Por EVERALDO DE OLIVEIRA ANDRADE*
Vladimir Putin é o herdeiro dos métodos do banditismo político que o stalinismo implantou
A guerra na Ucrânia tem efeitos mundiais e provoca consequências devastadoras para os povos e a classe trabalhadora em todos os países. A União Europeia e a OTAN de Biden estão lado a lado com a Rússia de Putin na disposição comum de usar a guerra para retirar direitos econômicos e sociais das classes trabalhadoras de seus países. Da mesma forma, o que une hoje todos os matizes e forças que são de alguma maneira favoráveis à guerra é a posição comum de justificar o direito das potências militares em esmagarem a soberania dos povos e em particular a Ucrânia.
A OTAN é uma máquina de guerras à serviço dos EUA
A OTAN foi fundada há mais de 70 anos com o objetivo declarado de fazer frente à URSS. Se acreditamos nesta justificativa, a desagregação da URSS em dezembro de 1991 e a dissolução do pacto de Varsóvia tornavam obsoleta essa aliança. Em 1990 a administração estadunidense presidida na época por Bush pai pactuou com Mikhail Gorbatchov, então dirigente da URSS, que se esse não se opusesse à unificação da Alemanha então nem a jurisdição nem as tropas da OTAN se estenderiam a territórios situados a leste da Aliança naquele momento.
Acordo que nunca foi cumprido por todas as administrações dos EUA, que compreenderam rapidamente a utilidade da OTAN, por um lado para controlar militarmente os países europeus, mas também para seguir pressionando a Rússia. Após a queda da União Soviética a OTAN passou de 16 para 30 países membros, especialmente na Europa oriental. Para os Estados Unidos tratava-se principalmente de enfraquecer a Rússia para poder saqueá-la em melhores condições. Por outro, para dar cobertura a todas as aventuras militares estadunidenses, como por exemplo, os bombardeios na Iugoslávia e Líbia.
Foi a OTAN que devastou a Sérvia em 1999, depois de ter intervido na Sérvia em 1995. Depois atacou o Afeganistão em 2001 e devastou o país matando mais de 200 mil civis. Em princípio, o âmbito da OTAN estava limitado à Europa Ocidental e América do Norte, como seu nome indica, “Atlântico Norte”. Mas a submissão europeia foi além. Segundo o Tratado de Maastricht em seu artigo 17, que criou a União Europeia (EU), essa instituição é solidária com as ações militares da OTAN.
A OTAN funciona como uma máquina de guerra a serviço dos EUA, atuando para ampliar a militarização do continente e assim abrir novos mercados para a sua indústria armamentista, hoje responsável por mais de 40% da produção mundial de armas. E a atual exigência dos governos estadunidenses à União Europeia, incluído desde Obama, Trump e atualmente Biden foi de aumentarem seus gastos militares para 2% dos seus PIBs. Isso permite ampliar a ação da indústria armamentista, hoje um dos setores estratégicos da economia dos EUA.
A linguagem belicista de Joe Biden tem uma relação direta com a própria crise nos Estados Unidos que inclui o desastre econômico provocado pelo aumento da inflação, o déficit comercial que cresce, crise que atravessa todas as instituições estadunidenses e se expressa na continuidade das medidas antissindicais e na opressão brutal às minorias, principalmente os negros.
Convém recordar que Joe Biden foi eleito presidente após uma das maiores mobilizações eleitorais da história dos Estados Unidos, para fechar o caminho a Donald Trump, se apoiando, para isso, na minoria negra e em promessas de ampliação dos seguros saúde que foram remanejados ou reduzidos a serviço dos oligarcas dos grandes grupos da indústria armamentista. Nessa situação, Biden busca uma saída em nome da “unidade da pátria” contra o novo inimigo exterior. Também influi a necessidade dos EUA de vender sua produção de gás natural à Europa onde seu maior competidor é o gás russo.
O governo dos EUA aumenta seu controle sobre a Europa através da guerra na Ucrânia com os olhos na China. De fato, necessita ter os governos europeus alinhados nessa guerra comercial ao gigante asiático. Guerra necessária para tentar reduzir seu déficit comercial, mas dificultada pelos próprios interesses da quase totalidade das multinacionais estadunidenses, que deslocalizaram sua produção para os países estrangeiros. A ofensiva foi ampliada no acordo estratégico com a Austrália e o Reino Unido contra a China com o apoio do estado de Israel. Por trás do conflito na Europa, em última instância, estão as contradições do mercado mundial capitalista que se tornam explícitas.
Vladimr Putin e seus oligarcas atacam a classe trabalhadora russa
Não podemos fechar os olhos para os fatos. Foi o exército russo que invadiu a Ucrânia, que bombardeia as cidades e que provocou a fuga de milhões de pessoas de suas casas, principalmente dos idosos, mulheres e crianças. As declarações de Vladimir Putin de que pretende defender a população russófona e “desnazificar” a Ucrânia são igualmente pretextos utilizados para justificar a mesma política econômica de ataques aos direitos econômicos e sociais contra a população russa.
O povo russo não apoia a política de Putin. Milhares de ativistas pela paz, sindicalistas e trabalhadores estão sendo presos. Não se trata de um movimento pacifista. Multiplicam-se declarações de coletivos, de trabalhadores, de jornalistas, de estudantes e professores, de cientistas, contra a guerra, apesar da repressão que já levou mais de 15.000 russos à prisão. Esse elo une as classes trabalhadoras da Rússia e Ucrânia contra a guerra e suas consequências.
Na Ucrânia, salvo a cidade de Kiev, são as populações de fala majoritariamente russa como Kharkov, Mariupol ou Odessa as que estão sendo implacavelmente bombardeadas. E a população de fala russa não recebe os soldados de Vladimir Putin como seus libertadores. Como o restante da população da Ucrânia, eles os enfrentam com armas nas mãos. A propaganda de Putin e do Estado russo não deveriam merecer a mínima consideração, como não merece a propaganda da OTAN, da União Europeia e das agências de notícias dos EUA.
Vladimir Putin e o stalinismo
Vladimir Putin afirmou em numerosas ocasiões que pretendia acabar com a Ucrânia, supostamente uma parte integrante da Rússia há séculos. Mas a Ucrânia não foi criada artificialmente, mas foi libertada como nação pela revolução operária de outubro de 1917, que teve a coragem de expropriar os capitalistas e libertar os povos oprimidos pelo Império russo. O que Putin pretende fazer é ressuscitar o velho nacionalismo conservador russo, por isso sua hostilidade à revolução que libertou a Ucrânia. Não é à toa que seu governo apoia partidos e governos de direita e uma pauta de costumes ultraconservadora dentro da Rússia. O partido bolchevique de Lênin e Trotsky defendia o direito à autodeterminação dos povos.
A Ucrânia sofreu brutalmente sob o tacão de Stálin, que aplicou na década de 1930 uma política implacável de confisco e coletivização das terras através da violência política e banditismo burocrático, mas fraudulentamente em nome do socialismo. A democracia socialista dos sovietes desapareceu completamente. A região mergulhou em uma fome gigantesca que provocou milhões de mortes. O resultado desse ataque contra o povo ucraniano – e completamente contrário aos impulsos de liberdade e igualdade da revolução de Outubro de 1917 – manchou por décadas as bandeiras do socialismo na região. Putin não quer restaurar a União Soviética, rejeita a herança da revolução de outubro de 1917 que defendeu a autodeterminação dos povos. Vladimir Putin é o herdeiro dos métodos do banditismo político que o estalinismo implantou – foi agente da KGB e herdeiro político de Boris Yeltsin – aquele que levou à destruição final da União Soviética.
Vladimir Putin e seu entorno de oligarcas mafiosos vivem da corrupção e do roubo do dinheiro do povo russo, da venda de gás e petróleo. A guerra apareceu para ele como uma oportunidade frente à crise de dominação do imperialismo estadunidense, acelerada desde sua retirada do Afeganistão. Os interesses próprios das oligarquias que controlam a economia russa podem explicar a tentativa dessas em ocupar um novo espaço e reposicionar os seus interesses. O discurso nacionalista, não só de Putin, mas de todos os dirigentes das ex-repúblicas soviéticas, não conseguem encobrir a política de destruição sistemática das conquistas econômicas e sociais alcançadas pela propriedade social e a planificação econômica que existiam nessas regiões. As privatizações e os saques do patrimônio público criaram – em estreita colaboração com os grandes bancos e corporações capitalistas da Europa e EUA – economias e máfias incontroláveis.
Paz com a ONU, a OTAN e a União Europeia?
A OTAN, a União Europeia e os Estados Unidos mentem ao dizerem que pretendem defender a Ucrânia. Trata-se da defesa dos seus próprios interesses econômicos e militares. O governo que dirige a Ucrânia e antes já esmagava sua população trabalhadora com ataques aos seus direitos sociais, agora pede mais armas, apenas reforça a guerra. Mesmo as sanções econômicas supostamente dirigidas ao núcleo do governo da Rússia, atingem principalmente suas populações empobrecidas como ocorreu no Irã, em Cuba e em outros países atingidos. As vítimas das sanções e das guerras sempre são as massas populares e trabalhadoras.
A ONU igualmente não representa a defesa da paz como ingenuamente ou não muitos querem fazer crer. Foi a ONU que, com o apoio de Mikhail Gorbachev, desencadeou a terrível e sangrenta guerra no Iraque em 1991. A mesma ONU decretou um embargo de 10 anos que provocou a morte de mais de 500 mil crianças iraquianas. Depois através da Minustah – uma missão militar comandada por generais brasileiros, muitos dos quais hoje no governo Bolsonaro – ocupou desde 2004 o Haiti após um golpe militar articulado pelos EUA, deixando hoje um país caótico.
A guerra não foi um acidente, foi preparada pela competição exacerbada e a escalada militar. Recentemente os 30 chefes de Governo da OTAN reconheceram que desde 2014 vinham armando e treinando o exército da Ucrânia. Os Estados Unidos, a União Europeia, a OTAN tem apoiado permanentemente a oligarquia ucraniana responsável pelo saque e a decomposição do país. São eles que juntos condenaram o povo ucraniano à pobreza e à emigração. Enquanto Putin agitava o seu reacionário nacionalismo grã-russo contra o povo ucraniano, aqueles apoiavam os governos pró-capitalistas da Ucrânia, governos que legitimaram o período da ocupação nazista durante a Segunda Guerra (1939-1945).
Defender os direitos sociais, contra a guerra dos oligarcas
Opor-se a guerra concretamente é um caminho que se choca com o conjunto das políticas que EUA, Rússia e demais governos europeus vassalos que buscam como uma via para superar, sempre provisoriamente, uma crise mais profunda que é do próprio capitalismo. Há uma ofensiva de ataque a todas as conquistas arrancadas pela classe trabalhadora, conquistas econômicas, mas também democráticas que avançam sob o pretexto da guerra. Na primeira linha estão os sistemas de previdência e seguridade social que garantem a sobrevivência dos trabalhadores e trabalhadoras após a aposentadoria; mas também estão sob ameaça os serviços públicos de saúde, educação etc.
Todos os governos europeus se apressam em aumentar os seus gastos militares. A Espanha vai mais que duplicar seus gastos passando de 9,4 para mais de 20 bilhões de euros destinados à defesa. A Alemanha pretende gastar mais de 100 bilhões de euros para rearmar suas forças de defesa. Tudo isso exigirá novos sacrifícios da população. Como cinicamente declarou a primeira-ministra sueca, Magdalena Andersson, do partido social democrata, durante a Cúpula Europeia de Versalhes: “eu gostaria muito de investir o dinheiro dos contribuintes em escolas e pensões, mas temos que gastar em defesa”.
Os governos, que se aproveitaram da pandemia para redobrar os ataques aos direitos e conquistas, chamam agora à unidade contra a guerra para submeter as organizações construídas pela classe trabalhadora aos planos do grande capital, que incluem novos ataques e cortes de direitos. Nem o povo russo, nem o ucraniano queriam a guerra. Sabem que essa seria utilizada para justificar novos ataques aos salários, às aposentadorias, às liberdades democráticas. Ataques que se somariam aos que já sofrem todos com a desculpa da suposta luta contra a pandemia. Os cortes dos serviços públicos de saúde prosseguiram ao lado dos gigantescos lucros das indústrias farmacêuticas.
Não serão as tropas de Putin ou da OTAN ou o suposto pacifismo da ONU que irão garantir a soberania da Ucrânia. O fim dos bombardeios e da guerra, a retirada das tropas de Putin e o fim da escalada militar da OTAN-EUA-União Europeia mobilizam milhares de pessoas, principalmente nos países mais diretamente envolvidos, mas seus impactos se espalham por todo o planeta. Só o povo ucraniano pode conquistar sua liberdade e para isso precisa da solidariedade das classes trabalhadoras de todo o mundo.
*Everaldo de Oliveira Andrade é professor do Departamento de História da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Bolívia: democracia e revolução. A Comuna de La Paz de 1971 (Alameda).
Publicado originalmente na revista Teoria e debate, no. 219.