do Estado, de modo que as equipes econômicas eram integradas por membros de diferentes grupos e as escolas e institutos de pesquisa publicavam trabalhos e abrigavam pessoas com diversas orientações econômicas”.

Os conflitos passam, no final do período, a prevalecer. Um exemplo é a irritação de Eugênio Gudin e Octavio Gouvêa de Bulhões, ligados aos norte-americanos e defensores da liberdade dos mercados, com a fala de Raúl Prebisch, na instalação do Grupo Misto CEPAL-BNDE, que exortava a industrialização em bases regionais e o incremento do comércio entre os latino-americanos. A polêmica gerou diversos artigos. Um deles, escrito por Gudin, chamava-se “A mística do planejamento”. Em resposta Prebisch escreveu “A mística do equilíbrio espontâneo da economia”.

“Eugênio Gudin (1886-1986) era neto de comerciantes franceses da linhagem dos Orleans que se instalaram no Brasil em 1839 e aqui abriram uma casa de modas parisienses. Seu pai, educado na França, trabalhava na bolsa de valores e era comerciante. A mãe de Gudin faleceu jovem e seu pai casou-se em segundas núpcias com a filha de um banqueiro de grande fortuna, também educada na Europa. Eugênio Gudin teve, portanto, uma educação cosmopolita, alinhada aos padrões culturais europeus dominantes em seu tempo. (…) ‘Guarda Eugênio Gudin nítidas reminiscências da sua primeira viagem à Europa, aos sete anos de idade, num vapor das Messageries Maritimes. O encontro com Paris marcou-o para sempre, impregnando-lhe a beleza da cidade. Levado pela mão do seu avô, andou pelas margens do Sena; caminhou pelas ruas e praças que retraçam o curso da civilização’ (Paulo Carneiro)”.

Ao configurar a Rede do Primeiro Movimento, a autora percebe que “as polaridades detectadas no período dispõem-se na rede em uma estrutura triangular cujos vértices correspondem aos grupos monetarista, desenvolvimentista nacionalista e desenvolvimentista não nacionalista ou cosmopolita”.

O polo desenvolvimentista nacionalista teria em sua composição os integrantes da Assessoria de Vargas, da CEPAL, da SUDENE e do BNDE. O grupo gravitaria em torno do Clube dos Economistas, fundado por Celso Furtado em resposta ao acirramento das relações com o grupo de Gudin. Em termos geográficos, eram prepoderantes os membros desse grupo oriundos do Nordeste, por conta da SUDENE, e do Rio Grande do Sul, pelos quadros de confiança de Vargas e Goulart.

Partilhando a proximidade com o Rio de Janeiro, os formados pela faculdade que se tornaria o Instituto de Economia da UFRJ e aqueles vinculados à Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, além do grupo ligado à SUMOC (Superintendência da Moeda e do Crédito), formavam o grupo monetarista. “Os laços de Gudin e Bulhões foram majoritariamente tecidos com grupos que partilhavam a visão econômica que privilegiava a ação dos mercados, o controle da emissão de moeda e rejeitava a intervenção do Estado e do planejamento estatal para a promoção do desenvolvimento”.

O terceiro grupo, desenvolvimentista não nacionalista, acreditava na validade da ação de planejamento do Estado, no entanto divergia dos nacionalistas nas questões do protecionismo e do fechamento do país a empresas estrangeiras. Dois importantes núcleos aglutinadores dessa linha de pensamento foram o CAE (Centro de Aperfeiçoamento de Economistas da FGV-RJ), liderado por Mário Henrique Simonsem, e a CONSULTEC, empresa de consultoria e planejamento que teve entre seus fundadores Roberto Campos e Lucas Lopes.

Roberto Campos “não era um carioca nascido em berço de ouro e educado no mais alto cosmopolitismo… Nascido em Cuiabá, era filho de Valdomiro de Oliveira Campos, um professor paulista que foi para Mato Grosso em missão de ajuda de São Paulo à reforma do ensino no Oeste tornando-se diretor de um grupo escolar (…) Sua situação no Rio de Janeiro era muito precária. Em busca de um emprego mais estável do que aulas eventuais, inscreveu-se no concurso organizado pelo DASP [Departamento Administrativo do Serviço Público] para o Itamaraty. Nesse período dobrou seus afazeres: lecionava durante o dia e estudava à noite para o concurso. O seminário dera a ele um bom treinamento em humanidades e direito canônico, dominava bem o francês e o italiano e tinha treinamento em latim e grego, mas não falava nem uma palavra de inglês, idioma obrigatório no exame para a carreira diplomática”.

Klüger destaca dois fatos relevantes em relação aos grupos monetarista e desenvolvimentista não nacionalista: o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), uma aliança de empresários, militares e técnicos formada para combater o governo de João Goulart, ocupa lugar central entre os dois grupos; com o golpe de 1964, o grupo desenvolvimentista não nacionalista, progressivamente, adota o ideário monetarista. Octavio Bulhões foi designado para o cargo de Ministro da Fazenda e Roberto Campos, tornou-se Ministro Extraordinário do Planejamento e Coordenação Econômica.

“Campos, que fora a princípio desenvolvimentista cosmopolita, identificava-se cada vez mais com os monetaristas, aderindo à diretriz da estabilização como requisito para um desenvolvimento sustentado por capitais privados e, portanto, ao combate à inflação e à reestruturação institucional. Até então eram considerados conservadores aqueles que, como os membros da CMBEU [Comissão Mista Brasil-Estados Unidos], não fossem nacionalistas, ainda que pleiteassem que a economia fosse planejada e que o Estado interviesse quando necessário. “A partir do golpe o grupo torna-se, mais do que cosmopolita em sua perspectiva de abertura à integração econômica internacional, antiestatista, antiprotecionista e monetarista, tomando por mestres, Gudin e Bulhões”.

 

3. Intermezzo: “Militância e exílio (1964-1973)”

A decisão da autora de incluir o estudo das relações entre as pessoas que saíram do país deve-se à grande relevância dos cargos que esse grupo viria a assumir após o fim da ditadura. Fernando Henrique Cardoso e José Serra são as duas figuras de maior destaque na Rede do Intermezzo.

“Fernando Henrique participa do Conselho Universitário da USP [CO], de abril de 1957 a abril de 1958, como representante dos ex-alunos, e em 1961 volta ao Conselho como docente. Ele relata que os membros do CO impressionavam-se com sua polidez, com o respeito aos mais velhos, com seu tom antes conciliador do que radical, com o fato de estar sempre bem vestido e outras qualidades esperadas daqueles que foram socializados entre as elites. Assim ganhou as graças dos conservadores que dominavam a política universitária. Estes reconheciam nele um par do ponto de vista da sua constituição social, que era semelhante àquela das elites que povoavam as escolas dominantes da política universitária, as tradicionais Faculdades de Medicina, Direito e Engenharia. Fernando Henrique passou inclusive a ser admitido nos espaços extraoficiais de congregação dessa elite acadêmica, sendo convidado para os jantares e reuniões do grupo. Conseguiu aglutinar apoio da esquerda e tolerância de parte da direita universitária, conquistando papel destaque na política uspiana”.

Sobre as múltiplas conexões estabelecidas por Fernando Henrique Cardoso no exílio, destaca Klüger: “Transitava entre a sociologia e a economia, entre o Brasil, a Europa e a América Latina, entre os grupos de empresários nacionalistas, os professores comunistas e desenvolvimentistas e os estudantes de filosofia esquerdistas, entre as elites nacionais às quais pertencia e o universo dos imigrantes paulistas de sua faculdade, disposições e pertencimentos que favoreciam a multiplicação das conexões que lhe permitiram congregar ao seu redor diversos segmentos de exilados”.

Foram inúmeros os laços construídos no exílio no Chile, que se revelaram estruturais no processo de redemocratização do país. A autora destaca a Instituto de Economia da Unicamp e o Cebrap como, possivelmente, as duas instituições que sofreram as maiores rearticulações derivadas dos vínculos de militantes e intelectuais congregados em Santiago.

Um exemplo expressivo da trama de relacionamentos produzida no exílio é dado com o professor porto alegrense Ernani Maria Fiori. Ele e o educador pernambucano Paulo Freire tinham uma grande amizade. Quando seu filho José Luís Fiori, ameaçado pela ditadura por ser membro da AP [Ação Popular], chega ao Chile no final de 1965 é hospedado na casa de Paulo e Elza Freire. Como era um apartamento muito pequeno, José Luís acaba por mudar-se para a residência de Plínio de Arruda Sampaio, onde viveu até que seus pais se reunissem a ele em Santiago em 1966.

As famílias Fiori e Freire visitam-se todos os finais de semana e a parceria intelectual dos dois cresce, sendo Ernani Fiori convidado a fazer a introdução ao clássico A Pedagogia do Oprimido. Num desses encontros, José Luís Fiori apresentou José Serra, que também frequentava a casa dos Freire, a Paulo Renato de Souza. Serra, por sua vez, apresentou a José Luís seu professor e amigo Carlos Lessa, que viria a se tornar uma influência decisiva em sua carreira. Quando Carlos Lessa deixa o Chile, chega ao país Maria da Conceição Tavares. Dois laços que marcariam profundamente trajetória de José Luís Fiori.

No mesmo ano de criação da Universidade de Brasília, 1962, Ruy Mauro Marini integra-se a ela como auxiliar de ensino em ciência política e teoria política. Sua estada em Brasília seria curta: foi sumariamente demitido em 1964. Duas vezes preso e duas vezes libertado por habeas corpus, asilou-se no Embaixada do México e seguiu para esse país em mês depois. Em 1969, Marini junta-se a “uma vasta colônia de exilados brasileiros”.

“O período que ali passei [na França entre 1958 e 1960] coincidiu com o auge da teoria desenvolvimentista na América Latina e no Brasil – com a qual eu me familiarizara na EBAP [Escola Brasileira de Administração Pública da FGV], pela mão de [Alberto] Guerreiro Ramos, havendo inclusive assistido de perto o processo de formação do ISEB [Instituto Superior de Estudos Brasileiros] (e, antes dele, do IBESP) – e com sua difusão na academia francesa, tendo [Georges] Balandier como pontífice […]. As teorias do desenvolvimento, em voga nos Estados Unidos e nos centros europeus, se me revelaram, então, como o que realmente eram: instrumento de mistificação e domesticação dos povos oprimidos do Terceiro Mundo e arma com a qual o imperialismo buscava fazer frente aos problemas criados no após-guerra pela descolonização. Começa, então, o meu afastamento em relação à CEPAL, fortemente influenciado, ademais, pela minha crescente adscrição ao marxismo (MARINI, Memória)”.

 

Segundo Movimento: “Visões matematizadas ciência econômica (1967-1979)”

Além do afastamento do poder dos desenvolvimentistas nacionalistas, vinculados à Cepal, à Sudene e ao Clube dos Economistas, o período assiste a adesão dos desenvolvimentistas não nacionalistas aos monetaristas. Também notável é a entrada de paulistas, oriundos especialmente de classes médias e baixas, nos postos de poder. “No início, São Paulo aparece como uma meritocracia sem laços quando comparada ao cenário da capital”, revela a autora.

A maioria dos professores da Faculdade de Economia da USP são filhos de imigrantes com nenhuma relação com os dirigentes da nação. A figura proeminente dos paulistas era Delfim Netto. Através de sua participação na ANPES (Associação Nacional de Programação Econômica e Social), um instituto de pesquisa econômica financiado por empresários paulistas, Delfim projetou-se nacionalmente e levou consigo outros colegas, como Affonso Celso Pastore.

O posicionamento econômico de Delfim era bastante plural: “mantinha o Estado bastante presente na economia, operando sem contenção de gastos e contando com o endividamento para impulsionar o crescimento, o que desagradava os monetaristas e era bem visto por setores nacionalistas; fomentava a agricultura de exportação como via para equilibrar a balança, aproximando-se àqueles para quem o país tinha vantagens comparativas na agricultura; mantinha considerável protecionismo, o que agradava os nacionalistas e era profundamente rejeitado pelos monetaristas; mas conservava a política de arrocho salarial instaurada pelos desenvolvimentistas não nacionalistas, o que desagradava toda oposição”.

A rede indica, também, o crescimento tanto de uma ortodoxia matematizada, cujos princípios emanavam da Escola de Chicago, quanto de uma heterodoxia matematizada, formada igualmente nos EUA, mas crítica aos pressupostos da teoria neoclássica. Edmar Bacha, vinculado à PUC-RJ, é o indivíduo de maior destaque na vertente heterodoxa matematizada. Dentre os chamados Chicago boys, Carlos Geraldo Langoni é quem se sobressai.

Dissidente da orientação da Escola de Pós-Graduação em Economia da FGV-RJ, estreitamente vinculada ao ideário Chicago, grupo de Chico Lopes, Dionísio Dias Carneiro e Rogério Werneck consegue montar o mestrado da PUC-RJ, com ajuda do Ipea, da Anpec e da Fundação Ford.

Edmar Bacha junta-se ao três no final de 1978, primeiro ano de funcionamento do mestrado. “Pedro Malan e Régis Bonelli, que trabalhavam no INPES, passaram a transitar entre a PUC-RJ e o IPEA. Na sequência José Márcio Camargo, Lara Resende e Eduardo Modiano concluíram os doutorados no MIT e, ao regressar ao Brasil, uniram-se ao grupo. Persio Arida veio da USP reunir-se a colegas e amigos do período da Cambridge estadunidense”.

“As trajetórias familiares de André e Persio são e não são distintas. André parte de uma situação eximiamente privilegiada, com uma inserção mais antiga e prestigiosa na sociedade brasileira; Persio é descendente de imigrantes, mas nasce em uma casa já enriquecida e tem a oportunidade de multiplicar enormemente seu capital cultural. Persio havia sido politicamente ativo e ingressado na economia devido ao flerte com o marxismo; André não tinha atividades políticas e queria ter sido engenheiro. Adquiriram, com o tempo, posições bastante próximas em economia. Os dois manejavam com facilidade e desenvolveram interesse pela abstração, o que foi essencial para que aderissem a uma ciência econômica repleta de modelos e para que reivindicassem o predomínio na economia da lógica e não da ideológica, razão pela qual ambos rejeitam Chicago”.

Sobre as formas matematizadas, ortodoxa e heterodoxa, da economia, constata Elisa Klüger: “Nos dois casos, entretanto, é possível observar que a prova e a refutação passam a dever-se essencialmente à capacidade de demonstrar e justificar estatística e econometricamente as análises, fazendo uso de linguagem altamente esotérica, que excluía aqueles que não tinham formação especializada, encerrando os debates econômicos em um universo de iniciados e distanciando a economia das ciências humanas”.

 

Terceiro Movimento: “A frente de oposição no governo (1979-1990)”

Com José Sarney na presidência, chegam ao poder na economia os críticos da ditadura: os economistas heterodoxos ocupam, majoritariamente, o comando da Nova República. Participaram economistas da Unicamp (João Manuel, Belluzzo, Luciano Coutinho); da UFRJ (Carlos Lessa, Eduardo Augusto Guimarães); da EAESP-FGV (Luiz Carlos Bresser Pereira, Yoshiaki Nakano); da FEA-USP (João Sayad, Andrea Calabi, Montoro Filho); da PUC-RJ (Edmar Bacha, Persio Arida, André Lara Resende).

“O Sayad virou diretor de cursos da FIPE. Ele tinha voltado do exterior e virou diretor de cursos da FIPE e me convidou para ser coordenador […]. Nós montamos um grupo de pesquisas que era sobre energia. Tinha explodido o preço de petróleo em 1979, então a ideia toda era quanto custaria a energia em geral e principalmente no setor elétrico. Um grupo de pesquisa de que fazia parte o Sayad, eu, o Marcos Giannetti, o Calabi e o Philippe Reichstul. Então nós ficamos juntos aí uns dois ou três anos fazendo essas pesquisas. Quando o Sayad foi indicado para ser secretário da fazenda esse grupo todo foi com ele. O Sayad Secretário. O Calabi para tocar a DIVESP [Distribuidora de Valores e Títulos Mobiliários do Estado de São Paulo], eu cuidava da assessoria econômica. O Philippe cuidava das estatais e o Marcos foi como presidente da Caixa. Nós fomos todos com ele. Então esse grupo ficou um grupo muito próximo (Entrevista de Francisco Vidal Luna à autora, 2014)”.

A equipe de Sayad é, em seguida, alçada ao Ministério do Planejamento. A entrada de Dílson Funaro para o comando da Fazenda e de diversos heterodoxos da PUC-Rio no Banco Central e IBGE completam o time responsável pela implantação do Plano Cruzado em 1986.

“O Terceiro Movimento, que se encerra ao final do governo Sarney, foi caracterizado pela cooperação das oposições em busca da solidificação da economia do regime democrático. Às diferenças entre as escolas existentes no início do período, inicialmente abafadas em nome da missão comum, agregaram-se cisões partidárias e divergências decorrentes das disputas que os grupos tiveram ao tentar governar juntos”.

 

Quarto Movimento: “O BNDES dos governos Collor, Itamar e FHC (1990-2003)”

Elisa Klüger avalia que, nesse período, as linhas de pensamento econômico se transformam. Perdem centralidade tanto o monetarismo da FGV-RJ quanto o desenvolvimentismo nacionalista que era a marca do Clube dos Economistas e da Assessoria de Vargas. “Em seu lugar, são identificadas aglomerações de ‘liberais-desenvolvimentistas’, ‘neoliberais’ e ‘não liberais-desenvolvimentistas’, delineando um triângulo no espaço”.

Liberalização, abertura externa e desestatização compunham o projeto modernizador de Fernando Collor, como expõe Eduardo Modiano, presidente do BNDES entre 1990 e 1992: “Eu senti uma grande identificação com as principais linhas de ação que o novo governo pretendia dar e comecei então a me envolver, a ajudar… Aos poucos a minha participação na elaboração do programa, nas discussões, acabou me envolvendo de uma certa maneira que, depois, quando eu quis sair, não me deixaram. Neste momento, o presidente já estava praticamente eleito e não tinha mais volta. Eu já estava, de certa maneira, envolvido e também comprometido com as políticas de liberalização, de desestatização, de privatização que o novo governo tinha prometido implantar”.

Zélia Cardoso de Mello tornou-se ministra da economia e líder da equipe que implementou o Plano Collor, com o confisco da poupança entre as medidas adotadas.

“Zélia foi criada no Jardim Paulistano e passava férias nas fazendas da família. Chegou a frequentar o curso de Madame Poças Leitão, que iniciava as jovens das famílias abastadas nas boas maneiras e no bailado. Teve rigorosa formação católica e com os pais ia à missa na igreja Nossa Senhora do Brasil, localizada nos Jardins e frequentada pela alta elite paulistana. As principais inflexões na trajetória de Zélia foram promovidas por alguns primos que atuavam na política e na economia. A primeira mudança de vulto foi a transferência para o Colégio de Aplicação da USP. Seus primos conseguiram convencer Emiliano e Auzélia [seu pai e sua mãe] da superioridade intelectual da escola, na qual lecionavam professores ligados à USP. Lá, Zélia aproximou-se de grupos de esquerda e durante a faculdade chegou a atuar algum tempo no PCB”.

O governo FHC localiza-se na rede entre as correntes neoliberal e liberal-desenvolvimentista. A primeira com origem predominante na PUC-RJ e a segunda na FEA-USP e UNICAMP. Dois presidentes do BNDES, Luiz Carlos Mendonça de Barros (1995 a 1998), da segunda corrente, e André Lara Resende (1998), da primeira corrente e “um dos economistas com maior número de conexões na rede pela multiplicidade de seus laços”, eram sócios no Banco Matrix quando participaram do governo FHC. Com o decorrer do tempo o governo FHC pende mais exclusivamente para o neoliberalismo.

“Depois de ter atuado no Banco Central durante a elaboração e implementação do Plano Cruzado, Luiz Carlos retomou suas atividades no mercado financeiro. Antes de trabalhar na equipe de Fernão Bracher no BCB, havia passado pelo Investbanco, pela corretora Patente e pelo Planibanc… [Conta Luiz Carlos que] ‘quando o presidente FHC montou o governo, o Sérgio Motta veio falar comigo da possibilidade de eu participar. Acontece que eu e o André (Lara Resende) tínhamos fundado o Matrix havia muito pouco tempo. Achamos que seria uma falta de responsabilidade com os outros sócios abandonar tudo. Por isso não participei da equipe inicial. No fim de 1995, o Edmar Bacha tinha recebido um convite para trabalhar no setor privado e queria sair. Achei que já havia condições de sair do banco. Aceitei, mas sabia que havia um certo conflito de ideias no ar. E fui para o BNDES, convidado pelo Serra e pressionado muito pelo Sérgio Motta, amigo de 30 anos’ (BARROS, 1999).”

 

Finale

No princípio eram os economistas práticos, membros da elite ou funcionários públicos de destaque, formados especialmente em direito, que estudaram economia por conta própria. Aqueles poucos com formação em economia estudaram no exterior. A segunda geração, nascidos entre 1920 e 1940, eram advogados ou engenheiros: “ao lado do grupo pertencente à elite nacional centrada no Rio de Janeiro, multiplicam-se aqueles que ascendem através do investimento escolar”. A terceira geração, nascidos a partir de 1940, apresenta semelhanças com as elites anteriores, mas agrega membros de famílias imigrantes, nas quais pais e avós já tinham acumulado capital.

“A terceira geração foi a principal beneficiada pela multiplicação dos convênios internacionais ampliados ao longo dos anos 1960, notavelmente como efeito da intensificação dos programas de cooperação científica norte-americanos durante a Guerra Fria. Os membros dessa geração formam o primeiro grupo a frequentar sistematicamente doutorados no exterior, tornando-se os agentes da transferência para o Brasil do desenho institucional dos departamentos de economia das universidades norte-americanas e da economia matematizada que conquistava posição dominante no espaço global dos economistas”.

Alguns dos poucos que foram estudar em outros países tiveram formação distinta daquelas que predominavam nos Estados Unidos. Como Ruy Mauro Marini relata no texto Memória que produziu para a Universidade de Brasília em meados de 1980: “as teorias do desenvolvimento, em voga nos Estados Unidos e nos centros europeus, se me revelaram, então, como o que realmente eram: instrumento de mistificação e domesticação dos povos oprimidos do Terceiro Mundo e arma com a qual o imperialismo buscava fazer frente aos problemas criados no após-guerra pela descolonização”.

*César Locatelli é mestre em economia pela PUC-SP.

 

Notas


1  – O link a seguir dá acesso à tese Meritocracia de laços: gênese e reconfigurações do espaço dos economistas no Brasil.

2 – Os trechos entre aspas são transcrições da tese.

3  – Rede de Abertura (as figuras relativas às outras figuras podem ser acessadas na tesse)

 

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